Depois de uma noite muito bem passada – das mais bem dormidas e repousantes desde o início da viagem, os astros estavam perfeitamente alinhados para um dia bem passado. A cidade, lá fora, tinha feito as suas promessas na véspera, e esperava agora ver se eram para ser cumpridas.

O pequeno-almoço no Dengba Hostel é pouco orientado para os nossos costumes. Noodles. Passo, fico só com a banana. Mas não interessa, em Rangoon a comida é barata e está por todo o lado.

Às 10:15 estamos na rua, em marcha para as bilheteiras dos comboios, com pouca esperança em obter uma saída da cidade numa caminha, mas decididos a abraçar qualquer solução que seja para rumar a norte, Bagan ou Mandalay, não importa.

O passeio até à bilheteira faz-se bem, a partir do centro. Umas centenas de metros e chega-se aquele local obscuro que mais parece a entrada para uma quinta, mas que é mesmo ali, onde os caminhos de ferro birmaneses vendem os seus bilhetes de classe alta.

Surpresa! Sim! Há bilhetes com cama para o comboio nocturna para Bagan. Que perfeito. Então depois segue-se por barco para Mandalay onde, em princípio, será possível assegurar a descida para sul noutro comboio nocturno com caminha.

A paragem seguinte é ali ao lado, o famoso mercado de Bogyoke. Não vou dizer que é uma perda de tempo, mas para mim anda lá muito perto. É verdade que as vendas não são orientadas apenas para os turistas, mas não há volta a dar: é um mercado modernizado que perdeu o charme do oriente e onde todo o ocidental em Rangoon acaba por cair. Vende-se um pouco de tudo mas sobretudo jóias e ouro. Roupas também, e cá fora alguns petiscos. É um mercado com muito movimento, cheio de vida. Como disse, vale a pena se houver tempo para gastar. Senão…. Nem por isso.

Não muito longe encontrei outro mercado que me deliciou. Mais genuíno, sem estrangeiros. E bizarro. Talvez haja um grande hospital por perto porque muitas das suas lojas são farmácias. Mas também vende roupas – comprei umas calcitas ligeiras ali – e coisas diversas, destancando-se o trabalho das costureiras que têm oficina aberta nos corredores.

Ali perto há estaleiros de obras, o mercado enche-se de trabalhadores que vão ali almoçar, os estabelecimentos de comida, laterais, aqueles com mesinhas de plástico muito baixas, estão repletos de homens de capacete amarelo, também de plástico.

O calor começa a apertar, mas não importa. Rangoon merece o esforço. Encontramos um kowil (a palavra “covil”, estão a ver…?), um templo hindu. Está encerrado mas não se perde tudo: à porta um senhor vende cocos cheios de sumo, que é retemperante e hidrata o corpo. Ele informa que o templo abrirá às 15:00. Talvez volte.

Depois destas voltas todas, olho para o GPS e vejo que estamos a apenas 500 metros do hostel. Como eu gosto deste hostel! Tão bem localizado e tudo o mais,.

OK, talvez seja melhor ir até ao dorm descansar um pouco, deixar passar o pico do calor e depois voltar a sair.

Adoro a minha cama de beliche, de primeiro andar, com uma cortina que dá total privacidade e a luz individual de leitura colocada ao lado de uma ficha eléctrica. Acolhedor.

Foi um descanso mais prolongado do que esperava. Surgiram umas coisas para fazer e apenas pelas 16 horas conseguimos sair para a rua. Ali ao lado o jardim Mahabandoola estava a fervilhar de vida. Dia de São Valentim! Chegou a Myanmar. O relvado está cheio de gente e, entre a multidão, muitos namorados. Cada vez gosto mais de Rangoon.



No exterior do jardim um mercado de comida de rua ocupa toda uma ala. Sente-se que agora é que as coisas vão começar a animar. Há muita coisa ainda a ser preparada, mesas a serem postas, cadeiras colocadas nos devidos lugares. A oferta de petiscos é uma loucura. Alguns não seriam para o meu paladar, mais conservador, mas veem-se coisas bem apetitosas, e até há surpresas: fatias douradas! Um dos doces tradicionais do meu Natal! Em Rangoon!

Vamos andando em direcção ao rio. O destino é a estação de ferries de onde saem as ligações para a outra margem, para um local chamado Dalah.

Passando-se o corredor aéreo para peões, bem próximo do famoso Hotel Strand, está-se praticamente na doca. Aqui as coisas funcionam de forma peculiar: os locais pagam um bilhete ao entrar e, não perguntem, tanto quando percebi, pagam de novo a meio do trajecto, a um funcionário a bordo. Mas os estrangeiros têm outro tratamento: uma bilheteira própria, num escritório, onde fica registado o nome e país e onde recebem os bilhetes a preços especiais para estrangeiros: 2000 Kyats só de ida ou o dobro para um bilhete com regresso. Quase 3 Euros para uma travessia que demora menos de 10 minutos. Ah mas já vamos ver que vale isso e ainda mais, apesar de ser claramente um valor exagerado.



 

Em troca do bilhete de ouro, recebemos uma garrafa de água e uma área no ferry reservada para estrangeiros em que só reparamos à saída.

