Marrakesh, 19 de Janeiro de 2015

A manhã acordou húmida. Ouvia-se a chuva cair no toldo que cobre o páteo do riade. Quando abrandou atrevemo-nos a sair. Primeira paragem, nos batidos. Uma rotina que se estabeleceu desde o primeiro dia. O sabor daquela bebida espessa, a originalidade da mistura de tâmaras com leite e banana… o prazer de observar um dos homens que servia os batidos como se dançasse, com gestos elegantes, um sorriso nos olhos, mirando os clientes de frente. Por estranho que pareça, se tivesse que escolher um só momento, um só local, desta viagem por Marrocos, seria aquele, a chegada ao balcão, o pedido, o jarro a verter a delícia para a minha caneca, o bulício na rua, todo em redor, o prazer gustativo.

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Os sinais da chuva eram evidentes. O chão estava molhado e a luz era pardacenta. A praça era mesmo ali ao lado, uma visita impunha-se. Mas uma visita em trânsito que para aquela manhã havia algumas missões: encontrar o hotel Mamounia e comprar o bilhete de autocarro para dali a dois dias, para Essaouira.

Lá estava ela, animada como sempre, a praça. Naquela parte onde desembocávamos vindos de casa havia lojas e barraquinhas de vendas de bens. Não de comida nem de serviços, mas de coisas. Havia todo o tipo de produtos que pensamos quando nos ocorre Marrocos. Objectos de couro, acessórios de chá, lamparinas. Havia sempre um ou outro vendedor que nos tentava aliciar, sem insistência demasiada, sem nunca se tornar num aborrecimento. Era ali que se encontrava o Cafe de France, talvez o mais famoso da cidade, cosmopolita, careiro.

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Mais à frente passámos pelos vendedores de sumos de laranja, que não perdiam oportunidade de chamar quem cruzasse o piso defronte, e logo estávamos no terreiro mais largo onde já se juntavam os aguadeiros – figuras folclóricas que num passado forneciam água aos sedentos mas que agora se limitam a posar para as fotografias dos turistas a troca de uma moeda – e arrancadores de dentes, outras figuras que tiveram uma função mas que hoje são apenas um número num espectáculo “para inglês ver”.

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O minarete da grande mesquita hoje tinha outras cores. É que o céu abria-se e a luz conferia aquelas partes um toque especial. O caminho era por ali, o Hotel Mamounia não estava longe. Pelo menos era a conclusão que tinha retirado do estudo dos mapas. Os italianos do riade tinham-nos convidado a passar por lá hoje de manhã, para conversarmos um pouco e para nos passarem um mapa com os devidos conselhos e recomendações. Não calhou. E de qualquer modo já o judeu da véspera nos tinha ofertado uma carta da cidade. “Gratuitement”, tinha dito ele.

Antes de dar com o tal hotel descobrimos que os jardins da mesquita Koutobia não era o espaço ensonso onde tinhamos estado no dia anterior. Não senhor. Os jardins era um pouco mais afastados e eram um pouco mais engraçados. Não andava por lá muita gente. Um ou outro turista e um velho que vendia bolos mas na realidade ganhava a vida a enganar os estrangeiros: oferecia-lhes um par de bolinhos, de graça, para provar, dizia. Mas depois pedia dinheiro, e quase sempre o ingénuo turista lhe passava as moedas para a mão. Observámos a cena, a técnica imaculada de extorsão a funcionar uma e outra vez.

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Mas naquele momento havia mais para ver no jardim. A luz evoluira para algo mágico. Um momento daqueles em que tiro fotografia atrás de fotografia, ansioso de captar a cena com todas as variantes. No céu o azulão alternava com núvens carregadas, com matizes de branco e negro de chumbo. E o chão, molhado e repleto de poças, fazia reflectir tudo o que via com recurso aquela luz que vinha de cima. A muita vegetação dos canteiros, por outro lado, estava no seu melhor verde, vistoso, temperado pelas chuvadas da noite.

Dali demos logo com o hotel. Não foi motivo de grande celebração porque o complexo está protegido por uma parede altissima, entradas guarnecidas por um exército de homens de segurança. Deu para ver ao longe aquele estabelecimento. Abriu em 1923 e ali se deliciou Winston Churchil com as maravilhas africanas. Na sua suite pintou a única tela que conseguiu criar no decorrer da Segunda Guerra Mundial. A lista de hóspedes famosos é longa: Sean Connery, Will Smith, Catherine Deneuve, Bill Clinton, Kate Winslet. Mais recentemente, em 2013, casou-se ali a filha de Vladimir Putin. E gosto sempre de espreitar estes hóteis, com tantas histórias para contar, vistos por olhos de gentes tão famosas.

