21 de Dezembro

Hoje a ideia era sair para fora de Santa Clara, fazer um dia noutro lado qualquer. Remedios era uma aldeia muito louvada em tudo o que é guia e citada em múltiplos blogs. A cerca de 50 km de Santa Clara deveria ser facilmente alcançada. A informação é que existiriam três ou quatro ligações diárias por autocarro, e sabia exactamente de onde partiriam, do terminal rodoviário regional, um pouco mais perto do centro do que o outro, para ligações de longa distância.

Deixámos a casa cedo. A dona Sílvia veio despedir-se, e, discretamente, verificar que não levávamos as mochilas, sinal de que não voltariamos. Deu as últimas recomendações, que o ideal era ir até ao punto de recogida, uma espécie de hub oficioso dos transportes públicos e lá ver o que conseguiamos apanhar. A ideia era boa, mas verifiquei no mapa e aquilo ainda eram uns quilómetros e preferimos seguir o plano A.

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Só que como tantas vezes sucede com os planos A, este não resultou. Nas bilheteiras da estação disseram que não havia. Ponto final. Talvez por ser Sábado. No dia anterior deram-nos o horário mas agora que ali estávamos, simplesmente não existia um autocarro para Remédios. Opções? Perguntar no balcão das guacuas. O que é uma guacua? Um velho camião americanos com uma caixa adaptada para transporte de passageiros montada em cima do chassis. Mas não, a senhora que tratava das guacuas disse que para já não havia nada, talvez mais tarde, mas não sabia quando. Opções? Um táxi partilhado, ali em frente.

O primeiro taxista olhou para nós e pensou que ia fazer uma fortuna. Nem me lembro quanto pediu mas era um valor absurdo. Literalmente, não consegui evitar uma pequena risada. O preço baixou mas mesmo assim não quis fazer negócio. Fizemos negócio com outro. Mesmo assim pagámos muito mais do que um local, mas que se lixasse, queriamos ir e não iamos perder a manhã por causa de um par de Euros. Ainda esperámos um pouco até que houvesse passageiros suficientes. Foi interessante observar a actividade… os donos dos táxis apregoando os destinos, passageiros a chegar, os carros ali alinhados, todos clássicos mal tratados por décadas de abuso. E chegou a hora, já havia gente suficiente.

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A viagem foi interessante, claro. 50 km empacotados num táxi cheio, sempre a abrir. Passou-se rápido, até parecia mais próximo. O condutor deixou-nos perto da praça central e apontou-nos na direcção correcta. Era de facto mesmo ali, mesmo ao virar da esquina e… não gostámos. Foi desamor à primeira vista e perdurou.

O primeiro problema foi a festa na praça. Quer dizer, não a festa em si mas a descaracterização do espaço por causa dos festejos. Havia elementos de feira, tribunas montadas e em montagem (ou desmontagem), barraquinhas de venda de tudo. E fechadas. Não era uma visão muito gloriosa. Entrei na igreja. Celebrava-se a missa mas não era especialmente pictoresco. Andámos por ali, pelas ruas vizinhas. Nada de chamativo. Decepção total. Decididamente tenho que ser ainda mais desconfiado acerca dos conselhos dos guias turísticos.

Portanto, se a praça central de Remedios tinha atractivos, estavam escondido por aquilo que lá se passava ou tinha passado. As ruas do centro não têm nada de especial, achei-as as mais sensaboronas de todas as que vi em Cuba. Havia uma feira de rua que começava a ter movimento aquela hora. Descobrimos uma cafetaria, a única à vista na aldeia (ou cidade, ou, aquilo que em Portugal se chamaria uma vilazinha). O pequeno-almoço não foi mau, ao que se seguiu um gelado – fraquito, talvez o pior que experimentámos em Cuba – mas havia que arranjar uma solução. Ali não ficariamos. Ou regressávamos a Santa Clara, sabe-se lá como, ou fariamos algo inesperado, como seguir na direcção que tinhamos tomado até chegar a Caibarién, uma pequena cidade costeira. E decidimo-nos por esta segunda hipótese.

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A questão agora era como. Teoricamente seria “apenas” esperar na estrada e mandar encostar um táxi partilhado, mas, claro, não seria tão fácil. Primeiro, descobrir qual o melhor ponto para encontrar estes carros. Depois, esperar por ele, fazê-lo encostar e, finalmente, lidar com a questão do valor a pagar. Estávamos a chegar ao local que nos tinham indicado quando um enorme camião aparece vindo do nada e como por magia tudo acontece quase sem darmos por isso… era uma guacua. Pára, alguém grita alto e claramente “Caibarién!”. O ajudante sai da cabina, abre-nos a porta da caixa, perguntamos quanto. 5 Pesos. 0,15 Eur. Parece óptimo. Transporte para onde queriamos, um preço simpático e oportunidade de experimentar um destes camiões. Maravilha.

