Segunda-feira. O reconhecimento feito na véspera dá os seus frutos. Acordamos cedo, ao mesmo tempo que o sol, cuja alvorada preguiçosa se pode ver da janela do quarto, erguendo-se mansamente daquele pedaço do mar esquecido, parente pobre do glorioso azulão da “caldera” para onde todos os olhos estão virados, sempre.

O pequeno-almoço gratuito do hotel terá que ser dispensado. Apressamo-nos para o autocarro, que sai às 6:50. Há algum nervosismo porque durante o dia o horário é uma mera noção, e há um barco para apanhar no porto de Oia. Mas pelo menos a primeira saída respeita a hora, e tudo parece correr bem. De tal foma que chegados a Oia há ainda tempo para fotografar placidamente a aldeia aquela hora em que não se vê vivalma nas ruas. A luz é perfeita. E fica o conselho dado: se se visita Santorini, vale mesmo a pena o acordar a horas indecentes para se apreciar esta pictoresca aldeia antes dos turistas chegarem e dos locais acordarem. É sumptuoso.

Mas o relógio não pára o seu tic-tac e com tanta distração em redor vai-se aproximando da hora. É tempo de começar verdadeiramente a andar em direcção ao porto, lá muito em baixo, no fundo da extensa escadaria. Vamos a meio quando avistamos a embarcação, a vir para cá, muito rápida, muito nervosa, como ficou provado ser o seu estilo. Ainda bem que ontem reparei que o horário não foi respeitado e que largou dez minutos antecipados, porque hoje a situação repetiu-se e chegámos à sua beira mesmo a tempo de embarcar e ver a costa a afastar-se.

Vamos quase sozinhos. O rapaz que faz de cobrador aproxima-se e diz: “two euros and twentie”. Mas no dia anterior tinham dito 1 Euro por pessoa e por viagem. Não que seja importante, mas já tinha os dois Euros na mão e passo-lhos automaticamente enquanto mentalmente processava a discrepância. Antes que pudesse reagir, ele olha para as moedas, faz uma expressão de quem encolhe os ombros e vira as costas. Deve ter pensando que não valia a pena explicar que faltavam 20 cêntimos e satisfez-se com a quantia entregue.


O barco, de potentes motores, afasta-se a grande velocidade, criando uma míriade de efeitos à popa, enquanto as hélices criamuma agitação nas águas que se vão tornando espumosas. Em menos de nada estamos do outro lado, na ilha de Thirassia. A travessia dura uns 10 minutos. À espera, o autocarro verde que tudo o que faz na vida é ligar o cais à aldeia de Manolas (que significa Manuela). O bilhete são 0,70 Eur. Algumas crianças entram numa paragem no meio de nada. Estamos naquela hora da manhã em que as crianças vão para a escola. Mais à frente, uma pequena aldeia. Fascinante. É uma povoação pura, não há qualquer sinal de que alguma vez um turista tenha posto aqui os pés. É uma Grécia nova que de chofre se desenrola perante nós. E que boa surpresa é. Ao final do dia fica claro uma coisa: pelo menos naquela Segunda-feira fomos os únicos estrangeiros em Thirassia. A uns meros 8 km da massa initerrupta de turistas que calcorreiam cada canto de Oia e Thirassa, espalhando-se de forma mais aligeirada por toda a ilha maior.

O autocarro detêm-se de novo e entra mais um grupo, maior, de jovens estudantes. Um homem nos seus trinta anos, de aspecto letrado, que se senta junto ao condutor, parece conhecer a gaiatada toda. Será o professor? Provavelmente. Mas não. Mais à frente a viatura pára uma derradeira vez. E o grego explica-nos em bom inglês que aquela é a última paragem (não para ele, que segue com o condutor) e que depois de visitarmos a aldeia deveremos descer a escadaria e apanhar o barco da tarde neste outro cais. A miudagem corre para escola que é mesmo ali defronte e somos deixados sozinhos, num seossego preocupante. Então… onde está a aldeia… é isto, apenas isto? Como vamos passar o resto do dia se não há ali nada para além de um par de casas?



Afinal, veio-se a ver, tratava-se apenas de um vértice e Manolas era até maior do que esperado. Passámos por um estreito corredor e acabámos por desenbocar na rua principal da aldeia. Principal será um maneirismo, porque creio que seria a única rua. Caminhámos apreciando cada metro. Algumas das casas apresentavam pinturas imaculadas, floreiras vivas, decorações primorosas. Outras estavam ao abandono, provavelmente tendo sido habitadas nos últimos anos por idosos falecidos ou retirados para junto de famílias noutras paragens. E existiam aquelas que tinham começado a ser construídas ou renovadas, mas nunca acabadas, quiçá sinal de uma crise que flagela a Grécia com um vigor não visto em mais parte alguma.

Os primeiros aldeões vão acordando. Alguns homens trabalham numa obra, perto de um complexo hoteleiro que está agora entregue aos inclementes elementos. Espreitamos aqui e acolá. A piscina, semi-cheia de uma água negra pútrida, com destroços semi submersos; na sala de refeições, empoeirada, vêem-se pilhas de toalhas que à distância parecem imaculadas e prontas a ser usadas. Penso na glória de outros tempos, se o local a teve. Ou então nas esperanças enterradas, de alguém que ali investiu tudo o que a vida lhe deu, num esforço vão de fazer algo diferente.

