Regressados de Santorini, já sabiamos por esta altura que Rhodes não tinha para oferecer as mesmas maravilhas que tinhamos encontrado mais a norte. A cidade antiga tem o seu charme, mesmo desfigurada por uma exploração turística intensa. Mas tudo o resto tinha-se revelado decepcionante. Havia portanto que descobrir algo que valesse a pena visitar, em príncipio longe da cidade capital da ilha. Antes da viagem, na fase de planeamento, tinha-me entusiasmado com a fortaleza de Monolithos, que, nas fotografias, aparece imponente, a coroar um rochedo inexpugnável. Só que as ligações para Monolithos são complicadas: apenas um autocarro por dia, numa viagem que leva horas e não é barata. Como alternativa acabou por surgir Lindos, uma aldeia pictoresca na costa, muito apreciada pelos turistas.

O dia começou cedo. O nosso anfitrião, Emanuelle, ia-nos dar uma boleia para Afantou, de onde poderiamos depois apanhar o autocarro para Lindos, poupando na distância e no custo do bilhete. Chegámos a esta localidade, 20 km a sul de Rhodes, dez minutos depois do autocarro passar. O Emanuelle esgueirou-se para o seu local de trabalho, mesmo ali a cerca de 100 metros da paragem e nós ficámos a fazer contas à vida: quase duas horas até ao próximo. Tempo de andar e descobrir a praia. Dois quilómetros para cada lado.

Afantou é algo entre uma pequena cidade e uma grande aldeia. Em Maio, não se vê um turista, mas as ruas estão pejadas de restaurantes e outros negócios que deixam bem clara a vocação da localidade: tudo está escrito em inglês, e suponho que quando o Verão chega o cenário deverá ser diferente. Mas para já tudo o que vemos é o palpitar matinal de uma cidadezinha que acorda. As pessoas cumprimentam-se nas ruas, as senhoras vão às compras e as lojas vão abrindo. Deixada Afantou para trás, chegamos por fim ao mar. Andamos mais um pouco, e atingimos a praia deserta. Não se vê vivalma, mas há carros que passam por nós. Pouco depois descobrimos a causa do movimento: um pequeno café à beira-mar plantado parece exercer um estranho fascínio sobre a população local, porque está quase cheio. É um quadro bizarro, aquele contraste: nem nada nem ninguém em redor, e ali, tanta vida, naquele pequeno ponto perdido. Defronte, a praia, onde caminhamos por alguns minutos. Há uns estranhos “bunkers”, de idade e objectivo indefinidos. A areia é grossa e pejada de seixos redondos. Existe muito lixo. E nisto está na altura de iniciarmos a caminhada de volta,  caso queiramos chegar a Lindos ainda da parte da manhã.

O autocarro chega quase à hora e inicia-se a viagem para Lindos. Os passageiros são um misto de turistas e locais, que se deslocam para as suas aldeias a partir da “grande” cidade. Cruzamos umas quantas, de olhos bem abertos, observando os detalhes, tentando captar cada pormenor daquela vida quotidiana que se abre diante de nós. A paisagem é predominantemente montanhosa. Fazemos desvios e mais desvios, entrando em localidades, trocando de companheiros de viagem. Vou sentado no primeiro lugar e quando uma velhota entra e se mantém de pé junto a mim, apesar de haver alguns assentos disponíveis lá mais para trás, levanto-me para lhe dar lugar. Ela pensa que estou irritado por me ter empurrado ou tocado e pede desculpas, antes de compreender a situação e se afundar na cadeira. Mas o espantoso de tudo isto é que ela se me dirige em inglês. Não estão bem a  ver…. estamos a falar de uma idosa, provinciana, vestida de preto como as mulheres de aldeia, desdentada, pele encarquilhada pelos anos de trabalho ao sol nos campos… e é esta pessoa que me diz “sorry, sorry” e “thank you, thank you”. Simplesmente não é natural. É como um branco de carapinha, ou, por assim dizer, um preto de cabeleira loura.

