No terceiro e último dia completo em Santo Antão não tínhamos grandes objectivos. Apenas um bem traçado: visitar a Ponta do Sol. E foi com isso em mente que após o pequeno-almoço descemos mais uma vez até Vila das Pombas. Ali é sempre fácil encontrar um transporte para aquele lado. Para chegar à Ponta do Sol será normalmente preciso mudar de “colectivo” na Ribeira Grande. Os preços poderão variar mas são sempre baixos. 100 ou 150 Escudos. E o mesmo depois, para a Ponta do Sol. Uns 100 Escudos. Uma ninharia por um transportes que por vezes se assemelha a um táxi privado, quando o condutor não quer esperar e segue logo com um ou dois passageiros. Ainda são uns quilómetros. Na Praia, por uma distância bem menos largam-se 1000 Escudos por uma corrida até ao aeroporto.

Os percursos costeiros – e os outros também – na ilha de Santo Antão são sempre fascinantes, mas esta estrada de Paul à Ponta do Sol é toda ela um espectáculo. Entre Vila das Pombas e Porto Novo passamos de novo por uma aldeia chamada Sinagoga que nos chama a atenção. Na volta pararemos aqui para explorar um pouco. Mas para já é direito à Ribeira Grande para mudar de transporte. Tudo se passa de forma simples e rápida e logo chegamos ao destino.

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A primeira impressão foi neutral. Estamos num amplo largo. Há uma igreja do outro lado de um jardim com muitas palmeiras e à direita a câmara municipal, instalada num edifício com uma imaculada pintura amarela que noutros tempos poderá ter pertencido a um português abastado, considerando os traços de palácio urbano. Existem mais umas casas pitorescas mas a maioria da edificação é tristonha e não chama a atenção.

A Ponta do Sol é das localidades mais turísticas da ilha, onde se pode com mais facilmente arranjar alojamento para todas as carteiras. E, pelo que dizem, está em expansão. Isto apesar da distância à “porta de entrada” em Santo Antão, o Porto Novo, e ao fiasco do aeroporto que aqui foi construído, bem junto à água, com uma pista que se inicia e termina literalmente no oceano.

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Depois de construído chegou-se à conclusão que não existiam condições de segurança para as operações aéreas, até porque o vento por ali sopra muitas vezes de forma intensa e irregular. Hoje está para ali, uma pista de asfalto que não serve para nada, uma torre de controle e um par de edifícios de apoio ao abandono. Fala-se na construção de um novo aeroporto na zona de Porto Novo, mas para já é apenas conversa. O que importa é que apesar de ser das ilhas mais populosas do arquipélago, Santo Antão é das poucas que não tem um aeroporto funcional.

Foi por lá que caminhámos, passando também junto ao campo da bola, para além da pista. Não será a forma mais directa, mas também nos leva até ao centro funcional da localidade, o porto, o coração histórico de qualquer aldeia piscatória. Visto dali, de onde nos aproximamos, parece que chegamos do oceano. O mar está bravo. Pelo menos assim me parece. Não sei se será normal por aqueles lados. Mas devo dizer que não imagino como é que uma embarcação conseguiria vencer a saída do pequeno porto de abrigo com aquelas vagas.

Dois jovens pescam à cana, as suas linhas a perderem-se num turbilhão de branca espuma. Debaixo de um telheiro umas boas duas dúzias de homens jogam às cartas. Talvez seja dia de folga, talvez o estado do mar não permita mais nada. E de facto, na praia, acumulam-se embarcações de pesca. Há ali muito para ver, detalhes para descobrir, perspectivas para fotografar. Mas é preciso algum exercício para excluir das imagens o mamarracho que está a ser construído, mesmo em cima do mar e do porto, o que será um hotel de quatro andares, o que naquele cenário é uma aberração.

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Seguimos, ao longo da rua que segue paralela à costa. A Ponta do Sol dispersa-se, em diversas direcções, mas continuo a sentir esta parte como o núcleo histórico. Há ali restaurantes, claramente vocacionados para turistas, e um deles tem um painel com preços. Preços escandalosos, como um prato de massa por 800 Escudos. E há outros. Especialmente um, que tem cara de ser ainda mais caro. Não importa. Sou um mero observador, nunca um cliente.

A rua termina abruptamente, revela-se um beco, e no seu fim dois homens vestidos de forma imaculada trabalham na manutenção de um casco feito de madeira de pinho. No topo de um rochedo que emerge das águas, uma estatueta de um mergulhador que parece suspenso num ambiente que não é o seu traz uma nota caricata.

