Pois à segunda foi de vez, e desta feita, sem incidentes, se fez o caminho entre o paraíso do camping das Blue Nile Falls até Tississat, que por si e apenas por si é dos lugares mais desagradáveis por onde já passei. Dali, com a ajuda do inestimável, do grande, do magnífico Tamasgan, para dentro de um autocarro para Bahr Dar e de novo aqueles 30 km de estrada com buracos do tamanho de vulcões.

Desta vez fez-se melhor. Talvez a suspensão estivesse em melhor forma, ou talvez me sentasse mais afastado da roda traseira. E em menos de nada estava a chegar à estação de autocarros de Bahr Dar, também conhecida como Bahir Dar. Tinha reservado um quarto num hotel económico mas económico ou não tinha direito a um transfer gratuito da estação. O transporte demorou. Tempo para sentar à sombra e observar: os mecânicos que trabalhavam na oficina ao ar livre, junto à estrada, as mulheres vestidas de cores garridas que esperavam não sei o quê, os restaurantes ali atrás de mim, o trânsito que ia passando, os autocarros que entravam e saíam do terminal rodoviário. E eu cá fora, a comunicar com o condutor que me iria buscar. SMS para trás e para a frente, até que chegou mas não me via, porque não prestou atenção à localização que lhe dei, e depois caminhei eu em direcção aonde pensava ele estar e lá nos encontrámos.

O condutor era, nem mais nem menos, do que o gerente do hotel, que já levava um passageiro dentro do carro, um outro hóspede, um senhor muito digno, etíope de nascença, que regressa todos anos mas vivendo na Suécia há décadas. Companheiro simpático, com um inglês perfeito, que me ofereceu uma grande conversa até chegarmos ao hotel.

Depois das noites passadas em Adis Abebba e no Camping, este hotel barato deu-me um quarto que parecia uma suite. Água quente não havia, claro, mas isso era um pormenor. Tinha uma enorme cama, janelas, água corrente. Maravilha. E um restaurante com bebidas frescas e comida barata, como tudo da Etiópia. Tinha vista para a rua, e como estava alto era uma bela vista, para os padrões de uma cidade africana.

Até este momento não estava decidido quantas noites seriam passadas aqui. Talvez apenas uma. Estava em aberto, porque o próximo destino seria dos poucos na Etiópia onde chegaria por via terrestre. Autocarro para Gondar.

Sair para a rua fez-me pensar que era apenas agora, cinco dias depois, que estava a caminhar nas ruas de uma cidade etíope. E era bom. Muita gente, mas ninguém me prestava atenção. De forma alguma.

Fomos até a uma igreja ali perto, nas margens do imenso lago Tana, que tantas histórias tem para contar e tantos motivos de interesse guarda. A igreja não era nada de especial, um templo relativamente moderno, construído para substituir a que ali existia e tinha sido arrasada pelos italianos. Valeu a calma do espaço exterior. Na Etiópia descobri igrejas cujas áreas envolventes me fizeram pensar no ambiente das mesquitas, um lugar para relaxar, estar com outras pessoas, procurar abrigo do bulício da vida. Aqui, eram todas assim.

Depois enfiámos por um trilho que segue sempre junto à margem do lago. Um ambiente fantástico. Depois de passar por uma área um pouco mais manhosa, com aquilo que penso ser uma comunidade de pessoas sem casa, o trilho prosseguia, passando junto a casas de chá improvisadas, por vezes sob a densa copa de árvores, por vezes expondo-me ao sol inclemente. Em alguns troços não se via vivalma, e depois havia casais que namoravam, amigos sentados à conversa. E sempre, sempre, as águas do lago.

Um casal seguia à nossa frente. Havia ali qualquer coisa. Não eram namorados, mas existia um clima. Caminhavam muito juntos, sentia-se uma cumplicidade. E de certa forma fizeram-nos companhia durante muito tempo. Às vezes íamos nós à frente, outras vezes eles. Até que ele meteu conversa, a curiosidade natural, de ver ali ocidentais. Teriam uns 60 anos, e poderiam ter sido namorados no liceu, podiam ter-se reencontrado por acaso nas ruas de Bahr Dar, podiam ter descoberto a chama que se reacendia, inesperadamente. Ou então, nada disto. Mas deixem-me imaginar…

Este passeio é uma pérola para os apreciadores de aves. Há muito que ver, e até monitors, aqueles enormes lagartões aquáticos que metem medo. A mim metem. O problema deste trilho é que acaba abruptamente, após passar junto a um enorme edifício que começou a ser construído mas nunca foi acabado.

