15 de Dezembro

 Apesar de ser dia de partida de Havana a tentação de ir espreitar esta cidade ao amanhecer estava lá. É verdade, já tinha sido feito duas vezes, mas mesmo assim… a tentação. E em boa hora cedemos ao chamamento porque nos primeiros minutos de luz do dia fomos brindados com dois momentos espectaculares.

O primeiro, logo ao sair de casa e enquanto iamos andando em direcção à barra do porto. O céu estava sombrio, assustador, com um toque de trevas, onde de tempo a tempo se via o flash do farol a rasgar o céu que para aqueles lados era ainda negro. Disparei fotografia atrás de fotografia, variando ligeiramente a configuração, para cobrir todas as possibilidades. Queria ter a certeza que obtinha o disparo perfeito, mas mesmo assim tenho algumas dúvidas de que o tenha conseguido.

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Naqueles dez minutos que demorámos a chegar até ao início do Malécon foi clareando, o ambiente especial que estava criado foi-se desvanecendo e aparentemente o dia ia chegar normal, como todos os outros. Mas ao virar a barra iniciou-se outro espectáculo: o sol vinha com uma cor fortissima e, apesar de não se ter ainda levantado na linha do horizonte, pintava já tudo com um tom vermelho como poucas vezes vi na natureza. Ao longe a longa chaminé da refinaria emitia a sua infinita chama, rabsicando o céu com um traço preto de poluição que, passando sobre as fortalezas, se extendia até ao mar onde se alargava, os fumos confundindo-se com uma pacífica núvem. As águas do porto eram cor de fogo, sobre elas o céu mostrava uma tonalidade semelhante. Uma senhora caminhava pela estrada, alma única por ali, tão cedo. Mais uma vez entusiasmei-me com a câmara, capturando cada instante daquele momento glorioso, antes e depois do astro se ter mostrado e enquanto se erguia para mais um dia.

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Na realidade o que eu queria naquela manhã era alcançar a Praça da Catedral, que tanto tinha apreciado aquando da primeira visita. Pretendia sentir aquele espaço sem os inevitáveis turistas e só a estas horas escandalosas seria possível. Além disso, gostava de fotografar a praça enquanto as lâmpadas públicas estivessem ainda acesas. De facto as únicas pessoas que por ali passavam eram cubanos a caminho do trabalho. Um polícia de giro ia patrulhando a praça. Na realidade foi um pouco decepcionante, mas valeu o esforço.

Na rua Obispo a luz para locais já estava aberta. Comprámos uns bolinhos para merendar na viagem e depois, sem pressas, começamos a caminhar para casa. Tal como na véspera iriamos apanhar um táxi comum, mas agora sabiamos que poderiamos ficar mais perto da estação da Viazul, poupando mais de um quilómetro de marcha. Tudo correu bem. Pegámos nas mochilas, e depois de duas negativas fomos aceites pelo terceiro táxi que parou. Sempre ficámos mais à frente, andámos, chegámos com uma margem de tempo confortável, fizemos o check-in e esperámos pela chegada do autocarro.

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A viagem demorou cerca de quatro horas, incluindo duas paragens, uma mais curta, e outra para um almoço que levou quase sessenta minutos. Primeiro, sair de Havana, passando pelos bairros dos subúrbios, manobrando até apanhar a auto-estrada que segue para oeste. Depois a maioria da viagem, em velocidade de cruzeiro, neste asfalto largo. Debaixo das pontes, especialmente das que fazem parte dos nós de acesso a localidades maiores, há pessoas que se aglomeram para uma boleia, que, segundo ouvi dizer, é obrigatória em Cuba. Afinal que acto mais em conformidade com os principios do socialismo do que a partilha de um equipamento que pode servir mais gente?

