O segundo dia começou como o primeiro: acordando numa casa vazia pouco depois da Sueli sair para o trabalho. O trânsito faz um ruido imenso, há um eco que parece subir pela fachada do prédio até entrar na janela que se mantém aberta na esperança que alguma corrente de ar refresque o apartamento. Para hoje o plano é visitar a Cidade Velha, a primeira capital de Cabo Verde, estabelecida pelos portugueses há centenas de anos atrás, saqueada vezes sem conta por piratas de várias origens até à construção da fortaleza de São Filipe, lá para finais do século XVI. Os ataques pararam mas era demasiado tarde. A cidade estava em declínio e acabou por ser  substituída pela Praia como urbe maior do arquipélago.

Hoje, Cidade Velha é uma pacata aldeia com uma comunidade própria, visitada por turistas que procuram conhecer o passado colonial das ilhas. E, afinal de contas, trata-se do único local do país classificado como Património Mundial pela UNESCO.

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Caminhei calmamente pela rua onde fui tão feliz nestes meus dias de Cabo Verde. Muita gente poderá dizer que o transporte para a Cidade Velha arranca de um local chamado Terra Branca. É isso que em referido no meu guia e é isso que é confirmado pela Sueli. Mas não é verdade. Provavelmente foi, mas é para esquecer. O transporte colectivo para a Cidade Velha apanha-se junto ao mercado da Sucupira. Não há que recear não o encontrar no meio da confusão. Maravilhas da língua comum. Basta perguntar a alguém por ali onde é aluguer para lá e logo nos indicarão com precisão. Custa apenas 80 Escudos, menos de 0,80 Eur. Mas, claro, é um transporte colectivo privado e só arranca quando estiver cheio ou quando o condutor achar por bem. Por vezes o “capitão” arrisca, inicia a viagem sem os lugares estarem todos tomados, convictos que poderá recolher os restantes passageiros mais à frente.

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A viagem é só por si uma actividade e vale o preço e bastante mais. Há quem diga que se deve escolher um aluguer ainda vazio e tomar os lugares da frente. Porque são mais confortáveis e a carrinha enche muito. Mil diabos, não! Por isso mesmo é que se deve ir lá para trás, para ser ver melhor e sentir o ambiente, para interagir com os outros passageiros, sorrir com tudo aquilo… que piada tem ir lá à frente, como um barão branco intocável…?

A carrinha arranca, depois de muita hesitação, de ligar e desligar de motor de meter e tirar a primeira velocidade. Ainda está apenas meio cheia, mas logo à frente há mais gente para embarcar. Vendedeiras que vêm do mercado dos vegetais e das frutas, enchendo o espaço com o amarelo de bananas. Depois paramos na estação da Shell. Para meter combustível e mais passageiros. Já vão saindo alguns dos primeiros, que não querem ir até à Cidade Velha. A meio caminho, na rotunda das universidades, mais uma revoada, com pessoas a entrar e a sair. Como gosto destes transportes que são um autêntico documentário de vida local!

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Já à chegada à Cidade Velha mais uma paragem e aproveito e saio logo, para espanto do condutor que confirma se não quero mesmo ir até lá a baixo. Estou é desejoso de ver tudo aquilo, e vou começar já. Está um dia excelente para estas andanças, talvez apenas um pouco nebulado… quer dizer, está sol mas existe uma névoa que rouba o azul do mar e do céu, acizentando-o.

Vejo a povoação de cima, a uma certa distância e vou-me aproximando. Encontro primeiro a catedral, arrasada pelos piratas, feita na ruína que se manteve até hoje. Era imensa, considerando o tamanho da comunidade. As pedras foram trazidas de Portugal e mesmo na altura a sua construção foi muito criticada: muitas pessoas viram o evidente, que a estrutura era sobredimensionada.

Ali deu missa o famoso Padre António Vieira, a caminho do Brasil. Mas a catedral acabou por perecer quando o pirata francês Jacques Cassard ignorou a poderosa fortaleza de São Filipe a a destruiu completamente em 1712. Foi um sinal para a hierarquia eclesiástica se mudar de vez para a Praia.

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No seu interior uma turma de alunos, jovens, veio numa viagem de estudo e a professora fala-lhes. Apanho apenas uma passagem solta… “(…) porque este é também o nosso passado (…)”. Levantam-se pouco depois, descendo à aldeia, deixando o espaço para meu usufruto exclusivo. Olho para cima, para a fortaleza que resiste. Havia mais, na Cidade Velha, mas também elas foram arrasadas a seu tempo, uma em cada ponta da pequena baía, a mais próxima mesmo ali ao pé, actualmente escondida por uma casa que lhe corta o acesso. Tento perceber qual é a forma de chegar até ela a partir daqui. Sei que existe uma estrada para quem chega de carro. Vi a indicação, clara, um par de quilómetros antes de chegar. Suspeito que a viela que sai aqui das imediações da catedral destruída, sempre a subir, cruzando uma espécie de subúrbio da aldeia, há-de me levar até lá, mas deixo para descobrir mais tarde.

Quero ver o mar, descobrir o que há do lado oposto da estrada, e seguindo uma estradita que é marcada com uma seta dizendo “Curadoria da Cidade Velha” descubro por acaso umas outras ruínas, bem diferentes. Não sei ao certo o que seria o Marimar. Talvez um restaurante, uma discoteca…? O que quer que seja estava colocado numa bela posição, mas algo correu bastante mal.

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Na parede exterior, uma inscrição: “Proibido entrar antes de riparação. Sem autorização do guarda”. Uma “riparação” que já não deverá chegar, porque o espaço encontra-se para além de qualquer possibilidade de salvação. É uma espécie de pardieiro, casa de banho pública, local de actos inenarráveis. Quanto ao guarda, sabe-se lá quem seria… talvez o velhote que se aproxima quando me apresto para sair, expressão amargurada, muito crispada. Digo-lhe “bom dia” e a sua face ilumina-se, como se se tratasse de um milagre, como se repente fosse outra pessoa. Responde-me, derretido, “bom dia, senhor”.

Detenho-me por um instante num ponto estratégico de onde se obtém uma perspectiva excelente sobre a aldeia, lá em baixo,  e a sua praia de pescadores. É mesmo junto aquela casa que barra actualmente o acesso ao pouco que resta de um dos fortes menores.

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A próxima meia-hora ou isso vou passá-la lá em baixo, sentado num muro de pedra a ver a faina que envolve um pequeno barco vindo da pesca e os dois “putos” que fazendo folga se recreiam com uma bola de futebol. Atrás de mim ouço o coro ritmado das crianças que no interior da única sala da escola primária vão seguindo o exemplo da professora. Logo por detrás, no eixo central da povoação, há casas que poderiam bem ter sido retiradas de uma qualquer aldeia portuguesa, como se estivesse num museu etnográfico ao ar livre. Ao meu lado alinham-se alguns peixes, separados por alguma razão da colheita principal com que mais à frente os pescadores vão lidando.

Chega uma outra embarcação e dela saem dois rapazes com roupa de neoprene. Pescadores de mergulho. Entretanto os que estavam de volta do barco na areia terminaram a sua tarefa e afastam-se da praia. Um lembra-se de algo, regressa a correr. Era o motor. Convém levar o motor, não vá o diabo tecê-las.

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Sinto que chegou o momento de prosseguir, vou ver o que há mais além. Passo pelo que aparenta ser o largo principal, com uma espécie de rotunda em cujo centro se vende frutas, doces e pequenas coisas… chocolatinhos, pacotes de bolachas, rebuçados. A um canto está um autocarro que foi português, não muito antigo. Lembro-me de ver este modelo fazer a carreira 38, Largo do Calvário. É do que me lembro. Mas na testa do autocarro o destino marcado é outro: 21, Ajuda.

Pode não parecer à primeira vista mas o centro histórico é mais para trás, a seguir ao largo do pelourinho que, aliás, se mantém impecável (OK, com uma certa ajuda, depois de uma boa restauração… para a degradação do pelourinho é ver as imagens do pré-restauro). Na realidade, o que chama a atenção é a existência da rua da Banana, alegadamente o arruamento europeu mais antigo construído na África a sul do Sahara.

Ora a rua da Banana como de resto uma outra, paralela, são de facto merecedoras de uma visita. As casas parecem ter sido transferidas de uma aldeia açoreana, talvez querendo dizer algo sobre a proveniência dos colonos originais. Nos dias que correm há ali um misto de ocupação: algumas estão em ruínas, outras são habitadas por gentes locais, há as que estão para alugar, para turistas e, por fim, um par delas tem actividade institucional.

