Esta é uma história sobre histórias e decorre em Damasco. À entrada da cidade antiga, um velho café emana o aroma de um cosmopolitanismo perdido. Na esplanada sentam-se homens locais e uns quantos estrangeiros, incluindo algumas mulheres ocidentais. Mas é no seu interior que ele se encontra, o homem de turbante e barba afiada que lê em voz alta um livro para a sua audiência embevecida. Estamos no café do contador de histórias.

A primeira vez que ouvi falar deste local mágico foi da boca do meu amigo Alfrend e logo o fiz prometer que ali me levaria.  Enquanto esperávamos pelo chá, ele foi-me contando um pouco mais desta tradição. Segundo parece, há muitos anos, mesmo antes do seu nascimento, os contadores de histórias de Damasco eram afamados por toda a Síria. Não havia quarteirão onde não existisse um destes cantinhos. Invariavelmente uma multidão ansiosa preenchia todos os espaços livres para ouvir as aventuras e desventuras dos heróis das histórias. O entusiasmo chegava a tal ponto que o contador já sabia que se arriscava a um soco bem medido de cada vez que, encarnando o papel do vil vizir, relatava com ignomínia os detalhes do plano que visava arrastar para as profundezas dos calabouços o bom príncipe. Noutras ocasiões a multidão envolvia-se em cenas de pugilato despoletadas por diferenças de simpatias para com este ou aquele personagem do conto.

Segundo manda o costume, a leitura das histórias termina imperetivelmente no momento em que se inicia a última chamada para as orações. E os contadores não se faziam rogados: regulavam o ritmo da narrativa para que a voz do imam brotasse da torre do minarete num ponto de elevada tensão, garantindo uma casa cheia para o dia seguinte.

Claro que havia os bons e os maus contadores de histórias. A capacidade de fazer vibrar a audiência expectante estabelecia a diferença, e para dominar a sua arte o contador tinha que jogar com a qualidade da história, com as expressões fisionómicas, com a sua voz e com a linguagem gestual.

Mas hoje há apenas este. E mesmo sendo único, já não há garantia da uma sala cheia. Surpreendeu-me ver tanta gente, especialmente visitantes, sentados lá fora, quando decorria na sala interior um espectáculo único. Fui uma vez, e apesar de não perceber uma palavra do que era dito, o ambiente fantástico do local e o empolgamento do artista atrairam-me ali uma e outra vez. Em todas elas o abastecimento de electricidade foi cortada a meio do desempenho, mas isso enriqueceu ainda mais a experiência: de súbito a escuridão, o acender rápido de velas, o som de passos apressados que se afastam, o ronronar do gerador que se inicia, e as lâmpadas que se acendem de novo.

No segundo dia, enquanto nas mesas que nos rodeiam pequenos grupos de homens e, espante-se, de mulheres, se deliciam com o fumo do argileh, Alfrend vai traduzindo, em voz baixa, o andamento da narrativa. Os ingredientes são esperados: o casal apaixonado cujo amor enfrenta um vil inimigo que deseja a rapariga. Na mesa à direita do contador um círculo de amigos que evidentemente é conhecido do artista, enquanto na da esquerda um casal de namorados indiferente ao andamento da história conversa em voz baixa. Já farto do sussurrar o nosso contador pespega uma grande cacetada com um queijado no banco vazio à sua frente e a rapariga apanha um susto de morte. Com gestos e um sorriso nos lábios ele deixa claro que se não houver silêncio o próximo alvo da sua ira será a cabeça da jovem e não a madeira do banco.

Hoje, sozinho, não seria capaz de lá voltar. E é por isso que me confesso incapaz de vos indicar como alcançar este local. Mas de resto, perante o desenvolvimento da situação na Síria é pouco provável que algum turista ali possa entrar nos próximos anos. E nem se sabe se o contador de histórias estará ainda vivo.

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