27 de Maio

Acordo bem, depois de uma noite de sono relativamente tranquilo, feita imperfeita apenas pelo ruido da estrada contígua e por algum frio. Deixo-me estar mais um pouco e volto a cair no sono. À segunda é de vez e o Calin, sentido movimento no quarto, vem-me dar os bons dias.

Tomamos o pequeno-almoço juntos. A família vai aparecendo aos poucos. O pai hoje está muito conversador. Mostra-me um livro de Praga, e depois, orgulhoso, conta-me como esteve no Hilton de Colónia, num congresso médico, indicando-me o seu nome na lista de participantes. Por cada noite naquele hotel, a organização pagou uma diária cujo valor me mantém na estrada durante um mês inteiro.


Tenho que repetir a cada membro da família que dormi maravilhosamente e que me estou a divertir imenso, o que faço de boa-vontade, sem ter de mentir. A manhã arrasta-se. No enorme apartamento, as fainas diárias tomam lugar. Já perto do meio-dia acabamos por sair. O Calin vai-me mostrar o parque de Chisinau onde quero ir.  Mas levo já a mochila, passamos pelo hostel onde passarei as noites seguintes para deixar a bagagem e fazer o check-in. A mãe do Calin vem conosco, aproveitando a boleia para o centro. A meio caminho o avisador de radar do meu amigo dispara numa algazarra, e em boa hora… lá estava o carro da polícia, lá ao fundo.


Ainda damos umas voltas até dar com isto, num páteo manhoso não longe do centro. O meu alojamento é sem dúvida original: tenho que descer por umas escadas verticais, através de um alcapão. Dizem-me que este “quarto” se chama “o bunker”. Não admira. A mim faz-me lembrar o buraco onde algumas famílias escondiam os vizinhos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. As paredes estão pintadas com motivos soviéticos. Lá atmosfera não lhe falta. O que falta são camas, porque os quatro lugares resumem-se a colchões colocados no chão. Sem mais. Mas não me incomoda nada, bem pelo contrário. Estou divertido com o local.

Passeamos no agradável parque, onde um enorme lago já viu melhores dias. Parece que as algas devoraram o oxigénio existente e um belo dia os peixes que ali viviam vieram à tona, de barriga para cima. A asfixia colectiva obrigou a cidade a esvaziar o lago para remoção das malvadas plantas, e agora está meio-cheio, à espera que as chuvas de Primavera o componham.

Os longos caminhos são cercados por altos pinheiros bravos, que criam uma atmosfera mágica. Uma ponte cruza um regato, e é ali que voltamos para trás. A menina do Calim quer brincar no parque infantil que, às cavalitas do pai, avista lá ao fundo. Sento-me a ver tudo aquilo… a miúda que interage com as outras crianças, o Calin que se delicia com o seu rebento e a ajuda no balouço, antes de, também ele, fazer alguns exercícios nos aparelhos de ginástica ali ao lado. E vejo os outros pais, e tudo aquilo e sinto-me bem, com um sorriso abstracto na face. Que diferença para os dias horrendos de Kiev. A Moldova não tem nada de especial, nem o tem a sua capital. Mas não sei se é de mim mas acho um país naturalmente encantador, simpático, com gente agradável.

Temos que pensar em voltar. Subimos os 220 degraus da escadaria de pedra que leva ao parque e o Calin conduz o carro, mostra-me o supermercado que lhe pedi e detem-no uma última vez, junto a uma esplanada, onde bebo uma boa cerveja Chisinau não filtrada que me sabe muito bem, fresca, levemente doce. Aprecio imensamente aqueles últimos momentos com o meu novo amigo e digo-lhe isso mesmo. Que vou guardar estas belas memórias com ele, com a sua família, em Chisinau.

Despedimo-nos com um “até breve” e parto à descoberta da cidade, enquanto ele passa por mim, já de carro, apitando e acenando. Passeio pela avenida abaixo, entro no mercado e fico fascinado. Será pela aura positiva que sinto em Chisinau? Não sei, mas anoto mentalmente que este é o mercado mais divertido e pictoresco que já visitei. É cheio de côr, produtos completamente diferentes e gente fascinante. Há vendedores de todos os tipos. Desde as velhotas, de pé, tentando impingir as suas roupitas antigas, até a pequenos “centros comerciais”. Há um pavilhão de queijo onde as vendedeiras se alinham numa verdadeira multidão por detrás da banca contínua, e a zona das frutas, a zona das carnes, e há as barraquinhas de bolos e pão, e os vendedores de bugigangas.

