22 de Outubro

Abro os olhos e consigo ouvir claramente a chuva a cair. Deixo-me estar um pouco, antes de verificar as horas. São 7:22. A minha companheira de quarto já se foi, em direcção a Sarajevo. Já fiquei a saber que há dois comboios diários, e decorei a hora do que me interessa: 7:50. Cinco Euros até à capital da BiH. E dizem que a viagem é muito agradável, com uma paisagem assombrosa. No que toca à minha próxima deslocação parece estar tudo bem definido.
O tempo passa e a chuva não dá sinais de abrandar. Já estou farto de estar na cama, levanto-me, como qualquer coisa e dedico-me ao meu passatempo favorito neste “hostel”: olhar para a parede e pensar na vida. De repente faz-se silêncio. Já não ouço o tamborilar da água lá fora. Pronto, é agora. Pego na trouxa e saio. Mal ando duzentos metros, começa o aguaceiro seguinte, o que me faz abrigar debaixo do toldo de uma farmácia. Passam-se os minutos, e a chuva intensifica-se. Espero, espero e continuo à espera. Por fim, a borrasca amaina. Ainda chove, mas estou tão farto de estar ali que arranco, mesmo assim, com a câmara metida para dentro do casaco impermeável. O meu primeiro objectivo, definido por não ser vulnerável à queda da chuva, é o edíficio que um dia foi sede de banco e se tornou ninho de “snipers” durante a guerra. Claro que foi generosamente brindado com todo o tipo de projecteis, mas a construção era de boa de qualidade, porque lá se mantém, desnudado mas sólido. Já tinha lido sobre este prédio há alguns meses, num blog de viagens. Mas até encontrar a viajante australiana no hostel de Dubrovnik, não fazia ideia de onde o encontrar. E afinal, era ali tão perto, talvez a 600 m do meu alojamento.




Exploro aquilo tudo, andar por andar. Como esperava, o tempo xoxo que se faz sentir não implica nada com esta experiência. Bem pelo contrário, é ideal para o tipo de ambiente em que me encontro, e ajuda à fotografia, que é pensada para preto e branco. O local é interessante, mas não especialmente impressionante. Depois, os pisos são todos iguais, só mudando o graffiti. Vou subindo, um após outro, e perco a conta… no final serão sete ou oito pisos, e dos cimeiros usufrui-se de alguma vista sobre a cidade. Num canto encontro o alojamento de um sem abrigo, completo, com a caminha, uma série de maçãs empilhadas a um canto, um isqueiro e um baralho de cartas. Penso como será viver paredes meias com um mongo daqueles, observo os vizinhos através do que eram as janelas. Em frente, uma cozinha normalissima, e em baixo uma senhora que estende a roupa. Olho para a rua e compreendo a atracção dos “snipers” por esta prédio. De facto, a posição é ideal para o seu tipo de acção. Um paraíso para franco-atiradores… se o oponente não dispuser de artilharia, claro.

Vim encontrar em Mostar o que esperava ver em Sarajevo: vestígios de uma guerra que terminou há quase 20 anos… terminou? Ou está apenas congelada, como uma semente no solo aguardando o inicio de uma nova estação? A opinião de muito do pessoal internacional que está envolvido em operações na BiH é de que o país não tem sustentabilidade, e que no dia em que a ONU / NATO sair do terreno, não tardará até que a violência incendeie de novo estas terras. Olhando para Mostar não é díficie acreditar: numa cidade, há dois de tudo, um para cada comunidade; dois hospitais, dois sistemas escolares… e se não há três é porque não restaram por aqui muitos sérvios, removidos voluntária ou involuntariamente para a sua “república”. O que me leva a pensar na estranheza de atravessar uma fronteira sem guardas no interior de um mesmo (na teoria) país. Quando vinha de Trebinje, um pouco antes de Stolac, lá estava, o aparato que se costuma ver nas fronteiras: “Bem vindo à Srpska Republika”… ou seria à “Republika Srpska”? Baralho-me sempre… uma é Sérvia propriamente dita… a outra é a BiH controlada pelos sérvios.


Por quase todo o lado os edíficios estão crivados de chumbo. Muitos, estão completamente destruidos. Uns são pequenos, quase insignificantes, pequenas casas que foram em tempos de uma só família. Mas outros são ainda hoje monumentais, prédios como já não se fazem, erigidos pelas autoridades de Viena, quando os Habsburgos mandavam em terras da BiH. Mais tarde, perto do centro, visito uma exposição (de entrada gratuita, uma raridade) sobre a recuperação do património urbano destruido durante a guerra, e reconheço muitos dos escombros que fui avistando ao longo do dia, e que esperam a sua vez na longa lista de trabalhos a fazer.

Por quase todo o lado os edíficios estão crivados de chumbo. Muitos, estão completamente destruidos. Uns são pequenos, quase insignificantes, pequenas casas que foram em tempos de uma só família. Mas outros são ainda hoje monumentais, prédios como já não se fazem, erigidos pelas autoridades de Viena, quando os Habsburgos mandavam em terras da BiH. Mais tarde, perto do centro, visito uma exposição (de entrada gratuita, uma raridade) sobre a recuperação do património urbano destruido durante a guerra, e reconheço muitos dos escombros que fui avistando ao longo do dia, e que esperam a sua vez na longa lista de trabalhos a fazer.


