Marrakesh, 18 de Janeiro de 2015

Ao iniciar este texto chega-me uma confusão. Como escrever o nome desta cidade? Marrakesh? Marrakech? Marraquexe? As duas primeiras formas aparecem intercaladas em tudo o que é referência em língua inglesa, enquanto a última é a versão portuguesa do nome. Acho que me ficarei pela primeira porque me cai melhor no olhar.

E então, foi em Marrakesh que acordei no dia seguinte. Um despertar sereno, como se deseja. A luz entrava, tímida, através dos cortinados da janela. Todos os dias foi o mesmo, aquela luz, sem denunciar o que lá fora se passava, entrando timidamente pelo abertura do páteo interior do riade. Depois era sair, disfrutar da calma daquelas quatro paredes altas, olha para cima e tentar adivinhar se o céu azul era a sério ou apenas um quadradinho sem significado.

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Foram quatro as noites passadas no Riade Rockech e nunca me cansei de sentir o espaço. Que local maravilhoso para ficar. À chegada tinha deixado logo boa impressão, mas agora, com a luz de um novo dia, a impressão confirmava-se. Lá em baixo, no piso térreo, as coloridas mesas e cadeiras marroquinas traziam vida à vista. Havia trepadeiras com flores de vermelho intenso, e passarinhos que saltitavam, sem medo, habituados à presença humana. O mosaico árabe marcava os corredores e os interiores do riade. Tudo em harmonia, bem arranjado.

Com a vagareza que o ambiente inspirava fomo-nos preparando para sair para a rua. Era hora de iniciar a exploração da famosa Marrakesh. Tinha chovido durante a noite e o piso estava molhado, ganhando magníficos reflexos, cor emprestada dos edíficios da rua estreita, avermelhados como tudo na cidade. Na realidade esta é conhecida como a “cidade encarnada”, um epiteto adquirido pela tonalidade dos prédios tradicionais, construido com materiais avermelhados. De tal forma que a autarquia proibe a existência de qualquer outra cor. É engraçado, mas achei entediante. Ao fim de uns dias já não podia com aquilo, como se vivesse num mundo a preto e branco, só que em tons de encarnado rosado.

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Passámos pela rua Dobachi, o veio que nos conduziria diariamente à grande praça. O comércio fervilhante, o bulício, o movimento das pessoas. Uma energia que impressiona. A fome apertava, que o pequeno-almoço ainda teria que chegar, e logo parámos na loja dos batidos, um amor que se iniciou no primeiro serão e se estendeu até ao último momento. Ali, onde por menos de 0,50 Eur se bebia uma caneca de um delicioso batido de leite, mexido com frutos à escolha. Em cima do balcão os jarros perfilavam-se: abacate, morango, banana, tâmara e outros que não me ocorrem. O cliente pode pedir ou misturado. O abacate parece ser o favorito mas eu prefiro o de tâmara, mais tarde experimentado em mistura com banana, conjugação nunca mais largada. Cheguei a beber duas canecas, refeição substancial.

Dali, com o paladar e o estômago confortados, seguimos então para Djaa el Fnaa, a praça mítica de Marrakesh, tida, e muito justamente, como algo único no mundo. Bem vistas as coisas até nem é muito grande. Mas o mundo parece caber naquele espaço. com ritmos diferentes, consoante se está de dia ou de noite. Aquela hora da manhã já encantandores de serpentes faziam encapelar as cobras que se escondiam nos seus cestos. A leitura matinal da sina estava disponível, as tatuagens berberes podiam tingir a pele de quem o desejasse e os vendedores de sumos de laranja procuravam atrair a atenção dos visitantes.

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Já que ali estávamos atravessámos e fomos dar uma vista de olhos mais de perto à mesquita de Koutobia. Tal como a praça e o seu fervilhar esta mesquita existe desde tempos quase imemoriais. Foi, na realidade, no século XII que a sua construção se concluiu. Nessa altura, numa Marrakesh infinitamente mais pequena, o minarete do templo orientava os viajantes desde uma longa distância, como um farol erguido no deserto para com a sua luz trazer quem chegava até porto seguro.

