Este foi o primeiro dia de uma situação que já era esperada mas que não deixou de ser aborrecida: como se tornou logisticamente impossível dar a volta completa à ilha e foram em vez disso feitos dois semi-circulos, tornou-se claro que alguns destes dias seriam usados a simplesmente “regressar”, passando por locais já vistos. E hoje era o primeiro desses dias, alcançado que estava o ponto mais afastado que iriamos atingir.

Na realidade o plano tinha uma extensão que foi anulada pela evolução das condições climatéricas. A ideia era usar Akureyri como base para um longo dia de passeio ainda mais para Leste, mas as maravilhas do lago Mývatn não seriam usufruidas. Num ano normal a Primavera já teria tomado conta daquelas paragens, mas este ano toda aquela zona estava coberta de branco, gelada, com estradas possivelmente em condições perigosas para alguém como eu num carro como o que eu tinha ao dispôr. O Sveinn e a Ana tinha lá ido no dia em que chegámos a Akureyri e apesar de se terem divertido bastante, não esconderam as condições invernosas que ali se sentiam ainda. Para mim chegava de branco. Ficou a hipótese colocada de lado.

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Portanto tinha um dia mais ou menos livre, sem grandes planos, para além da intenção de chegar a Blonduos para pernoitar em casa da Rannveig. De manhã, enquanto dormia, foi uma polvorosa naquela casa. Ao serão tinham estado oito pessoas. E mais de metade delas partiam bem cedo. Ficámos nós e o Sveinn. A descansar até mais tarde. Como na véspera tomámos o pequeno-almoço de cereais juntos. Perguntei-lhe se queria boleia para o centro, sabia que ele precisava de tratar de assuntos no banco. O Sveinn deve ser um dos poucos islandeses que não conduz. E não por acaso. Simplesmente tem a carta apreendida, não perguntei porquê. É complicado viver neste país sem carro.

No centro. Insinuei a vontade de passar um pouco mais da manhã na sua companhia. Não fazia ideia se lhe agradaria por ser uma pessoa que gosta de pessoas ou se preferiria um pouco de sossego depois de uns dias bem passados. Disse que ia dar uma volta pela cidade, deixei um convite implícito no ar… que foi aceite.

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Foi assim, tendo o melhor guia posssível como companhia, que explorámos a parte antiga de Akureyri. Uma zona que nem imaginava que existisse, porque não é propriamente o centro. É, isso sim, o núcleo histórico e foi bem interessante.

O amigo ia-me indicando as ruas a tomar. Eu por mim queria era estacionar e caminhar. Viajar pela Islândia implica longas horas ao volante. Foi uma das muitas más impressões que trouxe desta viagem. A brutalidade do tempo que se passa sentado a conduzir. Mas ele não estava pelos ajustes… sempre… “não, paramos mais à frente, ainda estamos longe”. Até que encostei mesmo e fechei o assunto. “Aqui parece-me óptimo, acho que podemos andar a partir daqui”. Foi o meu momento de egoismo. Mas no fim posso garantir que todos, incluindo o Sveinn, apreciámos aquele passeio. Na realidade, depois de tirada a ferrugem das pernas, o homem parecia movido com pilhas Duracell.

Foi uma visita guiada a sério. Com a informalidade que uma amizade, apesar de fresca, traz à ocasião. O Sveinn ia explicando… o primeiro teatro de Akureyri. O primeiro centro de escuteiros, há quase cem anos atrás. O antigo hospital. Ali, do outro lado do fiorde, havia um segundo núcleo histórico. E naquela casa viveu ele uns anos. Mais à frente… “ah, e vivi nesta, amarela, também, já me esquecia”. Uma corridinha entusiasmada para trás de um edíficio. Explica-nos: aquele pavimento, assentou ele, um favor a um amigo, então o proprietário do imóvel. Queria ver se ainda lá estava o fruto do seu trabalho.

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Vimos uma encantadora loja de antiguidades, e casas pintadas de cores vivas. Passámos por jardins, defronte de dois museus e outros tantos memoriais. Fomos apresentados a uma casa de gelados familiar que muito empolgou o nosso amigo, que não conseguimos evitar que pagasse gelados para todos. Alegria, pura alegria, naquele(s) momento(s) de partilha. Mais tarde, quase na hora de regressar, ele confidencia-nos: há muito tempo que não ia ali, que não tinha nada a fazer naquela parte da povoação… mas que com companhia era outra coisa, especialmente quando a companhia se interessa em vez de franzir o nariz. Acho que o Sveinn gostou tanto ou mais do que nós daquelas horas usadas a percorrer a velha Akureyri.

Aqui e ali ele falava com pessoas, velhos conhecidos. Prolongou-se no paleio com um velhote que nasceu e sempre viveu naquele bairro e que nem por um segundo encarava a possibilidade de ter sido de outra forma. O outro tinha estado à pesca naquela mesma manhã, ali defronte, nas águas do fiorde, e viu uma foca a tomar sol. Ainda fomos por lá, regressámos sempre pela orla, mas nem sinal do bicho.