Tiro imensas fotos porque tudo aquilo me inspira imensamente. E pegado ao mercado é a estação principal de autocarros, o que cria uma segunda camada de côr e animação. Percorro as duas ruas pejadas de carrinhas e autocarros, observo a multidão de pessoas tão diferentes que espera o seu transporte, os amigos que conversam, as crianças impacientes, os condutores que trocam as últimas cuscovilhices. Os veículos são, também eles, dignos de atenção. Há-os de todos os tipos, mas nenhum é realmente moderno. Alguns condutores apregoam os destinos, procurando chamar a atenção de potenciais clientes mais distraidos.

Deixo para trás aquele burburinho com um sorriso na alma, e continuo a caminhada avenida abaixo. Na realidade, isto será a minha visita a Chisinau, porque não há muito mais que a cidade tenha para oferecer. Mas do pouco faz-se bom. Ando até chegar a uma praça, onde uma rotunda canaliza o tráfego em diferentes direcções. Para a esquerda vai-se para o aeroporto, para casa do Calin, e para fora, para a Transdniepria e para a Ucrânia. Afinal, foi por ali que entrei ontem, passando os chamados “portões de Chisinau”, que são dois gigantescos blocos de apartamento, construidos de um e outro lado da estrada em “escadinha”. Disse-me o Calin que foram construidos na sequência da visita do secretário-geral do Partido, que na época era Leónidas Brejhnev (devem existir pelo menos uma dúzia de maneiras de escrever este nome). Segundo se diz, ele, olhando para o local onde a cidade começava perguntou: “então… mas porque é que este espaço está vazio?”. Ao que o embaraçado representante local respondeu: “Compreendido, camarada Secretário-geral”. E no dia seguinte as obras arrancaram.

No centro desta rotunda, um monumento comunista, que resistiu melhor que a estátua de Lenina, removida da sua posição de destaque para o desterro relativo do parque que visitei de manhã. Depois, o antigo hotel, no passado reservado aos estrangeiros que visitavam a Moldávia, e hoje uma ruina à espera de sentença, com o caso a arrastar-se em tribunal. Do lado de lá, um outro hotel, de aspecto decadente mas pelo menos aparentemente em funcionamento. E, atravessado ali a estrada, está-se defronte do museu de arte moldava.

É ali que volto para trás, refazendo os meus passos, observando as fachadas, algumas faustosas, que se vêem de um e do outro lado daquela longa avenida. Já levo bastante fome e entro numa pizzaria de aspecto moderno. Existem alguns clientes. Sento-me a uma mesa e espero. Canso-me, levanto-me e vou-me embora. Depois tento o McDonalds. Olho em redor e reparo numa coisa estranha: os preços não estão nos menús, apenas, em letra miúda, numa enorme tabela, lá ao fundo, que sinceramente não consigo ler. Assim, caros amigos, não fazemos negócio. Acabo por caminhar até ao supermercado que o Calin me apontou. É o final de uma tarde de Domingo, e gente nova encontra-se. Amigos com amigos, namorados com namoradas. Ao longo deste caminho, por ruas mais pacatas, existem alguns bares e restaurantes, com uma certa aura cosmopolita.

O supermercado é fraquito. Caro, muito caro, e com opções limitadas. Encho o cesto como posso, e à saida pago 8 Eur por bens que na vizinha Ucrânia me teriam custado uns 5 ou 6 Eur.

Depois é chegar ao hostel, que está um caos, com muita gente a sair para o destino seguinte, e empaturrar-me com os mantimentos adquiridos. Com o passar do tempo o ambiente torna-se mais agradável. Esta noite vai estar muito menos gente, e os que ficam são tranquilos, não se dá por eles. Passo um belo serão, assim como se estivesse em casa.


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