Não me impressionou, como nenhum edíficio humano me impressionou em Marrakesh. Não é especialmente grandiosa nem bela. É apenas um landmark numa cidade sem landmarks. A seu lado existem os alicerces de uma anterior mesquita, enquanto que na direcção oposta se vão encontrar os seus jardins. Poderia falar de elementos de importância menor, como o mausoléu de Lalla Zohra, filha de escrava que segundo a lenda se transformava em pomba quando a noite chegava. Mas serão sempre coisas complementares. Senti ali como sempre senti nesta cidade que faltavam grandes marcos.

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Fomos andando por uma rua pedestre onde se agrupam serviços que podem ser úteis para o viajante: bancos e multibancos, cyber cafés e postos de correio. Tudo ali, na desinteressante Bab Agnaou, se é que algo no mundo é de facto desinteressante.

Sem dar conta acabámos por descobrir o palácio Badii, um defunto com uma trágica história: demorou 25 anos a ser construido, iniciado em 1578 e terminado em 1593. Deveria ser o mais grandioso de todos os palácios conhecidos no Mundo. as a sua vida não foi longa. Cem anos depois um novo soberano decidiu escolher Meknes como sua capital e deu ordens para que todas as riquezas e enfeites de Badii fossem removidas e transportadas para o palácio que erigiu naquela cidade marroquina. E tão profundamente foi saqueado que, diz-se, foram necessários doze anos para os trabalhos se concluirem

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O que muitos portugueses que visitam o local não se apercebem é que… atentem na data do início da construção… 1578. Diz-vos alguma coisa? É a data da batalha de Alcácer-Quibir, da morte de D. Sebastião, o rei português que sucumbiu sem deixar herdeiros. Como consequência Portugal foi governado pela dinastia castelhana, a chamada Dinastia Filipina, e isto até ao 1 de Dezembro de 1640, quando a independência nacional foi reconquistada. E portanto, o palácio foi iniciado logo após essa batalha. Já se vê, com a mão-de-obra dos muitos portugueses feitos escravos na peleja, e com o financiamento dos resgates obtidos com os prisioneiros de boas familias. Ou seja, há muito de Portugal neste espaço deixado em ruínas.

O bilhete custa 10 Dirhams, que é pouco menos de 1 Eur. O espaço decepcionou-me como quase todo em Marrakesh, mas mesmo assim vale uma visita. Gostei de uma surpresa: da exposição temporária do museu marroquino de fotografia – que em breve se mudará para instalações próprias – de acesso livre para os portadores de bilhete no palácio, onde vi uma série de belas exposições fotográficas com que não contada. Gostei também da ala dos aposentos dos convidados e das muitas cegonhas que ali vivem como animais sagrados que são.

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Foi à saída do palácio que o tempo começou a mudar para melhor. A ameaça de chuva dissolveu-se, o céu tornou-se mais azul, as cores ganharam brilho. Estávamos ali numa zona com um bom número das atrações de Marrakesh e queria aproveitar a ocasião. Quase ao virar da esquina, um outro palácio, o Bahia, e este não está desfeito. Foi construido no século XIX e hoje pode-se visitar se se pagar 10 Dirham. Vale a pena. É um espaço agradável, que num dia de calor deve oferecer uma frescura invejável ao viajante. A visita inicia-se num páteo adornado com uma fonte, e a partir daí é um sem número de salas. O mobiliário é practicamente inexistente, mas o visitante poderá atentar no primoroso trabalho decorativo que está patente nas portas e nos tectos. Tal como no Badii foi dinheiro bem gasto.

Saimos para a rua. Agora queria encontrar o cemitério judeu. Antes de explorar a judiaria, a mellah, actualmente despida da sua população original. Não foi complicado encontrar o cemitério, mas também não foi simples. As ruas ali são sinuosas, é dificil manter o sentido de orientação. Consultando o mapa no tablet lá fomos, até que pedimos ajuda a um lojista. O homem era branco de pele, diferente, de forma indelével. Suspeito que seria um dos poucos judeus ainda residentes no bairro, até porque se revelou versado nas coisas do sabbath, aconselhando-nos a ir antes que o cemitério encerrasse para tal celebração, o que ocorreria em cerca de hora e meia. Deu-nos um mapa, mostrou-nos a mercadoria que vendia e deixou-nos ir.