Nestas saídas para fora da cidade a propaganda revolucionária é sempre um dos elementos a observar. Pictoresca, arrancando um sorriso, encontra-se aqui e acolá, especialmente nas entradas e saídas das cidades. Os veículos que se cruzam são outro motivo de interesse. Alguns são modernos, comuns. Mas há os velhos camiões americanos, os omnipresentes carros dos anos 50, os sidecars. E há as curiosidades. Carroças puxadas por mulas, cavaleiros, polícia com aspecto suspeito. Sem contar com a paisagem, que vai mudando, desde a banalidade até aos campos de bananeira, os matos tropicais e os campos de cultivo onde multidões de trabalhadores colhem à mão o que há a colher.

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Chegámos a Cienfuegos. À saída é preciso enfrentar os jineteros que sempre esperam pelos autocarros da Viazul, recheados dos estrangeiros de que tanto precisam para ganhar a vida. Os pratos fortes do menu são táxis e casas particulares. Muitos deles não são nem taxistas nem proprietários de casas. Conduzem os turistas ao local e depois recebem uma comissão, que o cliente invariavelmente pagará sem se aperceber, com um agravamento do preço normal.

Cienfuegos é uma cidade nova, fundada em 1819 por, imagine-se, colonos franceses, provenientes de Bordéus e da Louisiana. O nome original da localidade era Fernardina de Jagua e é fácil supor-se que terá mudado de nome depois da Revolução, em homenagem ao herói castrista Camilo Cienfuegos. Mas não. O nome foi alterado nos finais do século XIX em honra de um general espanhol da época. Em seu redor existe uma densa mas discreta malha industrial, onde se destaca uma central nuclear que nunca chegou a ser concluida, vítima do colapso da União Soviética.

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Afastámo-nos da estação rodoviária e dos seus indesejados, com uma breve pausa para pedir que nos apontassem a direcção do centro. Tinhamos que encontrar pouso para esta noite. As primeiras impressões são positivas. Foi o primeiro contacto com uma Cuba diferente. Ainda urbana, mas com um perfume rural. Em Havana as grandes famílias nobres viviam em pomposos palácios e as ruas do centro eram pontilhadas por casas de uma burguesa abastada. Em Cienfuegos os notáveis teriam casas mais vistosas, mas mesmo assim simples casas, localizadas no Paseo ou nas ruas envolventes.

Gostaria de ter um conhecimento mais profundo para poder explicar de forma sustentada porquê que Cienfuegos me parece logo uma cidadezinha provincial. Talvez a semelhança cultural ao nosso próprio país me indique isso claramente, por analogia com as nossas povoações rurais. Claro que o transporte público ser feito em carros puxados a cavalo é um bom indicador. Assim como o são as viaturas velhas que passam por mim, claramente associadas a actividades agrícolas.

Noto nas pessoas uma bipolaridade curiosa: ou têm um aspecto verdadeiramente rústico, vá, aquilo a que em Portugal chamariamos de “ar saloio”, ou, pelo contrário, são tão sofisticadas que se confundem com turistas ocidentais. Esta separação mais ou menos evidente não a senti em Havana e achei curioso.

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Mas vá… chegamos ao Paseo, o eixo fulcral da cidade. Vindos da estação de autocarros, se o cruzar e prosseguir chegarei à praça principal, chamada, imagine-se, José Marti. Mas se virar à esquerda atingirei o malécon (ao contrário do que se possa pensar, esta palavra não designa uma parte de Havana mas sim qualquer avenida marginal) que é uma extensão do Paseo e levará até à Punta Gorda.

Fomos deitando o olho a Casas Particulares, mas a ideia é encontrar uma à beira de água. Chegamos ao malécon e dá para ver que por ali não existem casas destas, e se existirem será muito mais à frente, numa área que já se tornará demasiado distante do centro. Entramos numa, a última do Paseo. Não se vê ninguém. Voltaremos mais tarde, para ser apanhados por um “grilo falante” com um sentido comercial inato. Não, não tem quartos livres mas vai já arranjar-nos uma solução. Dobramos a esquina e entrega-nos a uma senhora que sim, tem. Imagino que isso terá subido em 5 CUC a nossa diária. A tal comissão.