A parte antiga da cidade é altamente recomendada. Talvez na época alta sofra de congestionamento turístico, mas agora, em Outubro, está perfeita. É uma coisa pequena, mas adorável, que se estende num raio médio de uns 200 metros a partir da famosa ponte. O casario, tão castiço, tipicamente otomano, com muitos elementos em madeira, estende-se de um e do outro lado da calçada, feita de luzidias pedras. Na margem oriental, o comércio tradicional impera, com algumas lojas vocacionadas para os turistas, e outras, nem tanto. Do outro lado é o reino dos restaurantes, a que se segue a zona da venda de recordações. A zona merece ser explorada de forma exaustiva. Há as mesquitas e a ponte sobre uma ribeira que aflui ali mesmo ao grande rio, e que tem uma pequena ponte ainda mais velha do que a chamada ponte antiga. Isto é, ambas são réplicas. A principal, como se sabe, foi destruida pela artilharia croata, em 1993. Mas a outra, menos famosa, derrocou durante umas cheias, mais tarde, apesar de os especialistas atribuirem o seu desmoronamento aos danos estruturais sofridos durante a guerra. Depois, há os restaurantes, que são por si um primor de se ver. Cada qual com a sua peculiar arquitectura, oferecendo recantos pacatos aos clientes, que das mesas podem apreciar o fluir das águas com privacidade quase completa





Mas o prato principal em Mostar é de facto a bem conhecida ponte de um só arco, e os edíficios circundantes, que constituem um complexo monumental. Tive a primeira perspectiva diurna desta estrutura a partir do recinto do mercado, local a não perder, onde o visitante pode adquirir uma saca de figos secos por 1 Eur, e aguardente local, acondicionada em garrafas de água e vendida ao desbarato… mel e frutos locais recomendam-se, com a garantia que tudo aquilo é altamente natural. Antes de passar a ponte, explorei mais da margem oriental, e, sem saber como, fui dar um ponto que oferece uma excelente perspectiva, onde aliás existe uma prancha para saltar para a água. Cheguei atrasado uns meros segundos e perdi um mergulho a partir da ponte antiga… quando me aproximava ganhei primeiro a perspectiva da pequena multidão que da margem soltava as suas exclamações de encorajamento… vi ainda o destemido jovem, posando para a fotografia com um espectador… aguardei, na esperança que houvessem mais corajosos, mas não, tinha sido caso único.

Depois, voltei atrás, atravessei a ponte, e fui até à zona mais popular para dar uma mirada ao monumento. Dali explorei o banco ocidental, com as suas casinhas castiças transformadas para as necessidades económicas dos tempos modernos. Afastei-me, sai da zona nobre, entrei numa rua comum e chegou-me ao nariz o perfume tentador de pão acabado de cozer… olhei em redor e detectei a fonte do aroma. Entrei na padaria e comprei um belo pão local e uma espécie de pãozinho de leite enorme recheado com queijo. O pão alimentou-me nos três dias que se seguiram, e o outro petisco saciou-me a fome que sentia. Acabei por voltar a atravessar a ponte antiga, espreitando uma livraria que se encontra mesmo junto à sua extremidade oriental. Bem, se existe um livro em inglês sobre a região ou uma tradução de um autor local, então podemos estar certos que existe naquela loja.

Ainda fui espreitar uma exposição sobre a guerra em Mostar, mas 3 Eur pela entrada, não. De novo, como em Dubrovnik, fiquei admirado pela comercialização de um tema que seguindo a lógica devia ser promovido e oferecido gratuitamente, para captar simpatias internacionais. Vim andando calmamente, em direcção ao hostel, espreitando aqui e acolá, entrando num recindo recatado onde existe uma pequena exposição de artesanato e uma mesquita. Todas as mesquitas encontram-se abertas aos visitantes… por um preço… que é de 2 Eur. Acho mal. A sério. Não é por gostar de borlas, mas fazer dinheiro com a casa de Deus é algo que acho bizarro, senão aberrante.

Cansado, cheguei ao hostel, comi qualquer coisa e fui online. Tinha um e-mail de uma croata a quem tinha pedido alojamento (Couchsurfing), que infelizmente não me podia receber mas desafiava-me a beber um copo com ela e com uma amiga. Mail para cá e mail para lá, em tempo real, e depois Skype, e combinámos um encontro para as 21:30.

Primeiro bebemos qualquer coisa num bar no topo de um edíficio, na zona croata, claro. Depois passámos para outro sítio, onde consumimos mais umas bebidas. Havia música ao vivo, e de repente começa-se a cantar Sevdah! Que maravilha. Tinham-me dito, que o dono do hostel quer a própria Lilianja, que esquecesse isso de ouvir Sevdah ao vivo. Murcho, conformei-me. Era um dos grandes objectivos desta viagem, depois de ter adorado o documentário que vi, produzido pela BBC, Sevdah Mostar. E agora, inesperadamente, ali estava eu, numa sala animada pelo calor desta música temperamental, uma parente afastada do nosso fado, repleta de emoções e drama. Gravei com o telemóvel. Pronto, eram duas da manhã, tempo de despedidas. Passei uma noite óptima com a Lilianja e com a Marina.

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