23 de Novembro

Acordámos cedinho, com o sol, para aproveitar ao máximo o dia e escapar ao trânsito de Amman. O nosso carro aguardava-nos, estacionado mesmo à porta. O primeiro destino: Araq Al Amir. Nos arredores da capital, aguarda-nos um pequeno palácio construido por volta do sec. II aC, afastado dos circuitos turísticos, tranquilo, entregue a si próprio. Para lá chegarmos houve que atravessar os subúrbios e depois evoluir por estradas esburacadas, com casas a aparecer, por vezes isoladas, por vezes em pequenos cachos. Foi uma óptima forma de iniciar a jornada, uma pequena demonstração das vantagens de ter um carro ao dispôr. No local não encontrámos ninguém. Explorámos livremente o perímetro da estrutura, apreciando os elementos decorativos, sobretudo os espectaculares leões ali talhados há mais de dois mil anos.

Depois, foi a longa viagem até ao Mar Morto. Não porque a distância fosse enorme, mas porque as estradas são sinuosas e em más condições. O GPS conduziu-nos por um labirinto de caminhos, num bocadinho muito agradável, a mostrar-nos uma face nova da Jordânia, um misto de subúrbios com campo, não o deserto a que associamos o nome do país, mas campo, mesmo, verde, com uma configuração muito idêntica à de muitas partes de Portugal.

Acabámos por entrar na estrada principal que segue para Sul, e por ai seguimos até apanhar o desvio para o Mar Morto. Contrariando todas as recomendações, não fazia a menor das intenções de meter um pé naquelas águas desagradáveis, saturadas de sal, que fazem arder cada milimetro de pele e a deixam peganhenta e a precisar de um duche (impossível de tomar) depois de se sair cá para fora. Mas ia muito curioso, de ver aquele local mítico sobre o qual tantas vezes li desde a meninice.

Já deixada para trás a movimentada estrada que segue para Madaba e depois até à extremidade Sul da Jordânia, aproximamo-nos dessa pequena superfície de água que se encontra no ponto mais baixo do Planeta. Passamos pelo primeiro “checkpoint” que vimos na Jordânia. Depois de uma semana na Síria ultrapassar aquela espécie de portagem onde um militar nos acenou tranquilamente para prosseguirmos foi uma brincadeira de crianças. Mas não deixei de estranhar o rigor. Parece que a forte presença de postos de controle nesta área se prende com a proximidade da fronteira com Israel. Talvez os jordanos não tenham interesse nenhum em que se desencadeiem ataques contra os vizinhos a partir do seu território.  Aqui e acolá erguem-se torres que julgo serem posições de observação das águas paradas que separam a Jordânia de Israel.


E pronto, ali está ele, diante dos nossos olhos. O dia cheio de sol realça o azul das águas, que reflectem um céu limpo. O cenário faz-me lembrar as paisagens da ilha de Fuerteventura. A cor das águas e do céu contrastando com o amarelo e castanho da terra que já não apresenta as tonalidades verdes dos arredores de Amman. Logo ali encontro uma saída, e entro com o carro por um estradão de terra batida que, vejo desde logo, conduz  um vasto espaço que em época alta servirá sem dúvida de parque de estacionamento. A “praia” é uma mancha imunda, de lama e lixo, com alguns seixos junto à água. No meio daquilo tudo há apenas um ser humano, instalado confortavelmente junto a uma pickup, fumando o tradicional cachimbo de água. Mais ao lado encontra-se um luxuoso hotel, o que justificará o heliporto pelo qual acabei de passar. Literalmente falando. Sempre quis chegar de carro a um heliporto e passar por cima dos enormes “H” pintados no chão. Foi neste dia.

Todo aquele momento foi memorável. Andámos por ali, só a ver. Uns minutos mais tarde um homem entrou na água, empurrando um enorme tronco, que utilizou como plataforma de mergulho. Pouco depois chegou um grupo  que se envolveu em acalorada discussão, entre eles e com o que lá se encontrava quando chegámos. E de seguida começaram a limpar a zona da praia. Espalhados por ali existiam uns toldos andrajosos, esticados entre duas estacas. Talvez sejam alugados durante a época balnear. Nem quero imaginar o que ali se passa nessa altura do ano, em que um calor asfixiante abraça aquela cidade com milhões de habitantes, e a forma como cada ammanita tenta refrescar-se, deslocando-se em direcção ao Mar Morto, quase literalmente empilhando-se nestas pequenas faixas junto à água.


O passeio prosseguiu, sempre junto ao mar. Passámos “Amman beach”, um complexo de infra-estruturas que teoricamente providencia uma série de confortos aos banhistas: balneários, piscinas de água doce, vestiários…. mas, aqui entre nós, o testemunho em primeira mão que ouvi sobre este local não foi muito positivo. Paga-se uma pequena fortuna (12 Euros) e depois enfrentam-se duches inoperativos, instalações sujas e mal cuidadas.

Ao fim de alguns quilómetros fizemos um desvio, montanha acima, onde existe um parque panorâmico, pago. Da indecisão fez-se decisão, e isto quando lá chegados nos apercebemos de que não usufruiriamos uma vista melhor pelo facto de pagarmos um bilhete para aquele espaço. Afinal, mesmo ali ao lado, dispunha-se da mesma perspectiva sobre o manto azul. Sumptuoso.