O quartinho é aceitável. Limpo, como geralmente as coisas o são em Cuba (tirando a via pública, claro) e bem localizado. Piroso, como quase todos. O tempo escasseia, não podemos passar o resto do dia em busca do alojamento perfeito. Ficamos com este. É largar as coisas e sair para a rua, que já se nota um alaranjar da luz, sinal do aproximar do fim do dia.

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Já que viemos caminhando do lado oposto, agora vamos passar pelo malécon e explorar a tal Punta Gorda. Sei que ao fazê-lo não haverá luz do dia para mais nada, mas ainda temos amanhã para ver mais coisas.

Por esta altura a minha avaliação de Cienfuegos tinha começado a mudar. O entusiasmo inicial foi substituido por um certo arrependimento de aqui ter vindo. Provavelmente preferiria um dia mais em Havana. Desgosta-me o carácter turístico de Cienfuegos. Há demasiados estrangeiros e as pessoas estão demasiado habituadas a turistas, no mau sentido (ou seja, na exploração). E é pequeno. Engraçado mas pequeno. Vê-se e quando está visto não fica vontade para ir mais longe, mas fundo, para rever. A mim não ficou. Vinte e quatro horas foram demais e comecei a senti-lo assim que cheguei.

A Punta Gorda é uma extensão de terra, um cabo, atravessado por uma estrada. É a zona fina da cidade. Em Cienfuegos vêem-se coisas estranhas, como um clube náutico que nos leva a pensar que estamos ainda nos tempos de Fulgêncio Baptista, onde uma mão cheia de beneficiados disfrutava de um país profundamente pobre. Este clube transpira burguesia. Ou mais. Não sei o que se passa, os Castro estão a ficar distraidos. O palácio que lhe serve de sede está impecavelmente arranjado, há uma festa… privada… note-se, PRIVADA [em Cuba]. Há carros de luxo estacionados. Tudo isto parece mais estranho do que uma nave espacial. Não pertence ao lugar e ao espaço. Mas de resto toda esta ponta é bizarra. As casas são relativamente antigas, certamente de antes da Revolução. E são testemunhos de alvenaria de um tempo ido que o Clube parece recriar com vida. Só que tudo o resto por ali está mudo. As estórias terão que se contadas em silêncio, ficarão com a imaginação de cada um.

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A rua principal desta extensão de terra achei-a um pavor. Gostei mais de uma paralela, muito perto da água, para o lado direito, onde não se via vivalma. Quanto à ponta da ponta, onde há um afamado edíficio – hoje, hotel e restaurante – marcado em tudo o que é guia turístico como “a não perder”, não lhe achei piadinha nenhuma e foi com gosto que lhe virei as gostas assim que lá cheguei.

No regresso, já com o sol muito baixo, ficou-me gravada na memória uma face. Era um idoso, sentava-se numa espreguicadeira à porta de casa. Uma casita com personalidade de abrigo de férias de outros tempos, hoje certamente um lar querido. Reparei que tinha o dístico de “casa particular”. Os meus olhos foram do sinal para os dele, e eram aguardados. Fez um gesto com a mão, de quem convida a entrar. Fez-me pena, partiu-me o coração. Gostaria de ter podido ficar ali, de ajudar aquele homem. Todo ele parecia viver no antigamente e para o antigamente. Era como se tivesse ficado parado no tempo, naquele ano de 1959 quando a sua vida foi brutalmente mudada sem que ninguém lhe tivesse pedido uma opinião. Tinha o aspecto de um senhor dandy, imaginei-o a velejar, nos anos de ouro da sua vida… da sua vida pessoal e da sua vida enquanto parte de um mundo que deixou de existir. Imaginei-lhe as memórias. Mais uma vez pensei no dramático paralelo entre o que aconteceu aos cubanos assim e o que se passou com os portugueses de África, ditos retornados. E fiz tudo isto numa fracção de segundo. Na seguinte meneei-lhe a cabeça numa sentida negativa, como quem diz “lamento mas não posso”. Ele correspondeu-me com um sorriso e um encolher de ombros, uma resposta de “paciência então”. Fiquei com pena, por tudo. Por ele e pelo serão que possivelmente teria passado, com um copo de rum na mão a ouvir as memórias que tentaria puxar.