Aquilo parece o barco para Cacilhas. Chega a embarcação, bem posta, e deixa sair a carga humana, relativamente reduzida numa altura do dia em que o fluxo é inverso. Agora somos nós, vamos entrando, passando pela rampa de embarque, e entrando no barco. Para cima, onde as vistas são as melhores.

Começava ali, naquele momento, uma das melhores experiências desta viagem. Talvez a melhor até ao momento. As pessoas vão enchendo o barco e é um festival. De gentes diferentes, de côr, de sons. Uns chegam de bicicleta, que juntam às outras que já se encontram por lá, no piso de baixo. Vêm famílias mas sobretudo pessoas que regressam do trabalho, vão a caminho de casa, na outra margem, algures numa aldeias dos subúrbios.

Na plataforma as vendedeiras oferecem frutas, fritos, bebidas. Produtos exóticos, alguns conhecidos, outros que são completos mistérios. Os pormenores são infinitos, é altura de observar tudo mas com a certeza que pouco vai ser absorvido.

As gaivotas andam loucas, de redor do barco. Soa um apito. Os motores aumentam as rotações e o cais começa a soltar-se do bordo. Nas águas lamacentas do rio Rangoon cruzam-se embarcações de diversos tipos. Há canoas que atravessam de um lado para o outro, espécie de táxis de água. E, vagarosamente, passam três grandes barcaças, a caminho de algum ponto distante. De repente uma enorme traineira sobe o rio, passando muito próximo do ferry.

Em menos de nada estamos do outro lado e é uma confusão. Há rickshaws, táxis-mota, vendedores de tudo, uma multidão que se movimenta. É tudo tão diferente…

São-nos oferecidos serviços turísticos, claro. Mas não há turistas à vista. Eles hão-de vir, mas em números que não os tornam visíveis. Neste dia, não avistei um só.

Não sabemos onde ir. A ideia é simplesmente ver. Não há um destino evidente, apesar de, do lado de Rangoon, um dos rapazes da bilheteira ter dito que havia muitos pontos de interesse. Olho para o mapa e o melhor é fazer um círculo, virando à direita, em relação ao ponto de atracagem, e depois regressar, uma rua acima.

Vamos andando e é fantástico, como se se tivesse aberto um portal para outra dimensão. Já não estamos em Rangoon, a grande cidade, mas numa enorme aldeia na Birmânia profunda. Sei que muito do que ali vejo é imutável, já era assim quando os primeiros europeus por aqui andaram.

Há pobreza, mas não há ameaça, nunca. Não é um assustador bairro da lata. As pessoas ou são indiferentes, ou surpreendem-se um pouco com a presença do estrangeiro ou são simplesmente amigáveis.

Há música ao fundo, um concerto de rock e parece vir de… hum… de um templo hindu!? É mesmo. Vamo-nos aproximando e a nossa estranheza parece ser partilhada por uma pequena multidão que como se não ousasse acreditar olha de fora, sem entrar no recinto.

Estamos a olhar para aquele cenário louco e aproxima-se um senhor de aspecto digno, de sarong e uma camisa imaculada que fale um bom inglês. Pergunta se queremos visitar, dá-nos as instruções básicas… tirar os sapatos, não entrar no altar… é claramente o líder da comunidade, o organizador do festival. Temos tratamento VIP. Afasta com um gesto e uma palavra um vendedor mais persistente que nos queria vender flores e deixa-nos explorar o templo em paz.

Quando terminamos convida-nos para o concerto. Num palco os músicas dão liberdade à sua arte. Sentados no chão alguns homens. Há mulheres também, um pouco à parte. E famílias. Um dos homens mais entusiasmado com a música dança, demasiado perto do palco para o sentido de dever de um dos polícias de piquete que lhe vai dar um calduço. O ofensor senta-se, humilde, pede desculpa. Mas pouco depois repete a ousadia e mais tarde outro amigo faz o mesmo. O polícia vai e vem, cada vez com mais determinação nas cachaporras aplicadas.

Vejo as mulheres, com as suas bonitas roupas coloridas, máscaras de lama na face. O sol já vai baixo o que é uma pena. Tentarei regressar quando estiver a acabar a viagem de Myanmar. Mas agora é hora de prosseguir.

Voltamos por outros caminhos, há um sentir de comunidade, com toda a gente a regressar da jornada diária na grande cidade. É a altura de conversar um pouco com os vizinhos, de ultimar as compras antes de regressar a casa. Passam bicicletas e a bola com que os meninos jogam voa por perto.

Já junto à estrada principal há um mercado fascinante, pequeno mas intenso, com os exóticos produtos do oriente e as estranhas gentes da Birmânia, com as suas vestes e maquilhagem de lama, cores vivas, aromas fortes.

Infelizmente é hora de regressar. O caminho até ao cais é curto mas complicado. Uma enorme massa humana está ali, entre vendedores de rua e prestadores de serviços de transporte. Que loucura! Um dos momentos altos de toda esta viagem pela Ásia em 2017.

A volta do ferry deixou-nos numa cidade que apesar de ainda existir luz do dia está já claramente no processo final de encerramento. As lojas fecharam, os vendedores já são poucos e mesmo pessoas em circulação são reduzidas. Pelo menos por ali.

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