Mais à frente há mais uma casa de chá ao ar livre. Cadeiras de plástico, muito pessoal por ali. Um tipo claramente acelerado começa uma conversa. Estranha. As perguntas do costume, mas não me estava a deixar confortável. A tentativa de vender um passeio de barco, e eu continuava desconfortável. Não se passou nada. Um pouco à frente vai um barco pelo lago numa grande festa e quem era o líder senão este amigo… assim que nos viu começou a convidar para um passeio no lago, por conta dele, que não era para pagar nada… mas continuei sem me sentir confortável com ele.

Mas na mesma “casa de chá” estava outro grupo de homens, talvez professores de liceu, e um deles, quando soube que era português, fez questão de explicar a visita que o irmão de Vasco da Gama fez ali durante as suas deambulações.

A tarde já ia a meio e o calor e o desgaste de tudo faziam-se sentir, mas queria chegar à ponte sobre o Nilo Azul. Diz-se que por vezes se vêem ali hipopótamos. Sinceramente, pelo que vi e pelo que aprendi nos dias que acabei por ficar na cidade, duvido. Mas de qualquer forma queria atravessar a ponte e encontrar o memorial às vítimas do Derg, o sinistro regime comunista que se manteve no poder até à queda da União Soviética.

E encontrei. Paga-se bilhete, uma coisa mínima, e como em tantas situações na Etiópia é-se revistado até ao tutano. A paranóia reina por aqui. Bem, o memorial vale a pena. Tem um pequeno museu, uma série de esculturas e um amplo jardim. Há um ambiente de festa, com meninos da escola, pessoas que vêm visitar, algumas claramente de outras partes do país. Existe um espaço aberto onde se encontra velho material bélico de origem soviética. Gostei. E gostei especialmente de comer na cafetaria… vamos lá ver… comida etíope para dois, duas belas cervejas geladas, dois chás… e quanto é que custou tudo isto? Simplesmente 1,75 Euros. Parece impossível, não é?

Depois fui ver se tirava umas fotos ao material bélico. Bem, estavam lá três ou quatro polícias sentados à sombra de um velho helicóptero. Um deles levanta-se e vem falar comigo e o que se passou foi dos momentos mais surreais das minhas viagens. O homem esteve a “conversar” durante uns 15 minutos e durante todo esse tempo basicamente não percebi nada do que ele disse. Isto em inglês, mas nada mais do que frases sem sentido, e eu a fingir que sim, a acenar com a cabeça, pois… é melhor não contrariar os malucos, e a pensar que aquela santa alminha era uma autoridade na Etiópia. Acabei por não tirar mais do que umas poucas fotos, não porque ele não deixasse, frontalmente (apesar de ter começado por aí), mas porque falava tanto que não dava hipótese e para acabar com aquilo despedi-me com uma desculpa qualquer.

 

Bem, o cansaço já aperta mas a vida é curta e só se está na Etiópia uma vez. Nunca se sabe, mas vou assumir que assim será. E portanto, fazer o caminho de regresso, tornar a atravessar a ponte guardada por polícias em ambas as extremidades. Malucos, ainda fomos a um passeio por um caminho de terra batida, passando por uma aldeia, direitos a um dos braços do Nilo onde havia notícia de hipopótamos. Aqui mais provavelmente, o que passaria a um certamente num dos dias seguintes, como veremos. Foi um bom passeio, no final da tarde, com as cores muito vivas, o verde da vegetação, das árvores e da relva, a contrastar com o castanho avermelhado dos solos. Muita gente pitoresca. Em grande. Acho que foi ali que ficou decidido que era para ficar pelo menos mais uma noite.

Antes de chegar ao hotel, uma paragem para aviar um daqueles “sumos” à Etiópia. São tão densos e substanciais que têm que ser mais comidos do que bebidos, com uma colher. Mais tarde, depois de descansar o possível, desci ao restaurante do hotel para uma tosta francesa. Nunca tinha comido e não gostei. Até me caiu mal.

 

 

 

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