Essaouira, 22 de Janeiro de 2015

A primeira coisa a assinalar neste dia é o pequeno-almoço fabuloso com que fomos brindados. Sim, sabia que a refeição da manhã estava incluida no preço, mas sendo um custo baixinho, esperava uma coisita básica, só para tirar a fome. Mas não. Simplesmente um dos melhores pequeno-almoços de sempre num hotel. É verdade que não é daqueles buffet em mesas repletas de iguarias. Mas a minha apreciação baseia-se no principio de que qualidade não é quantidade, e prefiro muita qualidade com alguma quantidade. O que foi o caso. Três pratos com bolos diferentes, todos acabadinhos de cozer, compotas caseiras e mel, pão e panquecas marroquinas; chá de menta, manteiga sumo de laranja natural. Tudo delicioso. Que bela surpresa para começar mais uma jornada.

A única coisa verdadeiramente para fazer neste dia era passear pela praia. Tudo o resto seria um reforço dos passeios da véspera. Essaouira é encantadora, imperdível, adorável, mas há na verdade poucos pontos marcantes, daqueles que vêm em guias, que podem ser assinalados. Por isso estava feliz por ter mais um dia para andar por ali, mas a lista de coisas a fazer encontrava-se estanhamente vazia.

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Vazias estavam ainda as ruas quando saimos, eram já nove e meia. O comércio tem um ciclo um pouco diferente daquele a que estamos habituados, com a actividade a entrar pelo serão adentro, mas, por outro lado, a iniciar-se um pouco mais tarde. Assim, a esta hora da manhã, a maioria das lojas estavam ainda encerradas, mas havia sinais do despertar para mais um dia de trabalho.

Chegamos à praia, também ela aquela hora ainda quase deserta. É um areal vasto, que muito me encanta, talvez por ser diferente das nossas praias. Vem-me à memória a praia de Inch, na Irlanda. Estende-se a perder de vista, sei que se caminhar por ali adiante chegarei a uma aldeia de pescadores, a cerca de 20 km. Outra característica é a planura do areal. A maré deve galgar aquilo em segundos. É plana e dura. Mesmo na areia molhada o pé assenta como se estivesse em asfalto.

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Há poucas pessoas à vista mas cada uma delas é um achado. Um homem caminha, uma mera figurinha naquela imensidão, com a capa característica, o capuz bicudo colocado. Passa um outro, de mota, muito junto à água. Vejo uma jovem mulher, com o lenço garrido na cabeça. Um par de namorados já para lá da meia-idade. E dou com marcas na areia que penso serem de cavalos, e penso quão maravilhoso será cavalgar ali, tal e qual como nos anúncios que apelam ao imaginário colectivo. Sigo as marcas com o olhar e lá longe, muito longe, vejo que não são cavalos mas sim… camelos.

Os animais vão tão distantes que inicialmente penso que nunca os conseguirei alcançar. Mas reparo que se detiveram. E vamos andando e afinal chegamos até eles. Nas dunas está estabelecido o seu acampamento. Há também homens a cavalo. Gostaria de pensar que se tratava de um avistamento castiço, de uma comunidade genuina, mas não… fazem daquilo vida, levar turistas a um passeio por ali. Ironicamente os clientes que lhes vejo são duas moças locais.

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Entretanto a praia vai ficando mais populada. Já há alguns grupos de turistas que caminham por ali. Os tipos dos camelos têm muitas abordagens para fazer. Um marroquino leva o seu bonito pastor alemão para um passeio. O cão parece ter uma energia inesgotável, corre sem parar, a velocidade máxima, para trás e para a frente. Mais à frente alguém se molha nas águas. São castanhas, enlameadas. Mas imagino que no calor de Verão será uma maravilha uma pessoa vir-se aqui refrescar.

Como quem não quer a coisa já andámos dois quilómetros e agora está na hora de voltar para trás. Simplesmente não se vê sentido em continuar… não há nada, nenhuma variação na paisagem. E receio cansar-me e usar energia que precisarei para andar pelas ruas de Essaouira.

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Na parte mais próxima das muralhas joga-se futebol. Uma multidão joga futebol. Já tinha lido que era uma actividade muito popular por ali. Um jogo está preses a começar. Os candidatos são distribuidos pelas duas equipas – os azuis e os amarelos – e aproximamo-nos. Os azuis são sobretudo negros, provavelmente emigrantes. Fala-se francês. O guarda-redes aproxima-se do seu posto, pendura-se na baliza que imediatamente tomba, para divertimento geral.

Inicia-se a partida e sentamo-nos a ver. Marcam-se logo golos. Há um espanhol, gorduxo, que é o primeiro guarda-redes dos amarelos. Sofre logo um golo e é colocado de fora. Senta-se também na areia a rir com as incidências do jogo. Um “puto”, muito novo e muito baixo, celebra cada golo como se não houvesse amanhã. É o espectáculo dentro do espectáculo. Foi um momento bom, daqueles que ficam na memória, sem razão aparente, sem serem esperados.