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Bom, agora era seguir para a estação de comboios de Marrakesh. Já estávamos nos limites da Medina – a parte antiga da cidade – e iriamos agora passar à Nouvelle Ville, a nova cidade, que como em tantas outras metrópoles marroquinas foi criada pelos franceses e, assim, tendo uma outra personalidade, temperada por arquitectura colonial, altos edíficios de apartamentos, cafés, restaurantes modernos. Em Marrakesh nem esta nova malha urbana escapa à regra cromática: também aqui todo o imóvel tem de ser pintado com aquela cor que vai do avermelhado ao alaranjado.

Primeiro, uma vasta avenida, correndo ao lado das muralhas, que agora limitam os jardins reais, e, para o outro, confinada por uma longa linha de sumptuosas casas, algumas privadas, outras empresariais, com pequenos hóteis, restaurantes, sedes de companhias.

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Passámos por uma praça onde trocámos algum dinheiro numa máquina automática. Era outro problema, porque a caminhada de 4 km até à estação não faria sentido se não nos apresentássemos com os Dirham necessários para adquirir os tais bilhetes. Mas foi resolvido com a indicação gentil de dois rapazes que nos apontaram na direcção certa.

E agora tinha fome. Vi um cartaz do McDonalds e decidi que queria comer algum lixo ocidental, até porque os preços anunciados eram tentadores. Mas podia esperar. Primeiro as obrigações. A caminho da estação e do escritório da Supratours – a empresa rodoviária que tem fama de eficiência e bom serviço e que parece ser parte da companhia de caminhos-de-ferro marroquina.

Foi chegar a uma segunda rotunda, maior, mais movimentada, que é afinal o centro da nova Marrakesh, e começar a subir. Sempre em frente agora e logo estamos lá. Foi mais fácil do que tinha previsto. Distração aqui e acolá e num instante a distância estava ultrapassada. Nem se deu por isso. E além demais descobrimos que a nova cidade de Marrakesh é bem mais graciosa que a sua rival de Fez.

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A estação de comboios é um belo edíficio, de desenho atractivo – pelo menos para mim – e grande funcionalidade. É moderna com um estilo tradicional. Está bem organizada e é limpa. Os sanitários são imaculadas e de acesso livre. Logo vimos o escritório que procurávamos, no hall principal, do lado esquerdo de quem entra. E a empresa começava a fazer jus à fama. Bilhetes comprados sem problemas e agora, comer. Até porque mesmo ali defronte estava um outro McDonalds. Por 3 Eur e pouco comi um menu reforçado, ou seja, com dois hamburguers, cujo prazer confesso.

Agora era fazer o caminho inverso. Estava reconhecido o terreno. Dali a dois dias estariamos de volta para embarcar para Essaouira. A descer todos os santos ajudam, e, chegados à rotunda, encontrámos uma variante, para variar um pouco. Acabámos por entrar na medina por outra porta, ficando a norte da nossa área, com os souks entre nós e a base. Mas antes, gostei do espaço amplo que se estendia para o exterior das muralhas. Era, por assim dizer, uma praça. Tinha movimento, sem exageros, e estava bem condimentado com vida local. Grupos aguardavam autocarros. Havia vendedores de petiscos. Homens conversavam, aos dois e aos três. Não era a esplendorosa Jemaa El Fnaa, mas era natural, não se via um só estrangeiro. Um instântaneo de Marrocos.

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Fomos então andando em direcção a casa, por ruas até então desconhecidas. Não sei como designar aquele bairro, se de um bairro se tratava. Mas creio que se tornou a minha parte favorita da cidade. Com alguns turistas, é verdade, mas essencialmente um emaranhado genuino de ruas com infinitos detalhes. A actividade comercial é intensa. Não se trata do souk mas não está longe. Há mesquitas, espaços sagrados. O Museu de Marrakesh fica por aqui, assim como a famosa Medersa Ben Youssef (uma escola religiosa transformada em museu, ou, melhor, atração turística). Dica: o bilhete para um ou para outro, por si, pode ser um pouco caro. Cerca de 5 Eur. Mas pelo equivalente a 6 Eur pode-se comprar um ingresso combinado que torna o preço bem mais doce.

Sem saber bem como, depois de atravessar pedaços do souk, fomos desembocar na grande praça, perto da entrada da rua Dobachi, a “nossa”, ou  pelo menos a que nos servia. São quase três da tarde. Uma boa hora para a pausa de meio do dia. Repousar o corpo naquele riade maravilhoso, um prazer que se renovou a cada dia passado em Marrakesh.

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Uma hora depois, de novo na rua. Com tão abençoado carregador as baterias reganham energia num instante. No fundo acabámos por caminhar na direcção em que tinhamos vindo, ainda há pouco. Pelos souks, sem um plano bem definido, apenas com o desejo de explorar casualmente, de ver e sentir aquela energia. E muita coisa vimos. Becos com murais curiosos, ruelas obscuras iluminadas por raios obliquos de sol, lojas de tudo e mais alguma coisa, crianças que jogavam à bola. A cidade ia escurecendo, gradualmente. As ruas mais estreitas já estavam na penumbra, mas quando entrávamos em praças abertas, o sol manifestava o seu regresso.

