Acordei a meio da noite. Não me lembro ao certo das horas que o relógio marcava, talvez cinco. Frio não estava. Na Indonésia nunca está frio, pelo menos ao nível do mar. Mas estava mais fresco do que me conseguia recordar desde que tinha iniciado a viagem, há dois meses e tal atrás.

A mochila estava preparada de véspera. Não é nada boa ideia deixar as coisas de fora quando se partilha um quarto com mais pessoas, que estão a dormir e assim devem ficar. Uma questão de respeito. Saí lá para fora, para a serenidade da noite. A carrinha para Timor-Leste deveria passar a recolher-me. Que luxo! Esta é uma viagem que é vendida de porta a porta, ou seja, recolhem o cliente onde ele estiver e deixam-no na morada que ele desejar.

Da escuridão saiu o Edwin que se tinha levantado para se despedir de mim. E as suas mulheres também, para me preparar a panqueca de banana que é o pequeno-almoço padrão do Lavalon. Infelizmente não consegui comer. O meu sistema estava ainda debilitado depois da intoxicação alimentar.

Um pouco atrasada apareceu a carrinha. Atravessámos a cidade e eventualmente chegámos à base da empresa. Aquilo era só a ronda para recolher clientes. Comprei o bilhete e observei enquanto carregavam outra carrinha com os volumes que seguiriam para Dili. Esperei. Até receber sinal para embarcar.

Quando saímos de Kupang o horizonte começava a clarear. Começava a ser abraçado por um mundo bem diferente do que me tinha rodeado nos últimos dias. Para trás ficava a cidade, pela frente tinha doze horas de viagem. Doze horas numa carrinha velha, por estradas entre o sofrível e o péssimo. Mas doze horas muito divertidas, mesmo no meu estado debilitado.

Como tantas vezes sucede quando me desloco assim por países exóticos, não consigo encontrar uma forma de descrever a experiência por palavras. É um longo desfilar de pormenores fascinantes, que alimenta os olhos a um ritmo imenso. São as paisagens naturais, as cores alaranjadas do nascer do sol que enchem o céu e que começam a pintar os campos de verde. E as palmeiras altas, os camponeses que se dirigem para a lavoura, os carros de bois que se movem.

As aldeias, claro, são encantadoras. Espaços que se encontravam no meu imaginário, agora promovidas a realidade. A carrinha prossegue, a bom ritmo. Os quilómetros são ultrapassados e a manhã avança. Faz-se uma pausa numa pequena cidade. É um escritório da companhia, há que mexer numas encomendas, trocar papeladas. Alguns passageiros aproveitam para comprar alguns abastecimentos. Prosseguimos.

Mais à frente, uma paragem para almoço. Como qualquer coisa ligeira e fico a observar a vida naquela cidade cujo nome nem sei. Até a minha carrinha começar a encher, como um sinal de que a viagem prosseguirá.

Já perto da fronteira, nova paragem, em Atamboa, uma cidade onde se deram acontecimentos perturbadores nos tempos “quentes” de Timor Leste, uma altura onde a visita de um português equivaleria basicamente a um suicídio. Hoje as coisas são diferentes, a animosidade desapareceu. Mais uma paragem técnica, na base da companhia. Muita gente fica aqui mesmo. Entram outros passageiros, que terá vindo por outras rotas.

Seguimos mais uma vez, passando em frente ao aeroporto, que é sempre uma alternativa a quem não quer fazer as doze horas por terra. O voo daqui para Kupang leva uns minutos e como se vê a carrinha pode deixar as pessoas no aeroporto e vice-versa. Ponderei esta hipótese para o regresso, mas os horários eram apertados e acabei por jogar pelo seguro.

Fronteira. Saída da Indonésia, sem problemas. Na terra de ninguém desta fronteira há uma praia. Deve ser a única deste género no mundo. Entrada em Timor, ainda mais fácil. O guarda começou logo a falar comigo em português, dá para perceber que tem gosto nisso. Recebo as boas vindas e autorização para entrar no país. Encontro uma árvore debaixo da qual está a carrinha que me vai levar a Dili. Parece que cruzar a fronteira com as viaturas é impossível, então a companhia opera carrinhas diferentes que aqui fazem a ligação, umas operando sempre do lado da Indonésia e as outras em Timor Leste.

