Timor tem este problema: uma boa parte dos viajantes que aqui chega vem de um período na estrada já longo, cansados, saturados. E depois as impressões não são as melhores. Comigo podia ter sucedido o mesmo. Depois de dois meses a cruzar a Ásia e de duas intoxicações alimentares, cheguei enfraquecido e totalmente farto de comida asiática. Sem paciência para resolver problemas, daqueles do dia a dia do viajante, como descobrir que transportes públicos usar ou escolher uma tasca para comer.

Felizmente havia a Katy, que me tomou sob a sua asa e me acompanhou, oferecendo-me boleia, companhia e sabedoria, durante boa parte da minha estadia em Timor Leste.

Neste primeiro dia completo no país, saímos pela manhã para o tour tradicional da cidade de Dili. Começámos por espreitar a praia do Cristo Rei, ali ao lado. O fim da estrada que vem da cidade, passando na Areia Branca. Em tempos contornava o promontório e conduzia a uma outra praia existente do outro lado, mas uma derrocada interrompeu esse troço que nunca mais foi reparado.

Depois seguimos para a cidade. Os locais obrigatórios, vistos desde o carro: o Museu da Resistência, a Casa do Sporting, a Casa do Benfica, o antigo Mercado Municipal, a Igreja Matriz. Parámos para visitar o mercado. Um dos mercados. Andámos por ali a pé, a ver. É incrível que em Timor até o frango grelhado parece que cheira a Portugal. Os fumos que me chegavam ao nariz só me faziam lembrar a saudosa Feira Popular de Lisboa, onde tantas vezes fui na infância e juventude!

Trocámos umas palavras com uns putos atrevidos, que apesar de quase imberbes eram condutores de táxi. Ou pelo menos um deles era. Meti conversa com um homem sentado à porta de sua casa, nada mais nada menos do que sobre uma antiga peça de artilharia portuguesa que faz parte de um antigo memorial que ali existe. Falava português, com a incredulidade de quem não acreditaria que o voltaria a falar. Como todos os timorenses da sua idade, aprendeu a nossa língua antes de 1975 e quando os indonésios vieram e proibiram a utilização do português, deverá ter pensado que não tornaria a utilizá-lo. Mas agora ali estava eu, a falar com ele.

Quase de seguida fomos ao Cemitério de Santa Cruz, aquele famoso local onde um grupo de militares indonésios abriu fogo sobre uma multidão que pouco tempo antes tinha esfaqueado até à morte um seu major – um pormenor muito esquecido em Portugal, como mandam as conveniências políticas – e que desencadeou o processo de independência de Timor Leste perante a Indonésia. Fomos só espreitar, voltaria depois com mais tempo para ver com atenção.

Mesmo em frente existe um outro cemitério, indonésio, com campas de simpatizantes timorenses pela integração naquele país e, claro indonésios. O espaço estava vazio quando chegámos, apesar de à saída vir a chegar um grupo de indonésios com ar de turistas. Vazio com excepção de um jardineiro que ali trabalhava. Fomos lá meter conversa e de novo aquela expressão de incredulidade. Fomos puxando por ele. Como é que falava português? Tinha aprendido na escola. E agora vem a parte mais impressionante, que não me tinha ocorrido: esta malta que falava connosco na língua a que chamamos nossa, não voltou a usar o que trouxeram da escola nos últimos… 40 e tal anos… desde 1975. A este perguntei directamente quando tinha falado português e era isso… desde 1975. E contudo ficou na memória, claro, como ficam gravadas as coisas que aprendemos na infância. Falou cobras e lagartos dos indonésios e da ocupação mas, claro, se calhar aqueles que vinham a entrar falaram com ele depois o deixarmos e repetiu as mesmas coisas sobre os portugueses.

Parámos em frente à Igreja Matriz, onde entrei brevemente e vi o tocante  monumento que ali se encontra defronte, próximo do porto, junto a um jardim mal tratado e pacato onde um casal de jovens namorava. O memorial é inspirado numa fotografia tirada no dia do massacre do cemitério de Santa Cruz. Aliás, na realidade num fotograma da filmagem que capturou o momento.

Já não se fez muito mais neste dia. O calor é terrível e suga energias, sobretudo a quem não está habituado. Fomos até um hostel onde a Katy dá uma mãozinha por amizade aos proprietários, ambos portugueses. Bebi um belo sumo e descontraí sob as sombras das árvores do jardim.

Fomos para casa. Pedi à Katy para me deixar na praia ali à beira. O café que visitei no dia anterior estava fechado. Comprei uma bebida fresca noutro. Sentei-me um pouco a apreciar o momento, aquelas cores fabulosas, a praia encantadora, quase vazia. Noutra mesa sentavam-se duas amigas que conversavam, acho que portuguesas. Senão, australianas. Certamente ocidentais. E havia meninos que brincavam. Um casal timorense estava sob uma sombra e ao longe um homem tratava da manutenção do seu barquito de pesca.

Estes momentos na Praia da Areia Branca serão gravados na minha memória como sendo daqueles instantes mágicos, que trazem algo à alma. Neles, fugi para a meninice, para um Portugal que já não existe, o meu Portugal de início dos anos 70, onde em Alvalade se sentia o Império Colonial à distância. As coisas não seriam muito diferentes por aqui, onde portugueses faziam por viver o melhor do seu afastamento da Pátria. Funcionários públicos, negociantes, militares. Certamente fariam então o mesmo que fiz agora.

Voltei para casa, passei pelos miúdos da comunidade vizinha que brincavam. Passámos o serão por ali, naquela varanda fabulosa com vista para o Paraíso.

 

 

 

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