Acordei em definitivo pelas sete. Na realidade passei a noite basicamente acordado, com os gatos do Malick em cima de mim. Mas esta era uma boa hora para iniciar o caminho que me conduziria até Diene Lagane, no Senegal, onde tinha um anfitrião de Couchsurfing para a noite.

Preparei as coisas, fechei a mochila, acordei o Malick, como tínhamos combinado. Só queria que ele me indicasse em que direcção deveria seguir para encontrar o transporte para Banjul mas ele levantou-se, ainda a dormir, resmungou qualquer coisa sobre ter perdido o passaporte, foi-se vestindo enquanto vasculhava os seus poucos haveres em busca do documento.

Saímos para a rua. Caminhámos por atalhos, estradas de poeira por entre as casas. O Malick ia falando a conhecidos e explicando-me algumas coisas. Chegar a Banjul foi um desafio, mesmo para um local como ele. Na nossa primeira tentativa estava uma multidão de passageiros à espera, ele disse que não valia a pena.

Tentámos um táxi para um ponto mais conveniente mas depois de três tentativas recusadas fomos caminhando. Andámos, tomámos uma carrinha para outra possibilidade de partida. Sem sorte. Estava também muita gente e os dois transportes para Banjul que apareceram foram tomados de assalto pela multidão.

Por mim estava à vontade. Tinha o dia todo para me transportar. O Malick diz-me para irmos andando. Lá vamos, atravessamos boa parte de Serrakunda, um subúrbio populoso, sempre pela estrada principal, passando junto à entrada do grande mercado.

O Malick entretanto começa a ficar stressado porque tem mais coisas para fazer, outro encontro pela manhã. Despacha-me num táxi partilhado para o sítio onde poderei transitar para outro táxi partilhado para Banjul, pedindo aos que lá vão para me ajudarem a encontrar o transporte.

É um percurso muito curto, podia ter caminhado. Vou pensando em tudo o que acabei de ver e experimentar. A Gâmbia. De certa forma as minhas expectactivas estavam certas. De outras maneiras, nem por isso. Na minha curta passagem pelo país confirmei a ideia de que ali ou se faz turismo ou não se faz nada. É um destino fechado, onde os viajantes são canalizados para os percursos habituais, sem grande possibilidade de variar: os passeios organizados na natureza, os dias de praia, os resorts e hotéis. Mas quando digo que não há grande possibilidade, não significa que seja impossível. Talvez com contactos locais se possa mudar um pouco. Apenas um pouco.

Porque tirando o universo moldado para os turistas, senti que havia um interesse limitado na Gâmbia. A população encontra-se super-concentrada nestes grandes núcleos urbanos que são, para mim, imensamente interessantes, pelo seu palpitar, pela explosão de cores e pelas diferenças culturais que apresentam. Mas há que reconhecer que objectivamente não há nada para ver ou visitar. Apenas vaguear.

E com isto cheguei ao local onde um último táxi me levaria a Banjul. O que vale é que os transportes são super-baratos, medindo-se em poucos cêntimos. A primeira carrinha custou 0,12 Euros. O táxi partilhado para Banjul, 0,45 Euros.

Os passageiros e o condutor cumpriram o que prometeram ao Malick, ajudando-me, figurativamente levando-me ao colo até ao táxi que precisava. Sem problemas, foi entrar e seguir para um percurso agradável, sempre a abrir, até Banjul, capital da Gâmbia, que fica numa ilha.

É uma cidade com algum interesse, rodeada em parte de terrenos pantanosos, com um misto de decadência e modernidade, sendo sede de Governo. Alguns pequenos supermercados modernos passaram-me pela vista, mas à medida que nos aproximávamos da paragem final, junto ao terminal do ferry para Barra, o património imobiliário ia-se mostrando mais degradado e as pessoas na rua cada vez pareciam mais pobres.

Tinha pensado em dar uma volta pelo centro histórico de Banjul mas por esta altura tinha mudado de ideias. Não tanto pelo que estava a ver pela janela do táxi mas porque estava um bocado saturado depois de caminhar tanto e de procurar soluções para aqui chegar. Tinha também que gerir o tempo.

Decidi seguir directo para o ferry. Foi um bom timing. Comprei facilmente o bilhete, super barato (25 Dalasi  – 0,45 Euros), entrei, sem grande controle de segurança, para além de um esgar ao meu bilhete. Subi ao nível superior do navio, com vista para a entrada, e sentei-me ao lado de um par de turistas. Uma excelente posição para fotografar.

Estava a correr bem. Apesar da complicação com o transporte a manhã tinha sido em cheio. De repente, sem que consiga perceber porquê, foi como se tivessem aberto umas comportas e um mar humano avançou para o ferry. Foi um fenómeno estranho, como se todas aquelas pessoas estivessem a ser contidas algures, enquanto outras, poucas, tivessem tido acesso ao ferry.

Bem, lá entraram, preencheram espaços vazios e em breve estavamos a navegar em direcção a Barra. A travessia leva uns 45 minutos. Um tempo agradável, descontraido.

Aproximamo-nos de terra, vejo uma canoa que recebe passageiros. Estas canoas são uma alternativa ao ferry, funcionando um pouco como táxis. Os passageiros estavam a ser transportados às cavalitas, poara não se molharem.