Andamos pelas ruas. Descubro a antiga prisão e o posto de polícia anexo. Há casas com estórias para contar e outras que nem tanto. Uma coisa que me marcou na Ponta do Sol foi uma certa crispação nas faces e nos olhares de algumas pessoas… de demasiadas pessoas. Senti um pouco de hostilidade, uma fauna um pouco ameaçadora, se bem que subtilmente. Foi o único local em Cabo Verde nesta viagem de duas semanas onde senti isto.

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Não me arrependi de visitar a Ponta do Sol mas foi uma das poucas decepções de Cabo Verde. A outra, como veremos noutro dia destas crónicas, foi-o de forma mais profunda. Aqui ainda encontrei algo para ver e viver. O aeroporto fantasma, o animado pequeno porto, uma mão cheia de casas de outros tempos… mas apesar de tudo sinto um alívio por não termos ficados ali alojados nem um dia, porque era para ter acontecido. Ainda por cima – e basta olhar para o mapa para perceber isso – a Ponta do Sol é mesmo isso: uma ponta, o fim de Santo Antão habitado, de um trecho onde quase tudo se passa. Ter ali ficado significaria um esforço diário para ir e vir de aonde quer que se fosse.

Regressar foi tão simples como ir. Ao chegar à praça principal logo um condutor de “colectivo” perguntou se íamos para Ribeira Grande. Sim. Mas como aquilo ainda não estava cheio disse-lhe que estaríamos por ali pela praça a dar uma vista de olhos e para nos chamar quando estivesse pronto. Não demorou muito. Nem encheu. Na realidade, simplesmente esperou que atravessássemos a praça, creio que por uma questão de gentileza. Deve ter pensado que gostaríamos de dar uma vista de olhos antes de partir. Porque a carrinha tinha as mesmas pessoas.

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Em Ribeira Grande não poderia faltar a refeição na pizzaria 3D, que tínhamos conhecido na véspera. Desta vez apontámos para lá estar a horas decentes e encomendámos o prato do dia. Para mim uma bela coxa de frango com vegetais cozidos, salada e outras maravilhas. O sumo natural vem incluído no prelo do menú, que é de 350 Esc, se a memória não me atraiçoa. De resto o copo de sumo tem um preço ridiculamente baixo, dá para ficar ali a tarde toda a beber sumos tropicais até não se poder mais. A fechar, o ponche de côco não podia faltar. Foi uma barrigada de boa comida num sítio que muito gosto.

Saindo dali foi logo apanhar um “colectivo” na direção de Vila das Pombas, mas dizendo logo ao condutor que íamos sair em Sinagoga. Sinagoga foi uma bela aposta. A aldeia estava vazia, mas antes fomos meter o nariz numas ruínas curiosas que há logo à entrada, antes do primeiro casario, que podem bem ter sido uma leprosaria que, parece, existia por aquelas bandas.

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Mais abaixo há uma estrutura de madeira, ao nível do mar, que em tempos foi um bar ou restaurante. E se calhar ainda é, em dias especiais. Descemos até lá. Uma freira negra de hábito completamente branco está ali sentada. Completamente sozinha num local totalmente improvável. Simpatia e educação ficam-lhe a faltar. Passamos perto dela e é como se não existimos.

Vamos andando para a aldeia. Há uma praia de seixos onde se abrigam três embarcações de pesca. Outras duas, de maiores dimensões, estão ancoradas ao largo, ondulando freneticamente e deixando-me a pensar naquela ideia de as manter longe da costa. E os pescadores? Vão à boleia ou a nado?

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Sinagoga é uma povoação pequena, um lugarejo. Mas tem um fabuloso recinto desportivo, colocado num lugar improvável, sobre as rochas, rodeado de oceano. Imagino quantas bolas ali se perderão, apesar da vedação de rede alta. Levadas pelo mar, sabe-se lá para onde. Mas como tudo o mais o campo da bola estava vazio. Apenas numa tasca havia sinais de vida. Ainda pensei em entrar para beber um copo, mas não, não me apeteceu enfrentar a natural curiosidade que despertaria.

Sentá-mo-nos ali perto, ao lado de um velhote envergando uma camisola que dizia Cabo Verde. De dentro da tasca perguntaram se estávamos à espera de aluguer. Uma pergunta amigável que me despertou de novo a vontade de uma cervejinha fresca. Mas logo chegou o transporte e acabou por não acontecer.

