Em dia de partida para Bagan, não se fez muito em Rangoon. Descansar um pouco, nas calmas, retemperar forças. Não sei, estava talvez demasiado calor, não apeteceu grandes aventuras. Na volta haverá tempo, se tudo correr bem.

Saí apenas para um curto passeio pelas redondezas, fui espreitar Chinatown, um pouco mais abaixo, na mesma avenida. Tinha visto esta Chinatown do táxi, no dia da chegada, mas não tem um interesse relevante. São umas centenas de metros de avenida decoradas com globos de papel de arroz encarnados. As pessoas não me parecem nem mais nem menos chineses do que antes ou depois de Chinatown. Visitei um templo chinês e regressei. Devia ter comprado abastecimentos para a viagem mas relaxei-me.

Foi ficar no hostel até à hora de caminhar para a estação. Lá está, outra coisa grandiosa no Hostel Dengba é a sua localização. Melhor seria impossível: perto de tudo e contudo com quartos (pelo menos os dorms) sossegados.

Leva pouco menos de meia hora a chegar à estação. É um pequeno caos que lá está instalado. Um bagageiro toma-nos sob a sua asa e leva-nos ao ponto exacto, ao compartimento. Agora é esperar. Está uma bonita tarde, o sol entra obliquamente no compartimento, um quarto para quatro pessoas. Logo chegam os outros, um norte-americano e uma asiática. Bons companheiros de viagem, sem confusões.

À hora certa o comboio arranca. Segue muito devagar. Começo a perceber porque são precisas 15 horas para vencer 500 km. Enquanto atravessa os intermináveis subúrbios de Rangoon circula a cerca de 25 km/h. É uma massa urbana imensa. A visão mais comum são os jogos de chinlon, um cruzamento entre voleibol e futebol: duas equipas, uma rede, passar a bola por cima da rede para o campo de adversário, só com técnicas de futebol… nada que eu não tivesse jogado nos tempos de liceu, mas em Myanmar isto é uma instituição levada bem a sério. Por todo o lado há miúdos, rapazes e homens em campos inexistentes, improvisados e de aspecto profissional.

Alguns blocos de apartamentos são tenebrosos, de tão delapidados estão, negros de humidade, miseráveis, tristes. É um arrepio. Mesmo ao lado, há outros de aspecto inverso, oferecendo um contraste assombroso. Vamos passando por estações urbanas, apinhadas de gente que esperam os suburbanos. Num par delas vejo um autêntico mercado estabelecido, com os produtos estendidos mesmo até aos carris.

A grande cidade vai ficando aos poucos para trás. Pouca-terra… pouca-terra… taram-bam, bam-taram… é como se o comboio dissese… Bagan-Bagan…. Bagan-Bagan.. ai vamos nós.

Durante as minhas leituras preparatórias para esta viagem, li muita gente que escrevia cobras e lagartos sobre este viagem de comboio. Desconfortável, longa, um pesadelo. Bem, claro que não é confortável. Acho que Myanmar não é um local que se procure para se usufruir de conforto… e é também evidente que é longa… de novo, não é para deslocações de curta-duração que se visita a Birmânia. Tirando isso, esta viagem é só por sim uma atracção. O bilhete é um simbolismo, não pagamos nem a viagem nem o gozo de a fazer. É neste e noutros comboios que se vive o melhor de Myanmar, observando, pela janela, as aldeias que passam, as pessoas nas suas actividades. Esta é a Birmânia real. Não a dos templos de há séculos atrás, dos monumentos de pedra estéril. São estes os seus cidadãos, que trabalham, respiram e vivem o país de hoje.

Por aquela janela, nas horas que decorrem até à chegada da noite, vejo a megapólis decrépita que se afasta, as motorizadas que aguardam nas passagens de nível pela paragem da composição, os homens que carregam apressadamente enormes fardos de carga para os vagões devidos da composição, os agricultores que conduzem para casa o seu carro de bois depois de um dia suado nos campos, as crianças que regressam da escola e que acenam aos passageiros, as vendas de rua que aguardam um cliente que seja. Mais tarde, já quase na penumbra, tenho visões fugazes dos lares, alguns beneficiando de energia elétrica, outros iluminados por uma vela apenas… pessoas que esperam que se vire a última página de mais um dia, já descansando, quem sabe com o queixo caindo sobre o peito, resvalando para o mundo dos sonhos.

Vejo pequenas figuras que ultimam a limpeza de um campo, uma família que se senta no chão, no exterior da casa, partilhando o momento. E a paisagem, com o sol a descer, uma enorme bola laranja a perder-se na omnipresente névoa da Birmânia.

O comboio não é tão desconfortável como esperava, mas por outro lado cai-me uma grande fava: há um problema qualquer com o vagão e de tempos a tempos ouve-se um estrondo, como um gongo… complicado de adormecer. Vai ser uma noite longa. E foi… custou a dormir… fui lendo, tentando… mas o barulho era imenso. Os outros dormiam, oh que inveja, só eu fiquei acordado, e se dormia era de forma tão leve que logo acordava.

Ao longo da noite parámos numa série de estações, quase sempre para carregar ou descarregar mercadorias ou esperar o cruzamento com outro comboio. E passei frio… de tal forma que a sempre amiga gripe haveria de aparecer, e bem acompanhada, como vamos ver.

 

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