Maio de 2010. No espaço de alguns dias jogo esta espécie de roleta russa por duas vezes: viajar numa mashrutka entre a capital da Geórgia e a sua homologa arménia, Yerevan e voltar pelo mesmo caminho. As viaturas são desconfortáveis, vão apinhadas, e estão quase sempre a cair de maduras. Junte-se condutores desvairados e está preparado um “cocktail” de alto risco. O percurso entre as duas cidades leva cerca de seis horas, e são seis horas vividas intensamente. Quando a adrenalina não está a ser injectada a alta pressão perante a eminência de mais uma colisão frontal ou durante uma ultrapassagem em plena estrada de montanha onde a seguir a uma curva há sempre e apenas uma contra-curva, os olhos devoram. E que banquete aquele!

São as barracas dos mecânicos e as vendas de carros em segunda mão. São as montanhas caucasianas e prados verdes pintados de amarelo das flores. São as aldeias pictorescas, os compadres sentados à beira da estrada, os camiões quase medievais que se cruzam conosco. As feiras matinais e os rebanhos que interrompem o andamento da viatura. E, no meio de tudo aquilo, no caminho de volta, vi este velhote. A mashrutka tinha parado por um instante. Já não me recordo se para largar e recolher passageiros ou para que o alucinado condutor comprasse cigarros. Seria impossível não reparar nele. Quem seria aquela personagem e quem teria sido ao longo da sua vida. O olhar amargurado prendia-se no infinito, como se tentasse ainda rever um passado distante, quando as pernas não fracassavam, o trabalho era duro mas tudo fazia sentido. Seria a defunta esposa que procuraria ver, ou apenas os sorrisos gaiatos dos filhos agora emigrados em Moscovo ou em Frankfurt? E que histórias teria aquele chapéu para contar?

Quando os meus olhos pousaram nele, pensei imediatamente numa fotografia, mas não sabia bem como a tirar. Estava sentado do lado oposto ao do passeio onde o homem se sentava. Tinha passageiros e bagagem entre mim e aquela visão. Não sabia quanto tempo tinha, se podia sair da carrinha por um par de segundos ou se seria boa ideia levantar-me de câmara em punho e fazer um disparo directo. Uma das questões foi rapidamente respondida. Pensava eu no problema quando o condutor entrou, apressado como sempre, e num ápice sentou-se, engatou uma primeira, destravou e fez a viatura começar a mover-se. Nesse instante foi uma questão de instintinto. Mesmo dali, com os “settings” todos calculados a olho e ajustados numa fracção de segundo. Saiu esta fotografia  meio bizarra, com elementos do interior da mashrutka a servirem de moldura aquela face cheia de dôr. Ficou assim como se quisesse espreitar-lhe a alma sem ser demasiado indiscreto, escondido, olhando por detrás de algo.

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui