2 de Novembro

A caminhada para a estação de autocarros é muito mais simples do que esperava, Com as indicações preciosos destes amigos, tomei o caminho mais directo, e que diferença fez. Acabei por chegar quase uma hora antes. Estava eu na estação quando ouço o som mais temido de todos quando viajo: português. Um grupo de 5 ou 6 homens ocupa uma linha de bancos e à boa moda lusitana faz questão de se fazer ouvir por todos os ocupantes da estação e redondezas. E eu passo por eles de lado, procurando esconder a bandeirinha nacional da mochila, e sento-me. Depois, vendo como estão à toa sobre o que fazer a seguir, e num raro acesso de generosidade, aproximo-me e explico-lhes o que precisam de saber: autocarro para Sarajevo às 9. Comboio é muito giro mas não é boa ideia porque estão de greve e só há serviços mínimos. Dois tiros no pé. Não só me identifiquei como português mas garanti que ia ter “companhia” durante três horas. E que companhia, logo atrás de mim!

Cheguei a Doboj, onde contava passar o dia antes de prosseguir para Brcko. Porquê? Essencialmente porque queria visitar o castelo, referenciado como um dos mais espectaculares do país, e depois logo se veria, apesar da palavra de que a cidade era bastante desinteressante. Caminhar até à fortaleza não foi complicado. Díficil foi constatar que se encontrava encerrada e que assim estava anulada a única razão válida para ter gasto um dia inteiro de viagem. Autocarro para Brcko só ao fim da tarde. Portanto,pela frente, uma tarde de ócio.

Lá encontrei um café com acesso wireless, bebi duas cervejas, passei ali umas três horas, até me saturar e decidir andar até à estação, esperando lá a hora restante. Confirma-se. Doboj é uma cidade pardacenta, sem nada. Vale a experiência pela observação da comunidade sérvia. Passeei pelas ruas, atravessei o mercado e a área junto à escola. O sol, que hoje acenou de longe por detrás do habitual manto cinzento, rapidamente se escondeu de novo, e pelas 16 horas estava eu a caminhar em direcção ao destino final, já com um ambiente bastante escuro em redor. Doboj é maior do que esperaria. É um centro de circulação importante na parte sérvia do país, um ponto de encontro de comboios e autocarros, e talvez por isso tenha crescido assim.

Não me agrada chegar a uma cidade (e muito menos a uma aldeia) estranha depois do sol posto, mas a seguir a Banja Luka aqui estou eu, caminho de Brsko, onde vou chegar bem depois do escurecer. Na realidade, já saio de Doboj noite feita. O autocarro é, nada mais nada menos, o mais confortável onde já assentei o traseiro. Uma maravilha. Um Mercedes de topo de gama oferece o conforto de um triciclo quando comparado com aquele autocarro. Fora de brincadeiras! Espaçoso, cadeiras com uma ergonomia espantosa, ar condicionado bem regulado, luz de leitura… o luxo era tal que me deixei embalei e passei pelas brasas, e quando cheguei, amaldicoei os deuses por ser lançado no ar frio da noite em vez de ficar ali naquele paraíso sobre rodas até à eternidade.

Portanto, ali estou eu, numa estação de autocarros que na realidade é uma plataforma exterior, tendo como companhia uma figura de natureza indistinta que dormia num banco, e mais ninguém. Espero o meu anfitrião que basicamente não fala inglês. O que significa que “lost in translation”, ele pode não aparecer ou algo assim. Mas antes que a minha imaginação voasse para onde não devia, vejo uma face inquisitiva e sei que é ele. No apartamento, a esposa, sorridente, hospitaleira. Ah mas eles nao falam inglês, pergunta o leitor, como é passar um serão assim? Eu explico. Primero, existe um inglês rudimentar, depois, o punhado de palavras eslavas que eu sei. Mas a arma nuclear do arsenal de comunicação é o Google Translator. Portanto, ali estamos nós, a conversar através do Google Translator. Quão bizarro é isto? Acrescente-se que de tempos a tempo a rede wireless do vizinho falha e ficamos a olhar uns para os outros. Pausa forçada na conversação. Esqueci-me de um “pormenor”: assim que cheguei foi tudo posto à minha disposição. Tens fome? Toma lá uma sopa e um schnitzel de frango com puré de batata caseiro. Queres duche? Toalha e sabonete, e é ali. Depois, slivovice caseiro. E tudo o mais. Tal como em Banja Luka até senti receio de pensar num desejo, porque aquela gente estaria capaz de matar um vizinho para o saciar e isso, achei eu, seria um pouco excessivo. Agora, o que interessa é que seja lá como for, ficou provado naquela noite que a figura de barreira linguística é imaginária, se não se quiser debater Descartes ou Kant.

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