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Terminado o momento desportivo regressamos ao hotel. Apetece-me mesmo é usufruir do terraço, ler um bocado, esticado ao sol, sem fazer mais nada. O plano não corre de forma inteiramente satisfatória. Sei lá, estava algo desagradável, frio, a puxar para o ventoso e o sol não era permanente. Acabei por esticar uns colchões num canto e fiquei ali, de certa forma abrigado, com o livro.

Uma mirada ao mapa de Essaouira que o bom Georges nos tinha dado revelou um par de locais que não constavam dos guias e que me chamaram a atenção: o cemitério cristão, logo à saida, junto à porta que ontem tinha visitado em primeiro lugar – Bab Doukalla -, e um local chamado misteriosamente de “igreja portuguesa”. Eh lá! Tinha que ver isto. E havia também uma rua longa, correndo ao longo das muralhas, a Rue d’Agadir, que parecia interessante, por ser o veio daquela parte da cidadela que ainda não conheciamos e por partir do Bab Marrakesh, o principal, talvez por ligar a cidade antiga à cidade nova.

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À saída do hotel e antes de mais havia uma pequena tarefa a concretizar: comprar alguns mantimentos no souk. No serão anterior tinhamos visto os nossos amigos ingleses deliciarem-se com uma refeição improvisada à mesa comum do hotel, com vinho, queijo, azeitonas e pão. E então queriamos seguir o modelo. O pão comprado estava delicioso, e dos dois um marchou logo, ou pelo menos boa parte dele, assim, a seco. Vieram também azeitonas e um saco de biscoitos. O vinho dispensava, até porque, “em Roma sê romano” e para vinho temos sempre muito tempo em Portugal. Decididamente o chá de menta. Quanto ao queijo, não se encontrando em lado algum, ficaria para mais tarde.

Encontrámos o cemitério cristão com muita facilidade. Era mesmo ali, à saída do Bab Doukalla, do lado esquerdo, a primeira porta, num muro. Estava uma cadeirinha à entrada, mas sem ninguém. Boa hora para chegar, não fosse a ideia pedir uns trocos. Não gosto de gastar dinheiro, mas sobretudo recuso-me a pagar para prestar uma homenagem aos mortos (OK, reconheço, já abri excepções, quando o local era irresistivel).

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Não havia ninguém naquele pequeno espaço. São dois talhões, ligados, ou separados, por uma parede com uma abertura, como se o cemitério tivesse sido ampliado. Pouco depois chegou uma familia de turistas e com eles o guardião do espaço. Por essa altura estava concentrado em dois túmulos portugueses, do cônsul e da sua esposa, que tinham como vizinhos outros tantos espanhóis. O homem chamou-me a atenção para aquilo que eu obviamente estava a ver e pensei que se tinha acabado a visita sossegado ao cemitério, mas não, a marcação cerrada que temi não aconteceu e continuei a ver as coisas sem companhia. Nem mesmo à saida me pediu uma moeda. Boa atitude.

Dali fomos à tal rua de Agadir, o que foi uma excelente ideia. Era uma parte da cidade antiga que não tinhamos tocado na véspera. Do outro lado sim, daquelas ruas onde surpreendetemente se ouvia o rumor do mar como se se estivesse no topo de uma falésia, tinha já guardado a melhor das memórias. Mas agora era a metade oposta da media que me impressionava. Com os sucessivos instântaneos da vida quotidiana. As pessoas, perdidas nos mil afazeres do dia-a-dia, de forma natural. Gostei, gostei de medir o pulso aquela face de Marrocos. As ruas secretas de Essaouira, afastadas das lojas de recordações, dos cafés para turistas. Muito limpas, bem organizadas.

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É uma rua longa, com algumas esquinas, mudanças de direcção abruptas que não chegam a ser curvas. Não perdemos a oportunidade de explorar cada um dos becos que parte daquela via. E neles encontramos mais motivos inspiradores. Locais sagrados, jogos de bola, portas e portões carregados de memória, benzidos por séculos de história. Por fim esta bela rua vai encontrar a artéria principal da cidade e o encanto perde-se. De volta à picturesca mas turística Essaouira.

A próxima tarefa verificou-se bem mais complicada. Descobrir a tal igreja portuguesa. Olhando o mapa parecia ser simples. Lá estava ela, claramente marcada. Mas no local, nada. Vimos de facto uma semi-estrutura embutida na muralha – na realidade, parecia que a muralha tinha absorvido algo que já ali se encontraria – mas apesar de traços suspeitos que poderiam, com algum esforço, levar a pensar numa igreja, caramba, aquilo não era uma igreja. Não poderia ser, se bem que, admito, no meio das mil voltas que demos por ali chegámos a admitir a possibilidade de já termos encontrado o que procurávamos.

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Passámos pelas ruas envolventes. E tornámos a passar. Olhava para o mapa e parecia que era uma igreja fantasma. Poderia jurar que já tinhamos calcorreado todas as vielas e nada. Já estava numa fase em que considerava pedir indicações a alguém que pudesse saber do que falava. E foi então que descobri. Um pequeno beco, sombrio, mas com uma luz fabulosa. Havia raios de sol que entravam de forma obliqua, criando um cenário digno de filme. À entrada, uma oficina de algo que não me recordo, e o artesão que trabalhava, martelando um pedaço de matéria. Passámos por ele e foi como se nada fosse. Seria ali?

