Este foi mais um dia de acordar muito cedo. Como disse antes, Antigua é boa de explorar antes de toda a gente se levantar, quando as ruas centrais estão completamente vazias de turistas e os locais ainda não chegaram para trabalhar. A luz é excelente e é a melhor hora para fotografar.

Saí do Hostel Base Camp ainda era mais noite do que dia. Cá fora duas carrinhas Hiace eram carregadas com o equipamento de um grupo de clientes que partia para uma expedição de aventura a um dos vulcões das imediações.

Caminhei sem destino, redescobrindo os encantos de Antigua. As suas ruas pacatas, a esta hora completamente vazias de pessoas e carros, a circular ou estacionados. Adoro ver as luzes da rua ainda acessas mas já a esbater-se na claridade solar, a combinação de duas temperaturas de luz quase opostas.

Descobri a mais charmosa das igrejas de Antigua que se arruinaram nos terramotos do século XVIII, já à saída da cidade, abraçada por quase todos os lados pelo verde da floresta. Vi os primeiros guatemaltecos que se dirigem para o trabalho. Numa praceta vazia, com um jardim ao centro, um grupo de homens espera o transporte da empresa para a qual trabalham. Uma equipa de varredores limpa a cidade para mais um dia de brilho.

E com isto aproximava-se a hora de deixar, se apenas por vinte e quatro horas, esta bela Antigua. Era tempo de passar pelo hostel e pegar na mochila para seguir para uma pequena aventura, a descoberta do mercado de Chichicastenango.

Despeço-me do pessoal lá no hostel. As coisas são assim, para eles sou uma face entre milhares, um produto que será esquecido numa semana, mas para mim são especiais, guardo-lhes a memória das faces, quase das vozes.

Agora caminho para a estação de autocarros, aquele fabuloso local cheio de vida e de cor, desta vez com um objectivo mais concreto, não tanto para ver e fotografar, mas para encontrar o transporte para a primeira etapa da viagem, a próxima cidade de Chimaltenango. Antes, porém, como uma salada de frutas na feira, tenho tempo para ouvir um pouco da música que três homens vão tocando para a multidão que passa.

Depois perguntar pelo autocarro certo. É fácil e depois de uns quilómetros fascinantes, com muito para ver, estou a sair do autocarro, sem saber muito bem onde encontrar o próximo. Dizem-me que é ali mesmo, onde estou, que passará a viatura que segue para Santa Cruz del Quiché. Mas passa o tempo e nada. Impaciento-me. Será que me informaram bem? E senão é ali, afinal? Como quase sempre acontece é este o momento em que algo sucede e chega o autocarro para mim.

Em Chichicastenango, apesar do grande mercado ser apenas no dia seguinte, há muita gente. Está um frio considerável. Já sabia, ia avisado. Estamos em altitude, e é a altitude que na América Central determina se está calor ou frio. Nunca é a época do ano, que essa não traz novidades significativas. É a altitude a que se está.

Não é só o frio. É um ambiente. Húmido, triste, com um tecto cinzento no sol. As pessoas estão agasalhadas, é o seu meio, é uma América Central que não se conjuga com o imaginário comum. Mas o que se nota logo, e para mim foi uma experiência intensa, é que se está em terra de índios. Os descendentes dos maias são aquelas pessoas. De aparência diferente, roupas tradicionais e que falam a sua língua o Quechua, que tem um som fabuloso, usando muitos estalidos de língua e fazendo-me lembrar o falar dos índios norte-americanos.

Estou mesmo satisfeito por ter descoberto este local, uma variante às cidades históricas coloniais. É um mundo à parte. Passo por uma rua que sai da estrada principal. É uma feira contínua. E depois chego ao centro. Uma igreja ergue-se no topo de um lance de escadas que poderá bem ter 600 anos. O que aqueles blocos de pedra terão visto já!

Deixo-me estar ali um pouco a observar. Nas escadarias uma mão cheia de mulheres vende flores. O sino repica, não de hora a hora, como estamos habituados, mas de poucos em poucos minutos. É mais um elemento que realça a medievalidade do cenário. Não me espantaria se visse a fogueira onde mais tarde os hereges seriam queimados. Mas seria complicado, porque na realidade estou rodeado de hereges. Aquelas pessoas combinam a crença cristã com os seus ritos ancestrais. Erguem-se misteriosas colunas de fumo de incenso ao som de cantilenas ininteligíveis. De súbito um padre surge do interior da igreja e soletra algumas palavras, em Quechua, como se fosse uma curta missa. Retira-se. E retiro-me eu, em busca do meu alojamento.

