18 de Dezembro

Ora então vamos lá fazer algo turístico. Experimentar um comboio em Cuba era uma ambição de primeiro momento, mais tarde posta de lado pelos enormes problemas que implicava – nunca se sabe quando e se há comboios, arranjar um bilhete é um desafio e uma vez a bordo pode-se demorar dias a chegar ao destino.

 Trinidad apresentava uma possibilidade interessante, com uma linha local aparentemente a funcionar. Mas os horários não eram convenientes, com apenas duas partidas diárias, uma demasiado tarde e a outra antes das seis da manhã. Sucede que na mesma linha se faz um percurso para turistas, antes com uma locomotiva a vapor que agora se encontra encostada, e actualmente com uma velha diesel que puxa dois vagões, um com linhas de três assentos e outro com um bar. O valor do bilhete: 10 CUC, comprável no posto da Cubatur ou na própria estação. A saída dá-se às 9:30 e o regresso sucede por volta das 14:00.

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 O pequeno-almoço foi servido cedo, a uma hora adequada à saída para o passeio ferroviário. O menu foi o mesmo que de véspera. Depois foi visitar o escritório da Cubatur para adquirir o bilhete e, com muita calma, descer até à estação. Ainda faltavam 50 minutos, usados a ver passar trânsito e pessoas e a contar e avaliar os turistas que iam chegando.

 Aproxima-se o comboio. Tudo a bordo, há espaço para todos, vai desanuviado mas não cheio, com um bar engraçado, feito de improvisos. Logo a seguir salta para a composição um músico, guitarra às costas, que cantará para os passageiros durante um bocado.

 Trinidad fica para trás, passa-se por um pequeno túnel e por uma passagem escavada entre as rochas. Já se está no campo, visto mais de perto e com mais calma do que de dentro do autocarro. Os companheiros de passeio movimentam-se. Um alemão volumoso vai espreitar a cabina do maquinista e ali ficará o resto da viagem, em amena cavaqueira – sim, parece que se desenrascava bem com o espanhol. Talvez fosse ele próprio maquinista na sua terra? Há ali uma empatia que pode vir de algo assim. E mais tarde, com o trovante de reportório despachado, ainda se fez lá à fente uma sessão jam na qual o alemão cantou algo a plenos pulmões (não sei o quê porque só conseguia ver, não ouvir) acompanhado à viola e no meio de grande animção.

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 A paisagem em redor é aquela que se esperaria… planícies com as montanhas por detrás, campos cultivados, coqueiros, quintas isoladas, casas aqui e acolá. Está calor, aliás, está perfeito. O comboio passa por uma ponte, depois outra, daquelas que se vêem nos filmes, estruturas de metal, com espaço para os carris e nada mais. Algumas passam sobre estreitos cursos de água, mas há uma com algumas centenas de metro que faz os comboios correrem sobre uma pequena planície que mais à frente se nivela com a linha.

 Vejo cavaleiros, ao género gaúcho, homens de sela que toda a vida fizeram aquilo. Há gado que se vai avistando de ambos os lados dos carris, algum no meio, com pouca vontade de se afastar. Passamos por lugarejos, passagens de nível. Vamos a cerca de 20 km/h, devagar. E chegamos ao ponto de paragem, uma antiga plantação de açucar espanhola que se manifesta como um marco entre as centenas que existiam aqui – daí o nome, valle dos ingienos – com a sua torre do século XIX, construida para vigiar os trabalhadores e impedir as fugas de escravos. Actualmente é uma “touristic trap”, um ninho de jineteros de todos os géneros que propôem vender tudo e mais alguma coisa aos magotes de turistas que ali chegam, não só os que vêm de comboio mas também os que vão em excursões de autocarro.

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 Para subir à torre pedem 1 CUC. Não, obrigado. Deixamos os nossos companheiros fazer as suas momices de turista e vamos dar uma volta pela aldeia. Vem-me à ideia as roças de São Tomé, também elas iniciadas como empreendimentos rurais baseados em mão-de-obra escrava e depois transformados espontaneamente em aldeias…. como esta.

 Sentimos o ambiente, as pequenas casas, as pessoas que por ali andam, nas suas azáfamas. O tempo passa num instante. Tinhamos 35 minutos e já só faltam 10, vamos ter que interromper a exploração. Por um trilho caminham na nossa direcção três mulheres, que nos tomam por cubanos e propôem uma venda de peixe… até que uma diz às outras que somos “yumos”, estrangeiros. Fica sem efeito então.