A primeira impressão que se tem quando se vê uma guacua é que deve ser extraordinariamente quente. Não é. Nem quente nem desconfortável de todo. O ar entra no espaço das passageiros a grande velocidade e arrefece a caixa. Gostei de andar na guacua, ou, pelo menos, nesta guacua. Porque não há duas iguais e é provável que outras não sejam tão agradáveis.

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Isto há coisas assim: se Remedios despertou uma antipatia imediata, com Caibarién passou-se o contrário. Só de pensar que estive para não vir aqui me dá arrepios. Assim que saimos da viatura captei uma boa onda. Que interessante! O diabo é descrever por palavras.

Diferente. Diferente de tudo que tinhamos visto até então. Claro que Havana joga noutra divisão, Cienfuegos tinha aquele toque de ruralidade e de cosmopolitanismo provincial, Trinidad foi uma cidade de bonecas com perfume a gaúchos e Santa Clara um pequeno caos simpático. Mas Caibarién era mesmo…. diferente. Uma decadência nobre, ruas espaçosas, gentes animadas. Maravilhas arquitectónicas ao virar de cada esquina, segredos sussurrados, glórias idas. Um calor que no Verão será brutal, descontração e mar. Madeira, muita madeira… casas de madeira, portadas de madeira, pilares de madeira. E por detrás de tudo isto uma indústria açucareira que criou esta cidade antes de se ir. Daí os muitos armazéns devolutos e os cais vazios.

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A praça central sofre da decadência geral. O que seria o seu edíficio maior está agora atrás de taipais. Anuncia-se um projecto de hotelaria para aquele espaço. Como não esperava chegar a esta localidade não sabia muito sobre ela. Nem um esboço de plano. Assim decidimos começar pelo mar. Onde está… parece ser para ali. Fomos dar a um segmento onde o oceano é mal tratado, esquecido. Não há espaços de lazer nem cidadãos a usufruir do espaço. As águas calmas vêm simplesmente lamber a costa, ali mesmo, como se fosse um simples lago. Há um cais onde algo está a secar. Dois pescadores. Um queixa-se que só o peixe miúdo é que está a picar.

Como em todos os cais existem armazéns por perto, mas estão mortos. Há palmeiras e o céu azul acentua a tropicalidade do lugar. Dois rapazes adultos passam por nós, meio equipados para mergulho e já com algumas presas vistosas à cintura. Depois de responderem à nossa pergunta sobre a melhor forma de passar para outra parte da cidade, dirigem-se para outro pontão. Certamente voltarão a mergulhar.

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Passamos por outra rua. Em Caibarién, como em tantas localidades cubanas, a planta é em quadrícula. Nessa rua ganhamos um apêndice indesejado, um miúdo talvez um pouco retardado, certamente inconveniente e mal educado que passará quase todo o restante tempo a fazer coisas idiotas e a pedir-nos dinheiro. Não estragou a visita mas retirou-lhe a etiqueta de “perfeita”.

Chegámos ao malécon de Caibarién, tão agradável como qualquer outro, com as suas palmeiras alinhadas ao longo da comprida estrada marginal, uma obra recente, que reflecte os frutos do dinheiro injectado na região pelo turismo que se dirige às ilhas paraíso que se localizam ali próximo. Há alguns bares. Tento beber um rum mas não vendem a copo. Cerveja só importada. A moça era simpática mas não pudemos fazer negócio.

Calor. Encontramos uma sombra para descansar um pouco antes de iniciar o caminho de regresso. Vamos pensando em regressar, já é quase meio-dia, o que nos nossos tempos de Cuba significava que a jornada já ia avançada.

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À beira do paredão a miudagem pescava. Alguns tinham uns barquitos que usavam para se afastar um pouco da margem e tentar a sorte longe da concorrência. Em alguns pontos o cheiro a esgoto é muito intenso mas, claro, isso não impede os gaiatos de mergulharem naquelas águas.

Depois de muito tempo conseguimos que o apêndice indesejado nos deixasse e, seguindo a maré de sorte, encontrámos uma cafetaria com bons sumos naturais. Mesmo o que um dia assim estava a pedir. Bebi dois de rajada mas continuei com sede. Muita desidratação. Acho que estava a ficar cansado e o calor não ajudava e agora, à distância no tempo, creio que deviamos ter passado mais tempo em Caibarién. Mas para além dos factores físicos havia alguma pressão porque o regresso a Santa Clara podia não ser simples.

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Passámos pela praça central onde uma multidão socializava, com epicentro num café que tinha uma arca frigorifica debaixo das arcadas, de onde saiam latas de cerveja Cristal com aspecto fresco a um ritmo louco. Ainda pensei em me candidatar a uma, mas venceu a preguiça e simplesmente continuei a andar.

No sítio das guacuas, nada para Santa Clara. Como antes, disseram-nos que talvez mais tarde, mas para já, nada. Ia sair uma para Remedios. Exactamente a que nos tinha trazido para aqui. Sem pensar entrámos. Afinal ia na direcção certa e já era uma velha conhecida.