De repente, sem aviso, Lindos está ali mesmo, defronte dos nossos olhos, a majestosidade do castelo crusado no topo pontilhado a branco, a praia, em baixo, e o mar a perder de vista. Tinha lido que por vezes a invasão de turistas é avassaladora, que era recomendável visitar pela manhã, antes de chegada da grande avalanche. E por aí julgava-me defendido. Afinal de contas estávamos ainda em Maio e era pela manhã. Não podia estar mais enganado. Mal me tinha começado a afastar do autocarro quando reparei, atónito, no formigar, morro acima, de pequenos pontos que preenchiam cada espaço das ruas visíveis, e, sobretudo, da rampa de acesso aos portões da fortaleza.

 A aldeia na base, subindo colina acima até encontrar o castelho dos cavaleiros da Ordem de São João, posteriormente conhecida como Ordem de Malta, quando os cristãos, expulsos de Rhodes pelos Turcos, foram encontrar refúgio nessa outra ilha mediterrânica. De dentro do barbacã maior erguem-se as colunas que anunciam a localização da antiga akropólis. E em redor deste filão de História, o magnífico mar que beija as duas praias existentes, de um e de outro lado de Lindos.

Mas cedo o entusiasmo deu lugar a decepção. Tudo aquilo seria uma maravilha para explorar, não fosse encontrar-se infestado de estrangeiros do pior género: os que se deslocam em autocarros de turismo. Já tinha lindo sobre as enchentes de Verão em Lindos, mas nos mesmos textos falava-se de uma certa calmaria matinal, à qual associei outro facto positivo, o estarmos nos primórdios de Maio. Mas nada disso ajudou: depois de me aventurar nas primeiras ruelas, senti-me asfixiado pela multidão. Olhei para o trilho que conduzia ao castelo e vi um formigueiro de pontos coloridos que subiam, numa linha ininterrupta. Não. Assim não ia dar. Retirei, ainda afogueado. Bem, se não se podia entrar na aldeia, pelo menos podia-se explorar a costa, e que linda ela era. Tinha preparado um pequeno passeio costeiro e este não desapontou. Caminha-se primeiro em direcção à praia principal, claramente assinalada, na periferia de Lindos. Depois, um desvio, seguindo-se uma placa que aponta para o antigo cemitério. Passamos por um terreno baldio onde uma pequena comunidade de burros pasta calmamente. Dali, vai-se até ao velho moinho, que se avista ao longe. E entretanto vai-se gozando de uma magnífica perspectiva da aldeia, do castelo, da akropolis, da praia. Nas águas calmas vão passando veleiros. E chegamos ao moinho, tão próximo da água. É feito em pedra, de dimensões vulgares em Portugal. No seu interior a estrutura suporta ainda uma escada que se pode subir até ao topo. Mas temos que terminar a passeata: ainda mais à frente, a subir, o monumento fúnebre, antigo, majestoso. Contornamo-lo e decidimos aninharmo-nos nas rochas a ler, abrigados do vento e da confusão que ainda está na memória, daquela incrível massa de gente que cobria cada metro daquela simpática aldeia.


Chega a hora de almoço e vamos andado de volta. Ocorre-me que neste meio do dia talvez seja possível dar uma volta por Lindos, enquanto as hostes vespertinas não chegam e as matinais já se foram. Revela-se uma excelente ideia. De facto, apesar de haver ainda bastantes turistas na cidadela, o volume é já suportável. Exploramos as ruas mágicas de Lindos. Que belo local. Diferente de todos os outros que visitámos na Grécia. A aldeia é muito maior do que pensava, quase uma pequena cidade. E toda ela é clássica, sem modernices. Os habitantes de Lindos parecem ter um fetiche por portas e janelas. Em casas que nada têm de extraordinário não faltam nunca as sumptuosas janelas e portadas, como se tivessem construido uma modesta habitação sobre os restos de um palácio, aproveitando apenas aquelas partes.Espantosamente os preços das coisas são mais baixos do que em Rhodes ou Santorini. Considerando o banho constante de turistas, esperaria valores altos para coisas simples, mas não. As refeições são servidas com custos muito razoáveis. Uma pita kebab uns 2 Euros, um copo de sumo de laranja natural, acabado de espremer, com algum gelo, 1,50 Eur. Na realidade, sendo mais barato que em Rhodes, é uma boa ideia fazer uma refeição em Lindos.


