25 de Outubro


Um  dia bem preenchido. Sou o primeiro a acordar na casa. Olho pela janela e não vejo Sarajevo. Um manto de nuvens está no seu lugar. Só as montanhas em redor trazem um pouco de realismo terrestre a esta visão celeste. É cedo e não sinto necessidade de me apressar. Tomo o pequeno-almoço nas calmas e entretanto os outros habitantes vão emergindo dos seus quartos. Já a manhã vai quase a meio quando me lanço à descoberta. Primeira paragem, o forte otomano que, sobranceiro, se ergue mesmo aqui ao lado, a uns 400 metros de casa. O ar frio e limpo agrada-me. Está um tempo ideal para estas andanças. A cadela do Oliver acompanha-me, inesperadamente. Ora atrás, ora à frente, mas não me perde de vista. Quando falo com ela, fica nervosa, foge. Mas escolta-me, e sinto-me bem com esta guarda-costas de improviso. Quando chego às ruinas, estão lá três cães selvagens, que ela, pequenita, afugenta num instante, feroz, em minha defesa. Depois, à medida que vou explorando os recantos do forte, ela segue-me, desaparecendo por vezes durantes uns segundos, verificando a minha posição pouco depois. Naquele alto, para além da velha fortaleza encontro um edíficio diferente, moderno e sombrio. Parece um bunker, feito de betão armado. Diz-me o Oliver ao jantar que era uma prisão, para delitos políticos, e que ali chegaram a ser executados alguns prisioneiros. Aquilo sofreu muito durante a guerra. Está tudo crivado de balas e vêem-se alguns impactos directos de artilharia, buracos circulares abertos na estrutura, Algumas partes estão negras, de fogo. As vistas são excelentes, tal como de resto de casa do Oliver. Sarajevo é uma mancha lá em baixo, que se abarca com um só olhar.


Terminada a visita, volto a passar em frente a casa. O Oliver disse-me que mais adiante existe um hotel em ruínas, e encontro-o. Igualmente mal tratado pela guerra, carbonizado, esburacado pelo “chumbo”. Não é díficil compreender a existência de um hotel ali. Tão perto e tão longe da grande cidade. Exploro os diversos pisos, tiro fotografias ao desbarato, sempre acompanhado pela minha escolta canina. Depois, sigo a estrada, com a pista abandonada de “bobsleigh” em mente. A 5 ou 6 km, tinha-me dito o meu anfitrião. Mas passada meia-hora de passo firme desisto. A cadela não pode vir comigo, porque de lá pretendia descer à cidade. Tenho que voltar para trás.

Passo um bocado em casa, relaxo, leio um pouco. E quando tento sair discredamente o bicho está pronto para mais uma passeada, e tenho que ser firme para evitar a repetição da cena. O pobre animal fica desconsolado. Mas tem de ser. Portanto, desco por ali abaixo, improvisando… mas descer é mais simples, e não falo do aspecto físico… simplesmente a referência é simples… sempre para baixo e a cidade estará lá. Passo pelos bairros construidos pela encosta, pobres, casas improvisas, habitações em mau estado. E acabo por a encontrar precisamente onde quero, na “ponte latina”. Depois foi explorar um pouco. Encontrei a fábricas de cerveja de Sarajevo, que, construida sobre um manto subterrâneo de água de excelente qualidade foi essenial durante o cerco à cidade, a única fonte do precioso liquído para a população que ali acorria para se abastecer. Encontro uma ponte que considero mais interessante que a famosa “latina”. Depois, subo a um cemitério, descrito nos painéis informativos como “muito bonito”, mas não lhe acho piadinha nenhuma.


Entro pelo “passeio dos embaixadores”, um caminho à beira rio assim chamado porque à sua margem as árvores foram plantados por embaixadores. Sintomaticamente quase todas elas são mirradas, algumas practicamente cadáveres… no meio da miséria a do nosso embaixador é frondosa, está linda. O passeio é excelente, mas o que procurava não encontro: a chamada “goat’s bridge”, que nas fotografias parecia bem interessante. Contudo, ando, ando, quase chego ao fim do mundo, mas de ponte antiga nem cheiro. Acabo por desistir, depois de andar uns 2 km, considerando que tudo o que faço para a frente terei que fazer para trás. Gestão de esforços. Este bocadinho traz-me à memória a minha pátria adoptiva, o país do meu coração, a República Checa, que tem paisagens tão semelhantes, e enquanto ando o meu pensamento perde-se por essas paragens.



Regressado ao coração da cidade tento encontrar algumas coisas, mas sem grande sucesso. Procuro o local onde se deu o grande massacre do mercado, quando uma granada caiu no meio de uma multidão que procura abastecimentos. Não encontro a famosa “rosa”, marcas criadas por cera vermelha derretida nos locais onde morreram pessoas de forma mais trágica durante a guerra, mas vejo uma placa alusiva da ocasião. Ando para trás e para a frente na mesma zona, naquela rua pedestre, tão popular para os habitantes de Sarajevo, onde se encontra a cadedral católica. Tenho fome, está a ficar frio e preciso de usar a Internet. Conjugo tudo isto procurando abrigo no restaurante em frente ao bar onde na véspera usei a rede wireless, que exploro indecentemente enquando me delicio com um belo petisco bósnio, aqueles croquetes de carne servidos com pão local e um molhinho de cebola picada (3,50  Eur… espantoso, não é…. foram 10 “croquetes”). Cerveja não há, porque aquilo é uma casa de bons muçulmanos, mas não faz mal. Vai a seco e não vai nada mal.

A noite cai, procuro um táxi Paja, porque os dessa cooperativa são honestos e quase todos conhecem a casa do Oliver. Encontro um, que alegria. Pronto, hoje chego sem mais aventuras. Mais tarde juntam-se-nos duas Couchsurfers e eles jantam – eu ainda estava empaturrado – enquanto me sento à mesa fazendo companhia com o vinho branco, produção da família do Oliver, em terras de Herzegovina.

Uma breve nota para falar de coincidências. Em Dubrovnik, estava eu de partida para Trebinje, e vejo dois homens jovens, vestidos como talibans, de barbas longas mas feições europeias… o condutor do mini-bus para Trebinje vai falar com eles, dá para entender que os está a desafiar a viajar com ele, e denoto ali uma dose de humor negro – Trebinje é um bastião de ultra-nacionalismo sérvio e os rapazes teriam uma vida complicada por lá. Bom, uns dias depois, estou eu a passear por Mostar e vejo-os de novo, desta vez estabelece-se contacto visual, eles sorriem-me e dizem-me adeus. Coincidência? Talvez… mas para a coisa ficar completa, foi preciso chegar a Sarajevo, onde no segundo dia, ao cruzar a praça antiga, eis que me cruzo com estes dois cromos. Um deles olha para mim, eu olho para eles, rodo a cabeça, o primeiro chama a atenção ao segundo e pronto… mais sorrisos e acenares, grandes sorrisos de parte a parte. Excepcional. Mas para acabar a noite há mais: em Dubrovnik, no meu beliche, no primeiro andar, estava uma rapariga. Mal falámos, para além dos “oi” diários… e de repente, o Oliver diz-me que vamos ter mais Couchsurfers hoje e ali está ela, sorridente, de novo a partilhar o meu tecto.


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