Chegámos a Remedios e a coisa complicou-se. Onde sair? Não me apercebi que tivesse passado pelo centro, mas deu para compreender que aquilo era um bocado maior que uma simples aldeia. As paragens sucediam-se e não havia qualquer dica que nos dissesse qual seria a melhor, e quando se deteve mesmo em frente ao que me pareceu uma estação rodoviária saimos. Parecia que tudo que envolvia guacas se processava assim, por instinto.

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A estação estava quase vazia. Uma meia dúzia de pessoas esperava algo com uma atitude que dizia que nunca iria chegar. Como se o tempo estivesse paralisado. Não estava a ver aquilo bem parado. Vim cá fora e perguntei a duas mulheres se era naquela estação que paravam os autocarros da Viazul. Há pois é, que como gosto de ter um plano de backup, sabia que a determinada hora (faltava algo como duas horas) um autocarro da Viazul a caminho de Santa Clara pararia em Remedios. Responderam que sim, mas não fiquei descansado. Senti que não perceberam a questão ou então não sabiam do que estavam a falar.

Mas de repente tudo se solucionou: um autocarro dobrou a esquina lá ao fundo e elas, numa grande algazarra, disseram que ai estava o autocarro para Santa Clara. Não era o Viazul mas era um autocarro e ia para Santa Clara. Entrámos. O bilhete foi 5 Pesos. 0,15 Eur para uma viagem de 50 km. Era o que faltava experimentar, um autocarro cubano para “nacionais”. A viagem correu muito bem. Aquilo era velho mas as cadeiras eram surpreendentemente confortáveis e a meio do caminho, à laia de programa de variedades, um tipo muito enfrascado entrou e até ao destino final deu todo o tipo de barracas, especialmente envolvendo mulheres. Não escapava nenhuma aos seus avanços ébrios, e sentado mesmo à minha frente ofereceu-me um divertimento continuado.

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À chegada desocobri com consternação que o autocarro não ia mais além do tal punto de recogida. Desprazer meu e de quase todos os outros passageiros que a contragosto lá sairam. Uns, poucos, deitaram as pernas ao caminho. A maioria apanhou logo um transporte local. E lá fomos, caminhando, até ao centro de Santa Clara.

Passámos fugazmente por casa, mas a viagem deu para descansar o corpo e logo voltámos a sair. Afinal de contas no dia seguinte pela manhã estariamos de partida desta recomendável cidade e havia que aproveitar cada minuto.

A praça Vidal lá estava, com aquela efeverscência característica. Dei uma volta, observando detalhes, e decidi sentar-me na “minha” esplanada com um rum. As mesas estavam todas ocupadas. O ambiente estava excelente. Com tanta gente havia muito que ver. Eram três e meia mas já havia muita gente bem bebida. Beberiquei calmamente a minha porção. Hoje tinha custado bastante menos dinheiro. 0,06 Eur contra os 0,50 Eur da véspera. Preço para local.

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O sol estava ainda bem alto, céu completamente azul. Tudo perfeito. Entretanto o meu copo secou. Hesitava entre beber outro, ficar mais um pouco com a mão leve ou levantar-me e ir embora. A verdade é que estava mortinho para conhecer ali alguém e partilhar uma bebida e uma conversa. Olhei para o copo e para o bar, e estava nesta indecisão quando um tipo numa mesa próxima me mostra uma garrafinha e faz um gesto de convite. Pronto, é isto. Levantei-me, aceitei que me atestasse o copo – não com a porção normal, mas umas três vezes mais – e logo sabendo da nossa nacionalidade nos convidou para sentar à mesa que dividia com um amigo.

Carlos Rafael e Mário. Juntos deitámos abaixo uma quantidade de rum incalculável. Assim que soube que eramos portugueses o Carlos Rafael disse logo que tinha estado em Angola e que falava um pouco da língua, mas não lhe saía nada. Portuñol servirá. Porque é provável que escreva um artigo sobre esta rapaziada na rubrica Pessoas do Mundo, não me vou alongar. Conversámos e bebemos, bebemos e conversámos e com isto caiu a noite, arrefeceu. Um homem vendendo amendoins torrados vem à nossa mesa. O Carlos Rafael compra uma série de doses e não me deixa pagar. É a primeira vez em Cuba que alguém me paga algo. E depois veio a ideia… vamos bailar? Vamos pois. Isto está a melhorar ainda mais… um baile cubano. Já vou um pouco torto nos movimentos, mas bastante na mente. Saimos da praça Vidal, andamos mais um pouco e chegamos a uma porta num muro. Entramos. Pago as entradas, que custam uns cêntimos e logo o Carlos Rafael aparece com mais uma das suas garrafas de rum (que mais não são que garrafas pequenas de água, atestadas no bar para poupar idas e vindas). Estivemos por lá um bocado mas já havia alcóol de mais no nosso sangue. No meu para observar, no deles para conversar. Despedimo-nos e fomos embora.

Quando cheguei a casa passei uma certa vergonha porque raspei com a câmara na parede a andar e a Dona Silvia percebeu logo o que se passava. Enfim, cheguei ao quarto e dormi que nem um anjo até à hora de levantar para apanhar o autocarro. Um dia em grande fechado com chave de ouro.

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