Junto à estação há um bar local. Ideal para me deliciar com um rum… 0,09 Eur. Sento-me no chão e um menino pequeno corre para mim, animado. Os adultos chamam-no, divertem-se, chamam-lhe jinetero potencial. Gargalhada geral. Um figurão todo vestido de branco e com um amplo chapéu de palha passa ali em frente e vai dançar em frente às enormes colunas que enchem de música o local e as centenas de metros em redor. Passam velhos camiões russos, uns transportando pessoas, outros carga, de todos os tipos. O comboio já tem a máquina em funcionamento. Aproxima-se a hora da partida. Nem sei para onde, que na realidade não tenho o plano de festas.

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 Afinal não vamos muito adiante. Esperava um pouco mais, mas assim como é já é bom. Por 8 Eur e tal, tá óptimo. Uns dois quilómetros à frente mandam-nos sair. Almoço. Touristic trap parte 2. Uma hora e tal de espera. Bom, a carneirada vai para a dentro, para a ordenha, e nós vamos ver de perto a última ponte que passámos, que não é longe. Depois, sem nada para fazer, ficamos na preguiça à sombra de uma árvore, nos terrenos do restaurante, pomposamente chamado de “hacienda”.

 Leio, o tempo passa. Os primeiros turistas começam a sair, a cirandar por ali. Ouço uma gritaria. Há cavalos fugidos, e um “cowboy” procura trazê-los à ordem, emitindo sons estranhos, como se fosse um mudo que tenta falar, em desespero. É um espectáculo. Há cavalos por todo o lado e o homem vê-se em trabalhos, mas no fim cumpre a sua missão.

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 O comboio foi levado para uma inversão de marcha em algum ponto mais à frente e está de volta. Toda a gente a bordo e regressamos. Para logo parar na fazenda. Um grupo dos “nossos” turistas foi num passeio a cavalo a partir do restaurante e devemos encontrá-los aqui. Demoram, o que dá para esticar um pouco as pernas e tomar outra bebida no bar. O calor aperta. Estes dias estão mais quentes. É adequado ao cenário.

 Por fim vamos embora. O pessoal está cansado, já não vibra, não presta atenção à paisagem, mas eu não baixo as armas e consigo ainda algumas fotografias interessantes. Trinidad aproxima-se e com ela o fim desta agradável expedição. Há ainda espaço para novas emoções quando o flanco do vagão abalroa um carro empanado que estava demasiado perto da linha. Não se passa nada. O carro é “desengatado” em braços e o comboio prossegue mais uns duzentos metros antes de se deter na estação.

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 Não há plano para a tarde. Vaguear por ai, porque em Trinidad pode-se vaguear até à eternidade que não faltarão motivos para ver. Que quando as ruas e as casas estiverem todas sabidas de cor, há sempre alguma actividade humana para criar uma variação.

 Bebemos uns sumos naturais, chegámos à zona da casa, mas prosseguimos para ruas que ainda não tinhamos experimentado. E sem dar por isso descobrimos um recanto fascinante, Sant’Ana, com a sua igreja em ruínas, apelando ao imaginário do lugarejo mexicano onde cowboys batalham bandidos de pele escura com cintas de munições à tiracolo. Mas em Trinidad são os cowboys que têm pele escura, e ninguém anda de armas ao ombro. Por isso na praça de Sant’Ana só há figurões fotogénicos. Decididamente esta parte da cidade é prometedora. Muita cor, muita vida local.

 Passa por mim um velho carro americano, muito azul, cheio de “manos” animados. Fossem marginais e poderiam ser membros de um gang afro na Los Angeles dos anos 60. Entramos na loja de uma gorducha simpática. Mais um sumo, que está calor e é preciso hidratação, e também um pudim, que é uma novidade no menu. Feito de pão e goiaba, pelo que percebo ao paladar e ela me confirma.

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 A seguir vou ao Museu da Luta contra os Bandidos. E quem são estes “bandidos”? São os anti-castristas, os homens que acreditavam no antigo regime cubano e se recusaram a aceitar a Revolução. Um pouco por todo o país esconderam-se em regiões mais ou menos ermas e mantiveram uma luta de guerrilha contra o novo Governo. E nas montanhas em redor de Trinidad essas acções foram especialmente intensas, tendo-se tornado na temática deste museu. O bilhete é bem mais barato do que nos outros. Apenas 1 CUC incluindo permissão para fotografar.