Nota-se imediatamente uma diferença nas estradas. Na Indonésia eram aceitáveis, em Timor Leste são um mar de buracos, com troços de terra batida, especialmente os primeiros quilómetros após a fronteira. Mas o cenário compensa o desconforto.

Há algo que salta à vista: a pobreza desta população. As casas são tal e qual como apareciam no meu livro de História da 4ª Classe, aqueles manuais Estado Novo que ainda apanhei na Escola Primária. As cabanas de madeira ou algo assim, os telhados de colmo, altos, com uma base rectangular. Só faltavam os soldados japoneses a incendiá-las, como na figurinha do meu manual que contava a violação da neutralidade e a invasão do Japão (uma história mal contada, porque antes disso já Timor-Leste estava ocupada pelos Ingleses e Holandeses, ou seja, a neutralidade do território já era.

Há algo de muito fundo que me faz quase sentir em casa. A ligação que sinto com as ex-colónias portuguesas é imensa, inexplicável. Alguns quilómetros depois a carrinha pára numa povoação junto à estrada, em frente a uma loja, e os meus companheiros de viagem saem para fazer compras, vibram, estão alegres, aquela satisfação de quem volta a casa e já lhe sente o cheiro.

A paisagem torna-se ainda mais bonita do que anteriormente. A estrada ondula, sobe e descer, até que encontra a costa. O mar. A sua imensidão. Cruzam-se connosco autocarros locais, muito coloridos, muito velhos e muito carregados. No tejadilho, uma cabra tenta equilibrar-se, amarrada à estrutura.

Apesar de não ser curta, a viagem da fronteira a Dili é menos longa do que de Kupang à fronteira. Claro que a excitação ajuda a fazer passar o tempo.

O dia vai avançando. Deveremos chegar a horas, mesmo antes do sol se pôr, como eu gosto. Detesto chegar a um local novo depois da escuridão cair.

O condutor vai perguntando às pessoas onde querem ficar. Claro que quando chega a minha vez é mais complicado. Ele não fala português nem inglês. Um ajudante sim, de forma básica. Lá explico, vejo a cara deles, de frustração. Eu sei, é um bocado fora do centro e normalmente até não iriam lá, mas como sou estrangeiro não têm coragem para se recusar. Vá lá amigos, são só 5 minutos mais.

Portanto, chegamos a Dili, à cidade. É maior do que eu esperava. E começa a distribuição. As pessoas vão saindo, enquanto damos voltas, como se fosse um táxi colectivo. É uma interessante introdução a Dili, apesar de chegarmos à hora de ponta e haver muito trânsito.

Estou super excitado. Tinha chegado a pensar em cancelar a minha visita a Timor Leste. Por causa da saturação e da frustração que a Indonésia me causou. Chegou ali um ponto em que pensei, “chega desta treta, quero voltar para casa, vou pagar outro voo porque não quero estar aqui em esforço, em sofrimento”. Mas depois falei com a minha amiga Katy que ouviu os meus desabafos e subtilmente me encorajou a continuar. E ainda bem que assim foi. Agora estou a chegar e os meus olhos saem-me das órbitas, apesar do cansaço natural de uma viagem de 12 horas em condições menos boas e com o corpo a recuperar da intoxicação alimentar.

Lá chegamos. A Katy vive para os lados da Areia Branca e fico ali, sozinho, a olhar em redor e é lindo. Já tinha lido muito sobre esta sensação, mas nunca tinha passado por ela, este sentir que não pode ser verdade mas que o é, “não posso acreditar que estou aqui”. Em Timor Leste. Sinónimo de local mais remoto do Planeta para mim.

Bem, ela não está por ali, agora tenho que a encontrar. Mas para já respiro fundo, aprecio, entro num restaurante de aspecto agradável mesmo ali em frente, o ponto de encontro com a Katy. Peço uma Sunkist, uma espécie de Fanta muito popular em boa parte da Ásia. Pergunto à senhora se fala inglês ou português. “Português, claro”. É uma senhora que parece saída de outros tempos, da era portuguesa. É mais uma peça que encaixa no meu imaginário e de repente sinto-me a voar no tempo, sei lá, para 1973, e consigo imaginar a vida daquela senhora, assim como ela é hoje, muito digna, a ensinar numa escola, a voltar para casa, para uma bonita casa, a encontrar a família para o jantar… enfim, chega de devaneios… agora é esperar pela Katy.

