Foi na Primavera de 2012 que passei por este lugar que era União Soviética, depois, tornou-se Ucrânia, até passar a ser Rússia. Tudo isto em menos de vinte e cinco anos. Sevastopol fica na Crimeia, aquela ínsula que sai da costa ucraniana do Mar Negro para ser abraçada pelas águas. Paraíso estival das elites russas, refúgio antigo dos membros do Politburo durante os anos da Guerra Fria, construiu-se ali um complexo subterrâneo que abrigaria o Governo Soviético em caso de crise ou guerra.

Em Sevastopol decidiu-se a Guerra da Crimeia, que trouxe para a linguagem comum termos como Cardigan e Baklava, que teve a primeira cobertura mediática da História Militar, que ficou marcada pela trágica Carga da Brigada Ligeira. Aqui se deu uma batalha determinante durante a Segunda Guerra Mundial, quando entre 1941 e 1942 a guarnição da fortaleza resistiu aos alemães naquilo que ficou conhecido como o Cerco de Sevastopol. Depois da guerra toda a área de Sevastopol tornou-se interdita ao público. Uma zona militar com a linha periférica a mais de dez quilómetros da cidade foio estabelecida e a tradição militar daquele canto da Crimeia tornou-se ainda mais evidente.

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Depois, com o colapso da União Soviética e a independência da Ucrânia as barreiras foram levantadas. Foi esta Sevastopol que conheci, antes de tornar a ser integrada na Rússia, durante a crise da Crimeia no Inverno de 2014.

E o que por lá vi foi espantoso. Sobretudo para alguém que como eu cresceu durante a Guerra Fria. Sevastopol era – e certamente continua a ser  – a materialização de um imaginário construido sobre as influências de Tom Clancy e de Ian Flemming. Era o mundo dos Caça ao Outubro Vermelho e dos James Bond. O que vi foi um pedaço da União Soviética que se recusa a morrer, uma terra que na altura era politicamente integrada na Ucrânia mas onde as pessoas se sentiam parte de um passado acarinhado como glorioso. Talvez se possa compreender: sem as forças armadas soviéticas – e antes disso, as russas – Sevastopol não seria nada. Foram os militares que trouxeram tudo: emprego, grandiosidade, dinheiro, animação, dias de esplendor, desenvolvimento. O colapso da URSS foi traumática para as gentes daqui. Que continuaram o culto do regime.

Em Sevastopol encontra-se um memorial ou um vestígio de actividade militar a cada passo. Não apenas dos tempos soviéticos. Não. De todas as guerras de que há memória. Desde a formação da Grande Rússia. Guerra da Crimeia. Primeira Guerra Mundial. Segunda Guerra Mundial. Guerra Fria. E actualidade. Porque apesar de a União Soviética ter cessado de existir há quase 25 anos, as ruas encontrava-se cheias de símbolos soviéticos. Comemorações agendadas para o Sábado seguinte eram adornadas por foices e martelos e outra iconografia comunista, como se nada se tivesse passado desde 1989.

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Há paradas de veteranos, museus que já não se pensava existirem, bailes de gala à moda antiga.  Vive-se por estas partes um sovietismo louco, como se não se tivesse dito a ninguém que tudo isso acabou há umas décadas. No fundo, respira-se a atmosfera que existe em todas as enormes bases militares, aquelas que são tão grandes que se confundem com uma cidade.

Nas redondezas vão caindo de podre as instalações que já não são necessárias. Um velho hospital militar no topo dos montes com vista para aquele mar de um azul maravilhoso. E o complexo secreto construido para albergar o Governo da URSS em caso de crise. A base de submarinos ultra-secreta foi entretanto recuperada, transformada num museu que se pode agora visitar. Mesmo fora da cidade tropeço em monumentos e padrões. Visito o local onde a tal Brigada Ligeira se lançou contra a muralha de metralha russa e o cenário dos confrontos mais violentos durante a invasão alemã.

Quando visitei era possível contornar a pé o enorme porto, quase exclusivamente militar, onde velhos vasos de guerra em estado decadente se encontram atafulhados. Quase todos ostentam a bandeira ucraniana, mas também os há russos, apesar da base que na altura essa potência estrangeira mantinha em Sevastopol se encontrar um pouco mais afastada. Fotografei com avidez, de início com o receio instintivo de quem está a recolher imagens de património militar. Um pecado quase mortal em quase todo o mundo, mas que deixava tudo e todos indiferentes por ali.

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Passei uns belos tempos em Sevastopol. As pessoas eram simpáticas, curiosas em relação a um visitante vindo de paragens tão distantes. Comi bem, bebi melhor. Não houve um momento de tédio, surpresas por todo o lado. Atravessei as águas do porto, por impulso, um dia que vi o ferry preparar-se para partir. Depois voltei para cá. Fui ver as coisas de outra perspectiva. Na cidade senti a cada momento que para onde quer que fosse havia uma surpresa à minha espera.

A orla do porto que está aberta ao público oferece um ambiente festivo, com restaurantes e turistas locais que se revezam para serem fotografados junto aos memoriais. Homens expressão amargurada pescam nas águas paradas do mar Negro.

Um dia ia com o meu anfitrião local, ucraniano com ganas de ser ucraniano, e passámos de carro junto a uma instalações de aspecto ultra-moderno e ultra-secreto. Havia antenas estranhas, um ambiente de máxima segurança e dezenas de pratos de satélite perfilados. Perguntei-lhe o que era aquilo. Qualquer centro de controle aeroespacial. Disse-me para tirar um par de fotografias caso achasse aquilo interessante. Não havia problema? Claro que não! Aquilo agora era Ucrânia! Os Russos que se lixassem. E enquanto dizia isto mostrava o dedo às sentinelas que olhavam de longe. Que fotografasse o que me apetecesse que se eles se sentissem mal fossem para casa. Pobre Nick. Um dia acordou e já não vivia na Ucrânia. Tinha regressado ao passado.

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