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Deixámos o Sveinn em casa, estava na hora do adeus. Foram dois dias muito agradáveis, logo ali, para onde as expectativas iam baixas. O dia estava excelente para viajar. Muito céu azul, o frio quase que ausente. O carro rolada calmamente, já a uns 10 km de distância, quando o telefone tocou. Era o Sveinn. Tinha-me esquecido do estojo do computador e respectivo recheio lá em casa dele. Ainda bem que reparou nisso! Meia-volta, regressar, para depois voltar a refazer o caminho.

Vamos voltar a passar pelas aldeias visitadas na véspera, desta vez vai ser mesmo a volta completa da peninsula. A previsão metereológica é optimista e o mapa do estado das estradas, uma ferramenta essencial para uma viagem à Islandia mostra tudo a verde na região. Ou seja, asfalto em exclentes condições, sem gelo ou outros problemas.

Com muito tempo e sem “penduras” paramos aqui e acolá, para onde a vontade nos impele. Descobrimos recantos, pequenos hóteis, grupos de casas, aldeias. Não vale a pena citar nomes. Teria que trabalhar com o mapa, porque a onomástica islandesa é complexa, raramente nos fica no ouvido. Vejo numa fotografia um nome: Hjalteyri. Uma pequena aldeia piscatória bem escondida da vista de quem passa na estrada principal (foto abaixo). Há uma fábrica que parece abandonada, certamente de processamento de peixe. Em frente, um homem aparentemente nu mete-se dentro de uma banheira com água quente, ao ar livre. Ouço-o falar com uma jovem mulher e uma criança. Não são islandeses. Serão talvez cientistas em missão. Li qualquer coisa sobre isso e têm de facto o “look” certo.

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O que ficou foi a memória, de um meio do dia agradável. Passámos por Dalvi pela terceira vez, para parar apenas para umas compras sumárias no carissimo supermercado local. Depois foi passar pelos túneis, com uma preve pausa na minha aldeia favorita, Siglufjörður, para visitar o cemitério. A neve é ainda bastante, algumas cruzes de campas apenas se deixam mostrar na extremidade, tudo o resto enterrado no manto branco.

E depois chegamos ao topo da península, daqui para a frente tudo será novidade. Mas não há muito para ver. O mar de um lado, as colinas do outro. O Inverno vai desaparecendo gradualmente. Nesta face da pensinsula o castanho substitui o branco. É uma outra realidade. Sinto um alivio. Já me sentia oprimido com aquela paisagem invernosa. Este foi o ponto mais a norte onde estive até agora, na minha vida. E foi norte que vi. Aquilo é o meu imaginário do agreste Alasca, da distante Gronelândia. E encontrei-o ali, não no Inverno, mas já Primavera avançada.

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Daqui para a frente não há muito a contar. As horas tinham-se consumido com as muitas paragens exploratórias. Surgiram algumas dúvidas na rota a seguir. A mais curta era fácil de definir. O problema era adivinhar se os troços eram de asfalto e se não atravessariam zonas montanhosas que provavelmente estariam encerradas nesta parte do ano.

Passámos por Sauðárkrókur, onde inicialmente tinha existido uma possibilidade de pernoitar. E ainda bem que não se concretizou. Não sei se naquele momento estava especialmente negativo, marcado pelo cansaço, pela vontade de chegar a algum lado e simpesmente deixar-me estar, mas a verdade é que Sauðárkrókur me pareceu por momentos o local mais feio da terra. O local não, a localidade. Quando hoje penso naquela grande aldeia vem-me à ideia as terras sem lei dos filmes Star Wars, habitadas por piratas intergaláticos, criaturas estranhas e perigosas. Senti uma atmosfera a cidade mineira, talvez pela pouca intensidade da malha urbana, muito extendida mas muito pouco ocupada. Já havia muita sombra, as luzes estavam acesas, mas via-se muito pouca gente. Foi um arrepio e só pensávamos… “credo, ainda bem que não ficámos aqui”.

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Já não demorou muito até chegar a Blonduos. Depois de algums problemas para encontrar a casa fomos ali muito bem recebidos pela nossa anfitriã, que partia no dia seguinte para Veneza mas mesmo assim tinha acedido a dar-nos hospitalidade. O momento alto desta curta estadia foi contudo a conversa que tivemos com o filho dela, cujo nome infelizmente esqueci, e que tinha autismo-asperger. Fabuloso como aquele puto de 16 ou 17 anos falava inglês conosco, entusiasmado, nos explicava onde ir e o que visitar na Islândia, que conhecia tão bem. A Rannveig tinha pedido desculpas adiantadas, que o filho, provavelmente por causa da sua condição, era extremamente tímido. Tímido!? Falou e falou e informou. Foi excelente. E eu perguntava-lhe em sussuro: “Tímido!?” E ela dizia que nunca tinha visto tal coisa, que estava siderada. De tal forma que quase teve que o obrigar a ir para a cama, porque ele voltava, para mais uma pergunta, mais uma explicação.

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