Este era o dia em que deixaria para trás o paraíso do Blue Nile Camping. Partimos, caminhando na companhia do anfitrião que ia à cidade. A Zuzana vem também, de ida para as Simien Mountains, um destino muito popular entre os viajantes que vêm até à Etiópia.

Na aldeia, lá estão os autocarros que fazem a ligação à cidade, a Bahr Dar. O autocarro enche mas não arranca. O Tamasgan e a Zuzana voltam a sair, deixando o lugar marcado. Vão fazer qualquer coisa. E agora surge o drama, quando a minha companhia de viagem se começa a sentir terrivelmente mal, tão mal que às tantas começo a vê-la desmaiar. Começo mas não acaba, porque recupera um pouco. Mas claramente não vai dar para seguir. Saímos do autocarro, o Tamasgan aparece com a Zuzana. Não vai dar para ir. Despedimo-nos ali dela.

O Tamasgan encontra-nos um lugar calmo para recuperar. Um quarto num lugar obscuro. Ele mais tarde diz-me que se trata de uma pensão para pessoas de passagem. A mim parecem-me quartos para… meninas. E a camisinha de vénus usada que está no pátio mesmo em frente à porta faz parte da minha inspiração para esta suspeita.

Passa-se talvez uma hora. O tipo da casa é simpático, preocupa-se com a situação. Mas o dia deve prosseguir. Lá será, mais uma noite no nosso palácio no Blue Nile Camping. Telefono ao Tamasgan e peço-lhe para regressarmos. Passado um bocado aparece, sempre atarefado, a despachar assuntos, mais um negócio aqui, um dinheiro a pagar acolá e outro a receber mais à frente.

Voltamos aos barcos e o caminho refaz-se, de volta ao Camping. Atravessamos, andamos, chegamos e lá está a cabana de lama, cama feita de fresca, confortável na sua simplicidade. É Domingo. Andam por ali visitantes vindos de Bahr Dar, alguns talvez de mais longe. Muita gente se desloca ali para ver as quedas de água, especialmente estudantes que têm este dia livre. Lá em baixo, frente às cataratas, a festa vai brava. Os jovens aproximam-se do vapor de água que resulta da queda e cantam, batem palmas, enquanto se molham, ficam a pingar.

Sento-me numa pedra com vista para tudo aquilo a ler a Visão que tinha trazido de Portugal. Converso um pouco sobre futebol com um etíope que por ali está. Um etíope que sabe mais sobre o plantel do meu Sporting do que eu. Já tinha passado por uma situação assim, digamos que vergonhosa, uma vez, na Geórgia.

Deixo o tempo passar, simplesmente. Bebo uma cerveja gelada. Ando por ali. O problema da manhã parece estar resolvido. A vida pode retomar o seu curso natural. Não vale a pena ir a lado nenhum naquele dia. Ficaremos por ali, porque não. Há comida, há animação, há boa cerveja.

Vai sendo tempo de nos lavarmos. O Tamasgan vai-nos indicar um local no rio, mais acima, um ponto tranquilo ideal para um bom banho higiénico. Manda um moço que o ajuda no campo para nos guiar. Um gaiato tímido e educado, que segue à frente, levando o nosso saco. Mais um passeio agradável que se faz a partir do Blue Nile Camping, em direcção oposta às que seguimos anteriormente.

Passamos por uma cabana tão tipicamente africana que penso que estou a ver as gravuras do meu livro de história da quarta classe tomarem vida. Aquele livro de história que me falava de um Portugal pluricontinental, de portugueses de todas as raças.

Mais à frente o nosso pequeno guia encontra um companheiro, um pastor que ali tem as suas vacas e burros, tudo misturado, como é costume por ali. Junta-se a nós durante um bocado e de repente estamos a chegar e o miúdo aponta-nos o caminho que nos leva à margem do leito do rio. É um paraíso dentro do paraíso, a água está quase morna e corre limpa. Tomamos o tal banho prometido, mudo de roupa interior, aprecio o momento, único, aqueles instantes que dão significado a uma viagem, que ficam gravados, para já, numa memória que vai ficando cada vez mais estéril.

É tempo de voltar. As cores daqueles campos estão maravilhosas, graças à luz de meio da tarde. Os castanhos são bem vivos, o azul do céu é profundo e os matos secos parecem dourados. Passamos por vários rebanhos. O pastoreio é uma actividade omnipresente na Etiópia.

Um homem jovem junta-se-nos e começa a conversar. Já imagino que terá algum plano, alguma sugestão, alguma forma de tentar lucrar com a nossa presença. É a Etiópia, é mesmo assim. Não sempre, mas quase. Desta vez afinal não. É um proprietário de gado mas tem um moço para o pastorear. Fala inglês com relativa facilidade. Ao longo de toda esta viagem fiquei diversas surpreendido com pessoas que inesperadamente, melhor ou pior, falavam comigo em inglês.

De volta ao campo. Na cabana aberta que faz as vezes de café o Tamasgan tem visitas. Ficamos ali um bocado.

O dia aproxima-se do fim e planeamos subir a colina que existe ali defronte para ver o pôr de sol. Por aquela altura já os visitantes de Domingo iniciaram o caminho de regresso e o território está desimpedido. Não há um trilho para o cume, é uma questão de se ir trepando, por onde os matos parecerem menos denso. A meia encosta a vista das quedas de água é magnífica. Mas percebo que não se ganhará nada em continuar a subir, até porque o arvoredo irá tapar boa parte do horizonte. Ficamos então por ali, sentados numa rocha, a ver o enorme sol que se retira para a noite. Como sempre andam por perto rebanhos. Um pastor pede dinheiro. Já não há sol. Vamos para baixo. Agora sim, os dias do Blue Nile Falls estão a chegar ao fim. Foram quase sempre doces. É um lugar imperdível.

O serão foi agradável. Ao fim de três dias há uma relação com o Tamasgan que não existiu no início. Já somos amigos, por assim dizer. Somos só nós os quatro, à conversa. Bebo uma aguardente a que ele chama “Dente de Leão”. É o que me apetece, que me sinto um pouco engripado. E é o fim deste tempo por ali.

 

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