El Telefono é o nome da coisa. Mostram-me dois quartos, escolho um. É o mais barato que alguma vez paguei. Não chega a 3 Euros. E chega! Se a casa não colapsar, porque a construção não me parece nada sólida. Vejam lá aí em cima, o que acham? O meu quarto era esse da ponta. A porta castanha, do lado esquerdo, mesmo à ponta.

Que delicioso que é ter opções boas e não saber qual escolher. O que fazer agora, que estou instalado? Relaxar um pouco, ler, no terraço do hotel ou na minha cama para a noite? Ir à descoberta de Chichicastenango, descobrindo todas as ruas da povoação? Regressar ao centro e mergulhar naquele ambiente medieval? Ou visitar o cemitério colorido, de que já tinha ouvido falar e que estava mesmo à minha frente, com vista privilegiada desde a janela do meu quarto?

Optei por esta última. O cemitério é tão estranho como o resto da aldeia. As cores. As cores vivas que dominam as campas. E as pessoas que por ali andam, com os seus ritos a tresandar a feitiçaria. É um ambiente único, vibrante, um pouco atemorizador. Estou algo tenso.

Para dizer a verdade, é um cemitério que é mais bonito visto de longe. De perto a fealdade realça-se e o mosaico colorido esbate-se. Não demorei portanto muito por ali. Saí por uma entrada oficial, não a ladeira que trepei para entrar no recinto mal definido. E quando cruzei o portão vinha a entrar um grupo de ocidentais com um guia. Bom timing.

Ali perto está um rapaz a pastar umas vacas. À distância vê-se mais gado. Imagino que se preparam para o mercado do dia seguinte, que tem uma vertente de gado. Ando por ali, mas não há muito em Chichicastenango. Acabo por ir ter ao centro. Apetece-me uma bebida gelada, uma Coca-Cola. Entro num café que era um luxo, como se pode ver na foto abaixo. Deixo-me estar por lá um pouco, saco do meu livro, vou bebericando sem pressas, aprecio o ambiente.

Não há muito mais para contar sobre o resto do dia. Depois de acabar a minha bebida dou umas voltas por ali. Vejo as bancas onde de tudo se vende. Artigos tribais, talvez dirigidos para os turistas que começaram a comparecer na feira, atraídos pelo ambiente especial e pelo prisma de cores. Tecidos, roupas tradicionais. Alguns produtos hortícolas, frutas. Sementes. Há um hotel na aldeia. Aliás dois. Não, hotéis a sério, com todo o conforto, tipo, cinco estrelas. Um fica ali mesmo, por detrás do centro da acção, e o outro junto à estrada principal.

 

Houve então um momento alto. Até mesmo da viagem, de toda a viagem pela América Central. E deve-se a um homem que tocava guitarra e cantava. Um verdadeiro trovados, que fazia a sua música para si próprio, como se o resto do mundo não existisse. Estava sentado numa arcada, chapéu de vaqueiro, botas de cavaleiro, pontiagudas e um casaco… da Ferrari! A música era maravilhosa. Para mim era. Para mim e para os miúdos, engraxadores, que rodeavam o “cantante”, bocas entreabertas, como se aquela voz fosse o estado mais puro de magia.

Não me consegui mover. Deixei-me estar ali, a ouvir, primeiro de pé. Depois aproximei-me, sentei-me ao lado. Não tinha nada de especial para fazer, nenhum sítio onde ir. Restava-me apenas esperar pela manhã seguinte e por isso podia escutar até não poder mais. E foi isso que fiz.

 

 

Por detrás do músico ficava a alcaidaria, a câmara municipal, portanto. Até aí tudo normal. O que me espantou foi a constituição dupla, com uma alcaidaria “normal” e uma alcaidaria nativa. Como se os índios tivessem uma autonomia governamental, que certamente têm, pelo que vi.

Já cansado, fui andando para o “hotel” mas antes descobri ainda um mercado coberto que estava repleto de tomates. Era um espaço que de tanto tomate que continha se tornava monocromático, pintado a vermelho.

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