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Não há muito de interessante neste cemitério. Os homens terão que visitar de cabeça coberta, e o acessório necessário será emprestado se for caso disso. Uma gratificação é esperada no final da visita. Dei um dirham só porque sim, porque não existe nenhuma razão para contribuir. O espaço está votado ao abandono e não tem muitos motivos de atração. Foi entrar, dar uma vista de olhos rápida e voltar a sair.

Muito mais interessante foi o giro pela mellah. Talvez tivesse falhado este pedacinho de Marrakesh não fosse o conselho sábio da Katy – uma leitora do Cruzamundos. Tinha ela dito que ali se vivia a verdadeira Marrakesh, e de certa forma é verdade. Quer dizer, existem outras áreas onde o ambiente é semelhante, mas há algo de genuino na mellah, talvez por não cirandarem por ali muitos turistas. É um dos bairros mais pobres da cidade e isso sente-se. Há uma miséria nas ruas, chega a ser um pouco intimidante. Mas um pouco apenas. Simplesmente as pessoas não estão tão habituadas a ver por ali visitantes e olham-nos. Gostei. Mas do que não gostei foi da requalificação – sempre essa famigerada palavra, aberta a todos os maus gostos – que se está a fazer do bairro. No fundo, é uma modernização selvagem, como não se vê nem se imagina possível em mais parte alguma da cidade. Perda de identidade, globalização. Uma tristeza.

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E com isto a tarde ia avançando. O cansaço também, que apesar de tudo tinha sido o dia inteiro sobre os pés. Mesmo assim o regresso à grande praça, a eterna referência na cidade, foi feito com muita exploração. Tomámos outra via, a recomendável Rue Riad Zitoun El Jedid, que liga aquela zona a Djaa El Fnaa. E perdemo-nos, com a intenção devida, entre ruas travessas e becos, atalhando aqui e acolá, fazendo uma meia-volta divertida a cada parede encontrada a barrar o caminho.

Foi um tempo para descobrir pormenores, sentir o pulsar da vida natural daqueles bairros. Veio o chamamento para a oração e a movimentação que sempre se sente na ocasião, de homens apressados que procuram a mesquita mais próxima. E por fim pisámos terra já conhecida. Estávamos na “nossa” rua Dobachi.

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Escolhemos um café com um carácter local para lanchar, depois de umas voltas em busca de uma esplanada agradável com preços razoáveis. Sem sucesso. Pelo menos naquele dia não queria pagar 1,50 Eur por um chá. Isso foi mais ou menos o que desembolsei pelo chá… com uma panqueca bem recheada de cebola e legumes e um bolo à laia de sobremesa. Esteve-se ali bem. Peguei numa nova leitura (em breve analisada no Cruzamundos): Daqui Ali.

Quando a pausa terminou, de estômago bem forrado e a alma agraciada pela prosa agradável do Pedro Moreira, já a noite tinha caido. A rua fervilhava. Em Marrakesh é sempre depois do sol posto que a vida chega ao climax. Às 21:00 Faro pode estar deserta, mas nas cidades marroquinas a população faz questão de viver a vida que tem. A multidão preenche as ruas. As motorizadas tentam avançar pelo meio da maré humana. As lojas fazem o seu negócio. É uma hora de ponta muito especial.

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E foi por esta altura que viemos descansar um pouco aos aposentos. A calmaria. O oásis. Por ali ficámos, sei lá, talvez uma hora ou duas. Depois sentimos o chamamentgo mágico da praça. É impossível resistir. Acontece de poucas em poucas horas. Umas pessoa tem que passar por lá.

De noite o ambiente é outro. Vindos do nada são montados restaurantes e bancadas. Há venda de um chá doce e forte, feito de especiarias, geralmente acompanhado de um bolo misterioso, castanho escuro, de onde o servente corta pedaços a partir de uma montanha enorme de bolo. Os encantadores de serpentes já se foram e actuam agora artistas, músicos, bailarinos transvestidos. Está frio e a verdade é que depois de um bocadinho aquilo está visto. A praça não é, como disse, muito grande.

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