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A tarde ainda daria para mais. Ficámos à entrada da Vila das Pombas. Uma perspectiva que queria fotografar. E como me sentia inspirado! O mar, poderoso, estava magnífico. As ondas rebentavam com violência, enrolando-se por entre os seixos que rolavam, fazendo ecoar o ribombar de milhares de pedras colidindo entre si. Gosto desta povoação e esta parte, que se estende ao longo da estrada para a Ribeira Grande é uma das minhas favoritas. Há sempre ali tanto para observar!

Uma casa tem um estendal no terraço com roupa a secar: equipamentos de futebol. Muitos, todos iguais. A equipa inteira tem ali a roupa ao sol. Um prediozinho tem um café no piso térreo e provavelmente a habitação dos proprietários por cima. Pintado de cores garridas no primeiro nível, com uma mesa de matraquilhos à porta, mas deixada com o tijolo de cimento em bruto dali para cima. Uns quantos “putos” jogam à bola no campo de futebol. Subo a uma plataforma que se ergue ali próxima. Encontro por lá duas vacas e umas quantas cabras. Um homem de camisola amarela e chinelos azuis senta-se à porta da barbearia Sousa Fernando.

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E a espuma do mar, de onde não consigo tirar os olhos durante muito tempo. Está um ambiente fantástico. Um casal africano com aspecto missionário vem andando. Parecem personagens saídos dos EUA dos anos 60. De um qualquer filme sobre Martin Luther King. Uma mulher passa, com um balde na cabeça e o resto das compras em sacos que leva nas mãos. Antes tinha passado no mesmo local um homem com um barrete à Bob Marley e um balde semelhante sobre o ombro.

Vamos por aquela rua, ou estrada, já várias vezes caminhada. Aquela onde há a mercearia benfiquista, com um grande símbolo do clube à porta e um proprietário que todos os dias veste uma camisola da equipa de futebol do seu coração. Três crianças simpáticas posam para uma fotografia. E lá em cima, zelando pela sua aldeia, o Santo António. Ò cum carago, é hoje mesmo que lá vou. Nos outros dias tinha estado muito calor. E hoje também, mas apetece-me, pronto. Vou subir ao morro onde se encontra a estátua do santo e as antenas de telecomunicações.

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Não custa muito. Claro que vou suando. E pensando em cerveja gelada. Mas num instante chego lá acima. Que vista! Deixo-me estar por breves instantes. Não muitos, que rapidamente me aborreço, mas os suficientes para recuperar forças e para apreciar o momento. E para baixo, pelo mesmo caminho. Direitinho para o bar do meu coração, frente à câmara municipal.

Se calhar o que eu gosto mais naquela praça é o posto médico. Porque é o que mais me toca o imaginário da África de quando eu nasci, quando aquilo era Portugal. Se não houver um carro parado em frente, basta imaginar o edifício numa fotografia a preto e branco. Nada terá mudado.

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Estou ali e estou a pensar que até gostaria de viver ali. Não uma vida como tinha em Praga, de folia e muito para fazer. Não durante anos. Mas imagino-me a alugar ali uma casinha simpática, aproveitar o tempo para me especar durante horas a ver o mar a ir e vir, lambendo a multidão de seixos negros. Comer os petiscos da terra, beber cervejas com um livro na mão no café do Ary e ler mais um pouco ao serão quente, mordiscando qualquer coisa, antes do sono chegar. Explorar a ilha toda, com calma, pernoitando aqui e acolá, trilhando aqueles caminhos de montanha, quilómetros à mão cheia a cada dia. Era bem capaz de viver assim uns tempos nesta terra tão simpática.

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E com isto está na hora de ir. Não me apetece. É o último final de tarde em Santo Antão. A última vez que apanharei um “colectivo” pelo vale do Paul acima. A última vez que subirei aquele trilho montanha acima para ir para casa. Uma mão cheia de últimas vezes que não desejo e para as quais não estou preparado. Mas tem de ser. Uma última paragem na mercearia para alguns abastecimentos e vamos.

Na casa a proprietária convida-nos para uma bebida. Sentamo-nos às escuras numa mesa. Sim, a noite já caiu. Tomo um grogue e ficamos à conversa durante um bocado. Aprendi sobre o projecto da Casa das Ilhas. Como nasceu e como vai indo. E ouço estórias sobre os locais e sobre as gentes desta ilha de que tanto gosto. Apesar de não querer que nada disto acabe, esta conversa foi mesmo assim a melhor maneira de o fazer.

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2 COMENTÁRIOS

  1. As imagens ajudam as palavras a ilustrar este destino que também é tão nosso Ricardo. Obrigada pelo bonito relato de viagem.

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