Subo ao castelo, apenas para dar uma vista de olhos – a entrada custa 6 Eur e nesse dia não me sinto um mãos largas – e contorno-o parcialmente, usando um trilho que leva até à fronte que mira o mar. Dali vejo tudo. A aldeia, que cobre as colinas suaves que envolvem a fortaleza nos lados onde não existe mar; as praias, de um e de outro lado; as muralhas ameaçadoras, mesmo por cima de mim; o bulício do parque de autocarros. O calor neste dia aperta bem. Sua-se muito. Sente-se no ar, na cara das gentes. Até as bestas, que fazem turnos para levar turistas balofos até à porta do castelo, parecem ter pouca vontade de trabalhar. Na base elevada, junto  um bar que oferece uma esplanada com notáveis vistas, os seus condutores tentam vender o percurso mas com pouca convicção, enquanto conversam entre si. Os burros, esses, estão mais atrás, ruminando e desedentando-se de um balde bem fornecido de água.

Lindos é incrivelmente pictoresca. A cada canto há um detalhe que chama a atenção, uma perspectiva nova. Escadas, janelas, portões. Capelas, vestígios dos gregos antigos e dos Cavaleiros. Terraços panorâmicos, traços Bizantinos, gentes. É um fartar de fotografar.

De Lindos recordarei uma série de coisas, isoladas: a Akropólis em redor da qual o castelo foi construido, que não visitei por ser uma entrada paga; os copos de sumo de laranja natural com muito gelo, alinhados nas bancas; os preços da comida, estranhamente acessíveis, sem qualquer relação com os menus inflacionados de Rhodes; o calor avassalador; as praias convidativas e bem arejadas de um e de outro lado da aldeia; os portões e janelas das casas, faustosos, monumentais, como se pertencessem a um enorme palácio entretanto arruinado e nas estruturas do qual se teriam construído as modestas habitações que agora ostentavam aquelas aberturas luxuosas.

Gostei de espreitar a uma esquina e descobrir, de surpresa, o anfiteatro antigo; adorei passar em frente às portas do castelo e descobrir um trilho que levava até ao ponto mais alto, com uma vista fabulosa toda em redor, e, sobretudo, sem ninguém nas imediações. Mas atenção, se está a ler este texto porque prepara uma visita a Rhodes, fica avisado: se em Maio a multidão era incomodativa, imagine-se mais junto à época alta….

Para regressar à capital da ilha receámos ir ter problemas: um cacho enorme de turistas amontoava-se em redor do autocarro. Se houvesse apenas aquela viatura, era evidente que não caberiamos todos. Percebemos que o bilhete era comprado no quiosque do outro lado da estrada. Missão cumprida, e com uma informação preciosa adicional:  o número do nosso autocarro que, surpresa, não era aquele que se encontrava submergido agora na multidão. Era um outro, mais atrás, vazio. Foi assim uma espécie de milagre que nunca chegámos a compreender. A verdade é que viajámos sentados e à janela. Precioso, depois de um dia cansativo e quente.

Era já tarde avançada quando chegámos a Rhodes. Aproveitámos esse bocadinho para dar uma vista de olhos mais detalhadas nos edíficios governamentais em frente ao porto, vestígios da ocupação italiana na primeira metade do século XX, com a sua arquitectura grandiosa, de influência fascista. Queria também espreitar um velho cemitério otomano que tinha detectado da véspera, de dentro do autocarro. E encontrei-o, mas o acesso era algo duvidoso, e pelo que percebi, um grupo de três velhotes matava o seu tempo cobrando uma entrada a quem pretendia ver mais de perto as campas. Mesmo assim, de fora, consegui algumas boas fotografias do local.

Depois, seguimos para casa do Emmanuele. Mais tarde iriamos ao aeroporto recolher duas couchsurfers que ficariam lá em casa durante alguns dias, e, para terminar um dia em grande, uma visita para a enésima pita de queijo no local do costume.

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