Houve momentos em que maldisse aquela cor de Marrakesh. Cidade vermelha o tanas. Aquilo é mas é chato. Monótono. Mas logo me distraia com algo e a boa-vontade voltava. E muito mais não há a dizer, que aquilo foram coisas que precisam de ser vividas. Assim, em texto, parece não haver sumo, mas a experiência passada é infinitamente rica. Chegaram as cinco horas, e sentimos ir sendo tempo de iniciar o caminho de regresso. Não que estivessemos longe, que nunca se está verdeiramente longe de nada na medina de Marrakesh. Serão, no máximo, 700 ou 800 metros em linha recta, provavelmente bastante mais a caminhar, e um tempo que não se espera.

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Em Jemaa El Fnaa decidimos ser boa hora para experimentar o afamado sumo de laranja, vendido ao preço concensual de cerca de 0,30 Eur o copo. Depois, de garganta adoçada, foi mais uma volta pela praça. Sempre houve algo de novo para observar, e também nesta narrativa escrita posso a cada dia trazer novos detalhes para o leitor. Por exemplo, o jogo muito popular da pesca das carrafas. O feirante coloca uma série de garrafas de refrigerantes de litro e meio num circulo e os candidatos – depois de paga a taxa – dispõem-se a pescar uma delas, o que poderão conseguir se as laçarem com o fio que pende da cana atribuida. Era um divertimento atentar nos diversos estilos com destaque para os pacientes, que moviam a cana com uma precisão milimétrica, semblante concentrado no acto ou  os brincalhões, que sabiam que nunca o conseguiriam mas mesmo assim participavam, descontraidos, na companhia de amigos ou parceiros.

As barraquinhas de caracóis, que aquela hora começavam a laborar, atraiam sempre muitos e entusiasmados clientes. O petisco é de facto muito apreciado por estas paragens. Vi jogar o boxe, como só tinha visto em filmes, com lutadores voluntários, angariados de entre a multidão. A vontade não era muita, faltava a violência que para o bem e para o mal é essencial à actividade, e aborreci-me depressa de ver aquela rapaziada em volteios suaves. Afastei-me.

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Ainda havia luz suficiente para os treinadores de macacos amestrados andarem por ali, os seus animais sempre prontos para uma momice, tanto melhor se envolver um estrangeiro que terá que contribuir com dinheiro vivo. Mais à frente homens encostavam-se preguicosamente a enormes carrinhos de mão. São os carregadores, que oferecem os seus serviços a quem quer que necessite de transportar cargas, por exemplo, turistas frescos, acabados de chegar de táxi, carregados com malas que precisam de encontrar o caminho para o riade prometido.

No chão já se estendem os tapetes para as lamparinas. Serão acesas, e a luz mágica que emitem atrairá clientes pela certa. Mais tarde, noite cerrada, sempre oferecem um espectáculo à vista, com a multiplicidade de luzires, feitos a cores diferentes.

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O sol vai-se pondo atrás do minarete. E já que ali estamos ficaremos mais um pouco, porque naquela hora, com um pouco de persistência, recolhe-se o melhor do dia e da noite. Fomos a um chá de especiarias, sempre quentinho, capaz de devolver a vida a um morto, quanto mais de aquecer o corpo de um vivo no serão frio de Marrakesh.

O caos em redor é relativamente organizado. Paraíso de carteiristas e de outros meliantes de baixo perfil, é patrulhado constantemente pela polícia, e sabe-se lá por quantos agentes à paisana. Dá a ideia que naquela confusão nada na realidade se passa por acaso. O comércio está agrupado. E uma patrulha de homens uniformizados manda um vendedor de bolos recuar um metro. É verdade, há de facto ali uma delimitação indelével, a calçada é diferente. É a tal ordem quase invisivel.

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Já é de noite. São seis e quinze. Paramos para comer uma panqueca no sitio da véspera. Desta vez doce, recheada de mel. Está delicioso e vem outra para a mesa. O jantar já está. Vamos a um segundo repouso, antes de mais uma saída para a noite. A praça, sempre a praça e o seu chamamento. É incrivel a animação nas ruas de Marrakesh. Não dia pela noite dentro, porque de facto não o é. Mas às 21:30 ainda tudo se passa. Vendedores e lojas em plena actividade. Mais um batido de tâmaras e banana. Uma voltinha pela praça, onde no fundo já não há nada de novo para ver. E voltamos, passamos a entrada de casa com o desejo de ver o que está para além, por aquela rua que ainda não explorámos. Na realidade não há muito mas há tudo: mais vendedores e lojas. Muita gente na rua, a deslocar-se, a ir para casa, a fazer compras.

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