Barra parece uma aldeia miserável, com o casario acinzentado parecendo um grupo de barracões. O ferry encosta, as pessoas saem de forma ordeira. Um homem jovem começa a falar comigo em inglês, a conversa do costume, um ajudante. OK, está bem. Orienta-me as bananas e bolos que quero comprar, depois as bebidas frescas que também quero, trata-me do câmbio dos Dalasi que sobraram e explica-me as opções de transportes. Pede-me 25 Dalasi pela ajuda, dou-lhe 20 e fica bem. Faço amizade com o jovem da loja que me vendeu as bebidas e fez o câmbio. Isto foi uma permanente no pouco tempo que passei na Gâmbia: as pessoas têm uma atitude amigável.

No táxi. 75 Dalasi para a fronteira. Sem incidentes. Sempre a abrir, parando nos postos de controle, uma mão cheia deles, considerando a relativa curta distância até ao Senegal. Fronteira super simples de cruzar, de um lado e do outro. E depois é encontrar a “garage”,  onde hei-de encontrar transporte para Doualack. Há pessoal de motorizada a oferecer o transporte até lá, mas claro que não é a minha cena. Andar faz bem.

Vou perguntando se estou a ir bem, estou. Um homem caminha perto de mim e mete conversa. É um senegalês, com quem vou falando em francês muito improvisado. Vai para Dakar e recusa-se a pagar os 200 CFA da motorizada, acha caro. 

Chegamos à “garage”, despedimo-nos mas logo volta a chamar-me para me indicar o preço e o autocarro que devo apanhar. São 1.500 CFA.

Bem, o que se segue é um teste à paciência. Vou passar quase duas horas sentado no autocarro à espera. Calor, suar. Chego por volta do meio-dia e apenas às 14:20 começamos a rolar. Longe vai a grande recepção que recebi do pessoal do autocarro que me tinha deixado a sorrir. Algo me diz que não vêem muitos europeus por ali.

Claro que depois não foi viajar suavemente até ao destino. Logo à saída a paragem para meter gasóleo. E depois, uma longa viagem com muitas paragens, operações policiais, lombas. Por outro lado o que via pela janela era fascinante. Um outro Senegal. Com toques que me fazem lembrar o universo de fronteira com a África Sahariana, mais desértico, bem diferente do verde de Casamance.

Aqui os aldeamentos estão próximo do que reside no meu imaginário para África: grupos de palhotas com paliçadas e uma entrada. Às vezes com uma estrutura de tijolo de cimento. Nos campos vejo carroças puxadas por burros e por um par de vezes avisto um cavaleiro a trote. O céu continua como todos os dias, cinzento de névoa de calor, com um disco solar que se revela no meio da nebulosidade.

Chegamos à cidade, onde terei que arranjar forma de me transferir para a “garage” Dakar, que fica a uns 3 km. O ambiente é fabuloso. África. Aqui não há mais pele branca. Não hoje. Talvez eu seja mesmo o único branco numa cidade com quase meio milhão de habitantes. É obra.

Bem, ando ali um pouco a farejar como funcionam as coisas. Já percebi que os táxis não param na rua. Tentei e não funcionou. É preciso apanhá-los no ponto de saída. Volto para trás, pergunto a um senhor, que me aponta a direcção a tomar. Mais à frente pergunto de novo e recebo mais indicações. Logo estou lá, negócio fácil, 200 CFA, que é o preço normal, e estou no carro mais decadente em que alguma vez entrei. Palavra de honra. O condutor tem um chapéu e uma barbicha, vestindo um robe. Um senhor já com alguma idade, magrinho, uma figura que me fascina. À frente, num só banco, um casalinho jovem todo apaixonado, e ao meu lado um digno ancião com uma bengala.

Percurso simples, mas fascinante. Chego à “garage” e vejo logo muito bem indicado o ponto de partida para Diourbel. Chego lá, “monsieur, le sept place dans Diourbel?”. Sim, ali mesmo. Lugar três. Um dos melhores, na fila do meio, à janela. Preparo os meus valores para viajar comigo, mochila para a bagageira e esperar por mais passageiros para podermos arrancar. Não demora muito. Uns dez minutos e estamos a caminho.

O percurso urbano foi de me deixar de olhos arregalados, com as ruas empoeiradas, os meninos a jogar futebol, as mulheres de roupas tradicionais garridas, os veículos delapidados. Numa rua há uma monumental zaragata colectiva, uma porrada forte e feia.

Vamos saíndo e nunca esquecerei a oportunidade perdida deste percurso. Se tivesse uma janela aberta e condições para fotografar tinha feito neste dia alguns dos meus melhores retratos.

A Peugot mexe-se bem, sempre a abrir, em direcção a Diourbel. A paisagem mantém-se fascinante. A tarde aproxima-se do fim e estou mais descontraído. Estou em contacto com o Ibrahima, está tudo sob controle, mas houve uma altura que receei não conseguir chegar ao destino a tempo.

Chego a Gossas, a vila onde deverei sair e procurar transporte para Diene Lagane, a aldeia onde vou ficar O pessoal do sept place, condutor e passageiros, indicam-me como chegar lá. É simples. Cinco minutos depois faço sinal a uma carrinha com uma porta temperamental. É aquela, mas para entrar um rapaz tem que dar três potentes patadas na porta. E lá vou eu, com os últimos raios solares, música alta, quase sozinho na grande Mercedes, sorrindo com o vento na face.

O Ibrahima manda um representante receber-me na paragem. O professor de inglês está aqui colocado há dez anos. Vive num quarto, num edifício partilhado com outros professores a quem sou apresentado. Ficamos aqui ao serão, lavo-me, mudo de rouba, como qualquer coisa, bebemos chá, conversamos. Mas depois da noite anterior, tenho que dormir cedo. Caio no sono que nem uma pedra. Não, a sério, instantâneo!

 

 

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