E no fundo, a uns cinquenta metros, lá estava ela, agora sim, indiscutível, o que restava da fachada de uma igreja, ladeada pela posterior construção que a absorveu deixando-a quase invisivel. Como bónus, numa outra casa, aparentemente abandonada, uma placa anunciava o consulado português. Meados do século XIX. Fabuloso! O esforço compensou. Não incluo fotos porque aquilo era algo que não funcionava em imagem. Só mesmo visto e sentido.

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Apesar de serem apenas 15:00 o dia já caminhava para o fim. Tinhamos comprado os bilhetes para regressar a Marrakesh no dia seguinte ao final da manhã e agora era altura de usufruir descontraidamente os últimos momentos em Essaouira. Selecionar os melhores locais para uma “segunda de mão”. E o passeio nas muralhas seria provavelmente o meu favorito. Ainda para mais era mesmo ali, literalmente ao virar da esquina.

O mar estava verdadeiramente furioso, trazendo um motivo adicional de interesse. Nas ameias, por onde espreitam os canhões que, creio, não são os originais, apesar das referências nesse sentido em todas as fontes consultadas (não estou a dizer que sei mais do que toda a gente, suspeito é que a colocação de réplicas poderá ser uma novidade que ainda não está reflectida nos textos lidos), está também pessoas. É sempre muito concorrido.

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Há artistas que ali trabalham, vendendo o produto aos muitos turistas que por ali passam. Num dos páteos, no interior da torre, há um alarido. Uma onda mais atrevida galgou a estrutura e serviu um duche inesperado a um grupo de pessoas. O segurança de serviço interdita a área por um bocado. Quero regressar, de novo, no dia seguinte, antes da partida.

Para já voltamos ao café Berbere, que na véspera nos tinha encantado. Hoje, para variar, encomendamos uma tajine de galinha. Demora um bom bocado a ser servida. Bom sinal. Enquanto esperamos bebericamos o chá de menta e deliciamo-nos antecipadamente com o aroma que escapa da pequena cozinha, mesmo nas nossas costas. No final, a recompensa, um sabor divinal, infinitamente melhor do que a tajine que experimentámos em Marrakesh.

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E o ambiente mantinha-se o mesmo, não desiludiu. Tal como descrito no artigo sobre o dia anterior… o cenário de vidas partilhadas, vizinhos e lojistas das imediações, amigos e companheiros, muito riso, cada pessoa uma fonte de inspiração, tanto para observar, para absorver. Este cafezinho, quem diria, foi das coisas que mais apreciei nesta semana em Marrocos.

Mais tarde, já o serão ia avançado, e mesmo sem grande fome, lá pusemos a mesa para a ceia preparada. O queijo tinha acabado por ser conseguido no local mais inesperado e por tuta e meia… numa loja de artigos importados, para turistas e marroquinos mais abastados, na rua principal. E tão bom que estava tudo que ainda o estômago se confrontava com o manjar do Cafe Berbere e já o estava a encher com mais. Muito bom. Uma excelente maneira de encerrar o último dia de Essaouira.

5 COMENTÁRIOS

  1. Ricardo: deixo aqui um livro de fotografias sobre Marrocos de Margarida Martins, autora e fotografa, do livro Escrita de Luz, da Assírio&Alvim, . 313 páginas de fotografias.

  2. Olá Ricardo, aconselha Essaouira para um fim-de-semana prolongado, tratando-se de uma mulher a viajar sozinha? Acha seguro? Obrigada

    • Oi Anónima 🙂 Sinceramente, não me sinto na posse do conhecimento necessário para dar uma resposta em consciência. Não sou um especialista em Marrocos e a minha percepção terá sempre de ser superficial. Dito isto, acredito que de uma forma geral este tipo de locais é extremamente seguro. Para uma mulher sozinha também, mas aí há outro elemento: a paciência que imagino ser necessária para aturar as abordagens. Claro que isso também se relaciona, va lá, por assim dizer, com os atrativos da pessoa em causa… mulheres louras serão sempre alvo de atenções mais intensas, por exemplo.

      Agora, como deve ter dado para perceber pela minha crónica, só posso mesmo aconselhar Essaouira, e não serão precisos mais do que os dias de um fim-de-semana prolongado para o fazer.

      • ola ricardo, agradeço o seu conselho, sabendo que não é um especialista em marrocos 😛
        não sou loira, nem para lá caminho, tenho traços latinos, não devo ser alvo de assédio. já estive em marrakech acompanhada de uma amiga (loira, por sinal), não tivemos qualquer problema, se bem que uma mulher sozinha possa atrair mais a atenção, daí a minha pergunta :p
        a ideia seria voar num sábado e ficar até terça (bazar na terça..). simplesmente relax!

        • Parece-me um excelente projecto. Há por lá um misto de coisas para fazer que deverão ser na conta certa para um plano desse tipo. Na realidade acabam por ser dois dias inteiros, não é muito (nem pouco).

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