Do nosso lado direito cada casa é provida de um terraço que oferece uma vista deslumbrante. Do outro lado das águas, para além da ilha desabitada do vulcão, Santorini. Tão perto e tão longe. Aqui, uma aldeia perdida nas entranhas da Grécia insular, os seus habitantes fechados numa comunidade unida, certamente de velhas alianças e inimizades, de segredos sussurados ao vento. E lá, não tão longe como isso, ao alcance da vista, a dez minutos de barco, o expoente máximo do turismo nacional, a brancura alva que durante gerações tem cativado o imaginário de jovens de todo o mundo.

Mais à frente, a roupa alinhada num estendal diz-me que nem só velhos vivem naquele ermo. Paradísiaco, mas, mesmo assim, um ermo: ali vivem também crianças, uma família funcional, quem sabe, um casal, movido sabe-se lá por que forças. E estava nestes pensamentos quando a porta se abre e sai um homem. Cumprimenta-nos e segue, passo certo, caminho acima, à nossa frente. Noutros tempos seria o paladino da comunidade, ombros largos, cabeleira farta. Uns metros adiante detém-se junto a um Suzuki Samurai, e com o avanço que rapidamente nos tomou, criou-se o tempo para vermos que a ignição não corresponde. Nós seguimos, até à orla da aldeia. Mas temos tempo de o ver regressar a casa e retornar dotado de umas quantas ferramentas.

Chegados à última casa giramos nos calcanhares. O Samurai já ali não está. Mas a rua está mais vida, com as vozes daqueles que entretanto sairam para a rua para cumprimentar um novo dia. Notamos as escadas que mais tarde nos conduzirão ao porto. Medimos o tempo e concluímos que será suficiente para caminhar até ao final da ilha e regressar ao porto antes do barco fazer a sua passagem. É preciso é ir com passo certo de determinado, e depois de passar por um velho moinho prossigo sozinho. Cruzo-me com um casal de anciões, vindos de uma inspecção à terra de vinhas ali defronte. E ando, pela paisagem agreste e desolada, até avistar ao fundo uma estrutura branca, que logo depois ganha contornos de edíficio religioso. E quando chego, estou onde a terra acaba e ali, um convento, deixado para trás, apesar de bem conservado. Exploro os páteos e as vias à pressa, antes de iniciar o caminho de volta. Em acelarado. Chegado a Manolas, inicio a descida, os tais degraus, que naquele dia estão a ser reparados. Burros carregam os materiais, da mesma forma que na aldeia são usados para transportar os lixos.

Quando venho a meio da descida penso na sorte que tenho de não estar a acedender, porque o calor faz-se sentir, apesar de não estarmos sequer a meio de Maio. O porto é um pequeno caos, não porque uma multidão por lá se movimente, mas porque as estruturas se ergueram sem uma ordem aparente. Há um moinho recuperado que tem anexo um restaurante, e mais dois restaurantes, abrigos de pescadores, um pontão com outro Suzuki Samurai apesar de para o porto não haver acesso para veículos. E de novo aquela água limpída do Mediterrâneo.

No barco vinhamos apenas nós, até chegar ao segundo cais de Thirassia onde um pequeno grupo de gregos embarcou. Chegados a Oia, a subida, desta vez pela estrada que vai à volta, que de degraus para o dia já bastava. Caminhámos por partes que ainda não tinhamos explorado, na secção que se extende em direcção a Thira. O calor era brutal. O branco das casas, omnipresente, reflectia toda aquela luz de forma cruel. Era tempo de recuperar forças no nosso restaurante do coração. Desta feita pedi uma “sandwich”, que se revelou uma baguete tostada, aberta ao meio. Numa das faces, pedaços de carne de porco, e noutra, gomos de batata assada em formo, pedaços de tomate fresco e outras iguarias, tudo regado com um fio de azeite e ervas aromáticas.

A tarde ainda ia a meio, mas tanta actividade tinha cansado. Ansiava por regressar ao pequeno hotel de Thira, mas a tarefa não seria simples: na praça dos autocarros houve que esperar a bem esperar e quando finalmente um apareceu, cerca de uma hora mais tarde, a multidão de rudes turistas americanos, com a incivilidade que lhe é característica, correu desordenamente, como uma manada de gado, e encheu o espaço disponível. O motorista teve que fechar as portas, anunciando que dentro de cinco minutos outro se apresentaria. Pensei que fosse conversa fiada, mas aconteceu mesmo, e desta vez gozei de uma viagem tranquila até Thira.

Depois, foi descansar, tomar um duche, apreciar a calmaria daquele quarto de porta aberta para o páteo de onde se via o mar ao fundo e a brisa acariciava a pela. Acho que dormi. Não muito, talvez uma hora. E então saímos para ver o pôr-do-sol, para esticar um pouco as pernas antes de nos recolhermos à área comum do Popi, onde todos os serões fizemos uso da Internet.

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