Sábado. Terceiro dia em Cabo Verde. A Sueli não vai trabalhar hoje de tarde e somos convidados para a casa da mãe dela, em Pedra Badejo. Vai haver uma reunião de família, uma festa de aniversário. Mas para já, como todos os dias, quando acordo ela não está lá, já saiu. Com a manhã livre, a ideia era vaguear sem plano pela Praia.

O tempo não está especialmente agradável. O céu cinzento ameaça chuva mas para já roubou apenas a alegria do sol da véspera, mas a temperatura mantém-se óptima. Que dizer, que escrever, de uma manhã que parece não ter nada a assinalar, feita de repetições de bocados dos dia anteriores, mas afinal tão cheia de pequenos nadas.

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A ausência de sol tem algo de bom para a fotografia: com a luz vão-se as sombras e os contrastes fortes. Aproveito para fotografar fachadas de casas coloniais, regresso a pontos que no fundo da memória tinha assinalado como merecedores de uma outra oportunidade, como o belo mural dedicado a Amílcar Cabral.

Descubro mesmo o Quartel Jaime Mota, instalações militares nas imediações do Palácio Presidencial, na linha de uma longa tradição iniciada com os portugueses que, claro, construíram o edifício. O quartel está decrépito mas isso só lhe acentua o charme.

Na rua pedonal algumas mulheres continuam a vender os seus produtos, como que se recusando a abandonar velhos hábitos. É que o mercado de frutas e legumes costumava ser aqui, desde o tempo dos portugueses, mas agora está em obras e as instalações temporárias parecem não agradar a todas as vendedoras.

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Numa manhã um pouco fraquita, sentámo-nos na esplanada daquele que é já o meu café favorito na Praia, na rua pedonal, aquele onde a cerveja se vende a 100 Escudos. E mesmo defronte, oh que é aquilo… o museu Etnográfico está aberto!? Olha pois está. Tinha lido que estava em obras de remodelação que se eternizavam e de facto as vezes aqui tinha passado encontrara as portas encerradas, mas hoje está aberto. Tenho especial curiosidade em vez a casa por dentro, um exemplo característico de arquitetura colonial. No fim foi uma experiência mediana. Por 100 Escudos não perdi muito, e o tempo gasto também não foi significativo. Vê-se. A casa foi muito alterada, só resta mesmo a estrutura, e a coleção é muito (para dizer o menos) fraquinha. Como disse, estando ali à mão, pois que se visite.

Acabamos por descer a Sucupira mas como que a corresponder ao tempo tristonho também o mercado está a meio-gás, com apenas umas quantas bancas activas. Talvez por ser Sábado, mesmo que fizesse mais sentido o aumento da intensidade comercial de um mercado a um Sábado de manhã. Mas não. Nem mercado nem trânsito de “alugueres”. Está tudo mortiço.

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Fomos andando até casa. A Sueli queria-nos lá prontos à uma hora. Afinal atrasou-se, ficámos na preguiça, à espera. Depois chegou, mas como íamos à boleia com o tio Jorge, continuámos à espera. E à espera… e à espera… pareceu uma eternidade até que ele chegasse, com a filha, prima da Sueli, Jen. Logo grande ambiente, boa conversa, à medida que o jipe avançava pelos subúrbios da praia em direção ao interior. Foi uma forma de ver coisas diferentes, que sem um carro não estariam ao nosso alcance.

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A cidade fica para trás, e também os seus bairros periféricos e aldeias próximas. Agora a paisagem transfigura-se, vai-se tornando agreste e ganha uma verdura que não se imaginaria. As montanhas ganham forma e são espantosas, picos aparentemente inacessíveis com formas bizarras. Este Cabo Verde, rural, traz-me à memória os dias felizes de São Tomé, ganha algumas, vagas, semelhanças.

Os nossos amigos mostram-nos, lá em baixo no vale, a barragem da ilha de Santiago, onde se fazem picnics e se nada nas tardes preguiçosas de fim-de-semana. Olho em redor e vejo palmeiras e um mato verde e profundo. Quem diria que estou em Cabo Verde, uma ilha que aparece associada a uma secura profunda no imaginário do português comum. Paramos o carro. Vamos aqui a uma tasca reconhecida pelos afamados torresmos que prepara. Torresmos não é para mim, mas os meus amigos andam numa excitação. Oops… já não há. Mas afinal ainda aparece um prato para deleite do tio Jorge, da Sueli e da Jen. Para mim uma cerveja chega, obrigado.

O ambiente não é o melhor. Andam os tipos já um pouco alcoolizados, um deles mete-se com a Jen, enfim, incidentes de percurso. Mas de uma forma geral sinto uma hostilidade discreta no ar que não me descansa. Foi uma paragem curiosa contudo, ver os porquitos que se hão-de transformar em torresmos e as enormes panelas para o efeito. A cerveja estava boa, geladinha.

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Acabamos por chegar a Pedra Badejo, que antes se chamava simplesmente Santiago, o que pode causar alguma confusão em que não está a par da subtileza. Quando alguém na ilha de Santiago diz que vai a Santiago… quer dizer que vai a Pedra Badejo.

Tem uma população de cerca de dez mil habitantes, um ar tristonho – pelo menos esta é a minha percepção numa visita feita ao fim de uma tarde cinzenta, talvez num radiante dia de sol a coisa tenham outra atmosfera – e é aqui que vive a mãe da Sueli.

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A partir daqui foi só festa. Gente com uma hospitalidade enorme, que nos integrou logo como se fossemos família. À conversa na varanda com uma garrafa de grogue da ilha de Maio, que eu e o tio Jorge deitámos abaixo. As moças iam e vinham, bebericando, trazendo-nos petiscos. A posição era ideal: dava para falar com o pessoal lá da casa e ao mesmo tempo observar a actividade na rua.

Passam porcos e uma porca seguida dos seus muitos bácoros. Passam homens levando vacas pela trela. E duas senhoras de mais idade que se detêm para conversar mesmo em frente ao prédio. Passam putos e polícias, que a esquadra é mesmo ao lado. E de repente uma grande azáfama. Como as notícias correm depressa e em casa há gente que conhece meio mundo, em menos de nada sabemos que foi apanhado um gangue juvenil que já há algum tempo assaltava casas e que estavam a ser trazidos para as instalações policiais naquele momento.

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Chegou a hora de cantar os parabéns à aniversariante e comer do bolo de anos, empurrado com uma cerveja (ou teria sido com um copo de vinho…?) que o grogue já tinha acabado. Quer a primeira garrafa quer uma outra, preparada em casa com a adição de ervas aromáticas. Lembro-me do delicioso bolo de banana e da ida à mercearia, da troca de cumprimentos com o pessoal de lá, nada habituados a ver por ali gente de outras paragens. E da chuva. Choveu durante horas e continuou a chover enquanto um ébrio tio Jorge nos levava de volta.

Ainda fizemos uma paragem intercalar em casa dela para despachar um par de cálices de vinho do Porto.

Foi uma tarde em grande, que transformou um dia que ameaçava sair gorado numa bela jornada de viagem. Um programa que a chuva não estragou, um exemplo perfeito do que o Couchsurfing pode oferecer a um viajante.

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