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No fim destas ruas encontramos a igreja de Nossa Senhora do Rosário, “simplesmente” o edifício mais antigo do povoado mais antigo de Cabo Verde. Logo, provavelmente, o edifício mais antigo do país. Também aqui o padre António Vieira deu missa na sua já referida passagem por Cabo Verde, quando viajava em direção ao Brasil.

Mais à frente encontra-se ainda o Convento de São Francisco, ou o que dele resta depois do tratamento administrado pelos piratadas naqueles tempos complicados. Não visitei, até porque neste dia nem sabia bem onde ficava, mas adianto já que basta subir um pouco o leito seco da ribeira.

Com a manhã avançada e o calor costumeiro, já ia sentido bastante sede. Era tempo de uma cerveja geladinha. Estudei as possibilidades. Havia as encantadoras esplanadas à beira-mar, por onde passei depois de ter atravessado a praça do pelourinho e ser abordado por alguns dos vendedores que ali procuram negociar o seu artesanato e outros artigos turísticos. Não se estaria mal ali, até a ler um pouco… mas não… queria outra coisa. Regressei à praça no centro e entrei numa loja daquelas que vendem um pouco de tudo. A capacidade de armazenar uma tão grande variedade de produtos num espaço tão limitado não deixa de me surpreender. Lá vi a arca frigorifica da Sagres, cheia de cervejinhas de outras marcas, que, ironicamente, a mais emblemática marca portuguesa não tem penetração no mercado cabo-verdeano. Pedi uma Creoula, paguei os 120 Escudos pedidos pela carrancuda proprietária do botequim e bebia-a ali mesmo, de pé, encostada ao balcão, procurando entender as conversas cruzadas dos três ou quatro homens instalados no interior daquele estaminé.

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Agora, forças retemperadas, era tempo de procurar alcançar a fortaleza. Não estava nos meus planos entrar, o preço era exagerado (500 Escudos), mas queria aproximar-me, ver as vistas lá de cima. E o meu instinto estava certo. A partir das ruínas da catedral é apanhar a viela que sobe e seguir até ao fim, quando parece que vai terminar. Depois é uma questão de passar um muro e logo se está num trilho que conduz naturalmente à entrada da fortaleza.

É um passeio interessante mas pouco recomendável em dias de intenso calor, o que felizmente não era o caso. Mesmo assim suei a bom suar. Gostei da subida, de passar pelo meio do casario, entre crianças que vão para a escola, vizinhas que trocam mexericos, donas de casa que estendem roupa (e que, eventualmente, dispensam intensos “bom-dia!!” aos estrangeiros que às suas portas passam, como eu).

Lá de cima a vista, admito-o, decepcionou-me. As condições de luz e visibilidade não seriam as melhores. Conquistei o cerro, olhei em redor, e regressei pelo mesmo caminho. E estava na hora de regressar.

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Foi fácil – como sempre é – encontrar um aluguer de regresso à Praia. Ainda demorou um pouco a arrancar, mas sem problemas, tenho todo o tempo do mundo e nem tenho grandes planos para o resto do dia. O percurso foi bem mais directo do que à vinda. Basicamente toda a gente queria ir para a Praia e então, depois da recolha inicial de passageiros, foi sempre a abrir. E ainda deu tempo para tirar uma das fotografias mais peculiares desta viagem: já à vinda tinha visto aquilo, um outro autocarro lisboeta a descansar para sempre num ferro-velho de beira de estrada, mas o mais fabuloso era o destino deixado para a posteridade, o da minha morada durante mais de metade da visa, Praça de Alvalade. Sabia que tinha que fotografar aquilo e já estava disposto a fazer o que fosse preciso para ali ir, mas uma lomba de controle de velocidade simplificou-me as coisas. Ali o condutor abranda e eu, postado à janela, disparo a câmara. Sucesso.

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Dei mais uma volta pelo plateau. Parei no supermercado, comprei abastecimentos e caminhei até casa, com um sorriso palerma de felicidade nos lábios. Gosto mesmo de estar em Cabo Verde.

Nessa noite a outra metade da equipa de viagem chegaria, no mesmo voo que eu, um pouco depois da meia-noite. A Sueli preparou um jantar delicioso que me soube como um manjar dos deuses. E o Ima recolheu-me em casa para irmos para o aeroporto. Obrigado TAP pela seca de duas horas, pela madrugada dentro, que me ofereceste hoje. Mais uma de muitas dádivas do mesmo género que sempre tens para mim.

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