Estou ali resfatelado a beber a minha Sunkist geladinha e o sol desce no horizonte. Se estivesse noutro país qualquer por esta altura estaria bem stressado. A noite a chegar, o meu contacto sem aparecer, sem lugar para dormir. Mas Timor Leste é diferente. Acabei de chegar e já me sinto em casa. Como aconteceu antes em Cabo Verde e sobretudo em São Tomé.

Pronto, chega a Katy. Nunca a tinha visto pessoalmente apesar de já sermos amigos há algum tempo. Seguia o meu Cruzamundos e marcou viagem de uma promoção que publiquei, e por coincidência, marcou no mesmo dia e no mesmo voo que eu também tinha comprado. Acabou por ter que cancelar e nessa ocasião não nos conhecemos. Aconteceu agora, neste fim de mundo.

Vamos andando para casa, que fica já ali em cima. Passamos por uma comunidade, os meninos vibram de alegria ao vê-la. E chegamos. Não há palavras para descrever quão bem me senti ali, foi como se tivesse regressado a casa sem o fazer. A fadiga, as amarguras que trouxe da Indonésia, dissolveram-se logo ali. E há duche quente! Uma preciosidade rara, tecnicamente desnecessária, mas mesmo assim um luxo que me soube tão bem! Tenho a caminha feita na sala, uma caminha onde dormi tão bem, sem excepção, nos meus dias de Timor-Leste. E conheci o Ricardo, o outro Ricardo, o marido, o meu homónimo.

Bem, eles tinham uma festa de aniversário ali mesmo em baixo, na comunidade. Uma coisa em grande, uma festa. Eu, agora que a excitação da chegada se dissolvia, começava a sentir-me desfalecer. Puseram-me à vontade: se quisesse ir, era bem-vindo, se não, podia ficar a descansar. Escolhi ficar.

Tomei o tal duche quente luxuoso, vesti a última roupa lavada, pus um sarong birmanês e deitei-me na cama a descansar. Chegavam-me aos ouvidos os ecos da festa e com esse múrmurio comecei a ficar inquieto. Que diabo, estava ali e não ficaria muito tempo. Apenas uns dias. Tinha que fazer um esforço e ir viver o momento. Quase que saltei da cama, pus umas calças, desci ate lá.

A festa estava em grande, era uma multidão que ali estava, distribuída por várias mesas compridas, em redor de uma outra cheia de iguarias. Os meus amigos acenaram-me, lá estavam eles, no centro de tudo. Explicaram-me depois que os preceitos sociais continuam a ser levados a sério por aqui. Ao centro os convidados de honra, os estrangeiros, que se servem primeiro da comida. Depois, num segundo anel, as pessoas locais mais importantes que se servem a seguir, e por fim todos os outros participantes no evento.

Disseram-me para me servir à vontade. O meu estômago nem queria saber de comida ainda, mas aproximei-me, desconfiado. Hum. Tudo tem bom aspecto “afinal”. Tirei uma porção de carne em cubos e uma colherada de arroz branco. Voltei para o pé deles e comecei a comer. Nem queria acreditar! Que coisa deliciosa! Depois de meses a noodles e caril, de repente estou perante uma mostra de gastronomia portuguesa. A carninha cozinhada em vinha d’alhos, que sublime! Juro, não me recordo de comida que me tenha sabido tão bem. Em toda a vida. E cerveja! Bitang, um bem precioso, porque é relativamente caro. E aqui, uma caixa, em cima da mesa, geladinha. Bebi uma a acompanhar a refeição e depois perguntei aos meus amigo se seria abusivo beber outra. Que não que ofensivo seria NÃO beber. E lá foram quatro latas, que bem que me soube tudo aquilo

Depois de se perceber que toda a gente estava saciada, retirou-se a mesa e começou o baile. Um gosto para a vista. Ver aquelas pessoas, étnica e geograficamente sem nenhuma relação com Portugal, mas historicamente e culturalmente tão próximas. A banda cantou o Vira e outras coisas lusitanas, e os pares dançaram como se faz ainda por cá, nos bailaricos de paróquia, de uma forma que não acontece em mais parte nenhuma da Ásia. Mas tive que me render. Eles ficaram ainda na festa, eu fui dormir e como uma pedra o fiz.

 

 

 

 

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