 A colecção vale o preço do bilhete, mais coisa menos coisa, com meia dúzia de salas com objectos e armamento usado neste conflicto, fotografias, diagramas, curiosidades. E há o edíficio, que é um prazer de se ver por dentro.

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 Oficiosamente pode-se subir à torre de onde se usufruem vistas magníficas da cidade. A coisa passa-se assim: ao ver o estrangeiro aproximar-se a simpática senhora troca dois dedos de conversa e convida-o a subir, retirando o cartaz que diz que é proibido subir. Diz que uma vista bonita deve ser vista e recomenda apenas especial cuidado com as varandas baixas e as escadas ingremes. Depois, à volta, tenta vender uma moeda de 3 Pesos, que tem a particularidade de ter a face Che Guevara cunhada numa das faces. Comigo não resulta, primeiro porque nunca iria nisso, depois porque estou farto saber que são 3 Pesos e arranjo-as onde quiser. Digo-lhe que bem sei o que é, que não sou um turista de Varadero e ficamos à conversa um bocado, já sem nenhum interesse comercial. Mesmo assim, talvez força de hábito, vai-me lançando charme enquanto me pergunta os detalhes da minha viagem. Valeu. Obrigado señora, foi muito simpática.

 Terminada a visita foi tempo de descansar o corpo. Para casa, apenas um pouco. Amanhã sim, darei folga às pernas, total. Autorização para ficar e não fazer nada. Mas hoje quero ainda aproveitar Trinidad. Tal e qual como esperado: sei que está tudo visto, muito revisto, mas é tão simpático que se continua bem.

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Desde que descobri a igreja de Sant’Ana que estou fascinado. É a tal coisa dos imaginários, e aquele largo apela a uma imagem tão forte do meu que não resisto a regressar e passar por ali mais uma série de vezes. Procuro a fotografia perfeita mas não é simples. Há sempre um grupo de turistas, um autocarro de tour estacionado. Ou a luz não é a melhor, ou o enquadramento não sai bem. Os guias turísticos gostam de começar um passeio de algumas horas por ali porque há fácil acesso para as viaturas, espaço para as deixar e o centro fica a uns poucos minutos a pé.

Enquanto se anda por ali, revendo as coloridas ruas de Trinidad pavimentadas com pedras arredondadas, ligeiramente escuras, a noite vai caindo. Já não há muitas fotografias. Por cada local que passo sinto que já tirei as suficientes. A câmara passa mais tempo dentro da mochila, e quando isso sucede, passo por cubano.

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Há um momento especial: com a escuridão já caida sobre estas vielas, passamos junto a uma casa de outros tempos, e de lá sai um som diferente, mágico… é jazz. Depois de dias a fio a ouvir rumba e salsa, há algo de muito forte naquele apelo… jazz. É uma “casa particular”. As portas janelas do piso térreo estão abertas de par em par mas as luzes lá dentro encontram-se desligadas. Sentamo-nos ali mesmo, em frente, a absorver aqueles acordes. Enquanto ali nos encontramos passam alguns estrangeiros, e todos eles se detêm, pelo menos por alguns instantes, com um sorriso surpreendido nas faces. Aquele som é o melhor marketing que aquela casa particular poderia ter. Isso e a escuridão que nos cega, o mistério que advém de não conseguirmos ver o que há no seu interior.

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Terminado o momento jazz, fomos jantar, ao sítio do costume, não muito longe de casa, à cafetaria mais conveniente de Trinidad. Sempre interessante, no parapeito de janela, na companhia do busto equino que o dono ali mantinha, e que nos acompanhava durante as refeições. Depois, apesar de ainda não serem oito horas, já era tempo da recolha, de um pouco de leitura antes do sono merecido.

O único problema das noites passadas em Trinidad: o ruido das muitas festas em redor. Estar no centro teve este incoveniente. É incontornável que Trinidad é um local festivo e é preciso lidar-se com isso. No que me toca os tampões de ouvido resolveram a questão. Mas para pessoas de sono mais delicado poderá tornar-se complicado.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Ricardo o teu feed rss deixou de funcionar, eu (e suponho muita gente) usa-o para seguir o blog, sem ele é complicado saber quando existem novos artigos.

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