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De volta ao ponto de partida, à nossa casa de um dia. O sol tinha-se acabado de pôr. Isso sim, foi bonito. Cienfuegos não me conquistou mas tenho que reconhecer que tem um belo poente, com as palmeiras que marcam toda a marginal, a água calma da enseada a funcionar como espelho para o foco de luz laranja. Um pouco como em Havana, é um ponto de atracção para os habitantes locais, mas mais do que lá, para estrangeiros. Uma “dama” com marcado sangue africano posava para a fotografia de um europeu, agarrando os fartos seios. O tipo quase que suava, e se não se babava pouco faltava. Enquanto passei tirou uma série de fotos e ritmo elevado. Não sei quanto lhe custou o devaneio, nem onde o conduziu. Ela estava acompanhada com um pequeno grupo de amigos de ambos os sexos que não pareciam nada incomodados com a situação.

Agora era preciso jantar. Já com a noite a envolver a cidade fomos pelo Paseo, em direcção ao centro, à praça principal. Nos guias estava mencionado que em Cienfuegos se encontravam com facilidade restaurantes em moneda nacional. Fácil mas não para nós. Tentámos tudo. Fomos à meia dúzia de referências indicadas no Rough Guide to Cuba. Em todos eles se repetiu: não, os preço são em CUC. Fiquei com a ideia que era um truque baixo, que havia um esquema para estrangeiros enquanto os locais pagavam em pesos cubanos.

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Os jineteros interceptaram-nos diversas vezes, mais requintados do que os das estações de autocarros. Jovens com quem se podia falar um pouco, curiosos de ouvir sobre outras vidas e outros locais fora de Cuba, capazes de compreender que éramos outro tipo de turistas que procurava uma Cuba genuina e não a dos postais, que em vez de medo de penetrar na Cuba dos cubanos, era o que queriamos mesmo. Isto sucedeu um pouco por todo o lado onde fomos neste país, e foi interessante ver que em vez de se sentirem aborrecidos por lhes recusarmos negócio, ficavam satisfeitos com o que explicávamos e, sempre que possível, ajudavam com indicações.

Um rapaz disse-nos onde comer com pesos cubanos mas não, já lá tinhamos estado. E foi nesse momento que compreendi, aqueles restaurantes ainda serviam refeições a pesos cubanos. Mas não a nós. Paciência. Foi interessante ver a praça à noite, o passeio por estas paragens foi agradável, mas a fome continuava e certamente não ia alinhar naquela situação.

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Com o nível de energia e de ânimo em baixo passámos em frente a uma porta aberta… no degrau da porta sentava-se uma jovem bonita. Vimos que era uma cafetaria. Seguimos. Mas espera. Porque não? Uns passos atrás. Aquilo estava deserto e perguntei-lhe se estava encerrado. Não estava. Olha, boa. Então será aqui o jantar. E foi uma boa surpresa, tanto que no dia seguinte voltámos. A moça chamou a amiga, que era quem cozinhava. Comi um hamburguer e dois batidos de goiaba com leite condensado. E que bons! Os preços eram os de uma cafetaria cubana. Menos de 0,50 Eur e estava jantado e sentia-me bem. As miudas eram engraçadas. Era como se fosse o projecto de um par de amigas, abrir uma cafetaria, ver o que dá. Gostei, foi uma memória doce, o daquele bocadinho.

Antes do descanso, ainda fomos ao bar do “grilo falante”, mesmo ao lado de casa. No terraço do último piso com vistas agradáveis bebi um rum. Paguei 2 CUC, cerca de 1,80 Eur. Não é caro, em abstracto, mas como percebi mais tarde, foi um enorme desperdício de dinheiro. Seja como for, esteve-se bem, em ambiente CUC, para turista… para variar.

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