A seguir, foi altura de meter água: não me apercebi da obrigatoriedade (absurda, e talvez por isso me escapou…) de virar á direita e toca de tentar voltar pelo mesmo caminho. Isto em frente a um checkpoint do exécrcito, com carro blindado e tudo. Pronto, fui à esqeurda, mais à frente fiz inversão de marcha dentro da legalidade, mas claro que me tornei num alvo para os militares. Foi um momento hilariante. O tipofez um sprint até à casita de alvenaria… o que ele precisava mesmo era da “raquete” de stop. Como se não pudesse ser de outra forma. Se calhar, se ele se pusesse no meio da estrada com a mão em posição de “stop”, eu podia não perceber. Tinha mesmo de ser com a raquetezinha, e a vontade de mandar parar era tanta que valeu aquela correria desalmada. Pronto, a coisa resolveu-se sem mais. Apresentação de documentos e siga.

Já na estrada que corre paralela ao Mar Morto, mais um encontro com as autoridade. Um polícia de trànsito solitário, de pé em frenet ao seu belo todo o terreno, postura imperial, manda parar. Passaporte, livrete do carro. E pronto. Depois vieram as perguntas. De onde vinha, para onde ia… e a seguir…? E durante todo o processo, a revelação de um amor à primeira vista com o meu nome. “Mister Rrricarrrdô, rright?”. “Very well, mister Rrrricarrdô”. “Where did you come from… Mr Rrrricarrdô”. E por ai adiante, com o meu nome a ser pronunciado pelo menos seis vezes em dez frases, com um derradeiro “Have a nice trrip Mr Rrrricarrdô”.

Subitamente o mar termina, e a estrada atravessa uma zona habitada. Foi espantoso. Depois de rolar umas dezenas de quilómetros ladeado pelo mar e por uma paisagem desértica, de súbito aparece aquela pictoresca aldeia, com gente de ambos os lados do asfalto, oficinas, mercearias, vendedores de fruta. E casas, como não tinha visto na Jordânia. Tradicionais, adaptadas ao deserto.

Dali foi derivar para Oeste, para o interior, para as montanhas, sempre a subir, debaixo de um magnífico céu azul. E quanto mais se subia mais impressionante era a envolvência. Gargantas medonhas, picos afiados, rebanhos de cabras sem guarda aparente, palmeiras desgarradas. Por fim chegámos a Karak, uma pequena cidade com um cerro no topo do qual se ergue um dos castelos mais importantes do país. Para quem se aproxima vindo do Mar Morto chegar ao castelo é quase instintivo. Há contacto visual desde logo, e depois, é sempre a subir. Não tem nada que saber. Já estacionar pode ser um pouco mais complicado, e no nosso caso seria, sem dúvida, não fosse mais um encontro com o espantoso espírito de hospitalidade dos jordanos. Mesmo em frente ao acesso ao castelo existem dois ou três restaurantes, e os lugares defronte estão-lhes reservados. Mas foi só verem um carro com estrangeiros, para logo removerem uma barreira e convidarem-nos para estacionar ali. Esperei logo um assédio comercial, mas não. O homem limitou-se a uma vaga sugestão…. se quisessemos comer qualquer coisa depois de visitar o local, éramos bem-vindos. E mais nada.


Esperava mais de Karak, pelas leituras que tinha feito e pelas imagens que tinha visto. Mas afinal, para mim, foi apenas mais um castelo. Que não tem nada de mal. Cofrreu tudo bem. Fomos bem recebidos, não houve problemas nem surpresas desagradáveis… mas mesmo assim, foi desapontante. A vista, por outro lado, é excelente. De um lado, a cidadezinha; do outro, as montanhas que tinhamos acabado de atravessar, e lá longe, muito ao fundo, o mar.

A partir dali foi regressar. A viagem foi mais longa do que esperava. Não me tinha apercebido que tinhamos rodado tanto para sul, mas a verdade é que o tempo passava e nunca mais chegávamos a Madaba. De Karak à “auto-estrada” do deserto, como é chamado o eixo principal do país, foi um instante. Depois, conduzir para norte, durante dezenas de quilómetros, e por fim, a aproximação a Madaba, feita segundo as indicações do GPS que nos levou por estradinhas e estradecadas, através de núcleos habitacionais remotos e zonas desertas, até aos arredores de Madaba. Que trânsito! Caos! Era hora de atestar o depósito do carro. Aquela carburação estava toda arruinada… um carrito de tuta e meia e estava a consumir uns 8 litros aos 100 km! Logo ali telefonei ao nosso anfitrião, que não podia vir ao nosso encontro. A coisa complicou-se: o inglês dele não era brilhante, o meu crédito estava a chegar ao fim (2 SMS e 2 chamadas de segundos derreteram um crédito de 12 Euros, obrigado Vodafone), e as indicações que lhe consegui perceber eram sumárias. Quase por milagre encontrei uma das referências, o Jordan Bank, de onde queimei os últimos cartuchos com mais uma chamada. Correu bem. Era só virar à direita e depois em frente à farmácia, entrar por uma ruela onde ele nos esperaria. E lá estava.

O Fadi mostrou-nos as instalações, o nosso mini-apartamento privado, com acesso a uma varanda magnífica. Pediu mais uma vez desculpa por estar embrenhado nos seus estudos. Ainda tentou telefonar a outro couchsurfer de Madaba que talvez nos pudesse fazer alguma companhia e mostrar-nos a cidade, mas o amigo não atendeu o telefone. Tanto melhor. Estávamos cansados e preferiamos ficar por ali. Demos um salto ao supermercado de bairro (onde practicamente nenhum artigo estava marcado), fizemos umas compras jeitosas e jantámos calmamente. Pouco depois o Fadi apareceu com um tabuleiro com chá e biscoitos. Conversámos um pouco, enquanto partilhávamos o “lanchinho”. Mais tarde, já à hora da deita, apareceu outra vez, e desta vez ficou mais tempo. Foi interessante. Vimos fotografias do seu tempo de serviço no Sudão. Fadi é um oficial superior da polícia jordana que fez parte de algumas missões da ONU. Tem muitas histórias para contar. E assim acabou o longo dia.

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