18 de Novembro

Segundo dia completo em Aleppo. É Sexta-feira, dia santo no Islão. As ruas estão quase desertas, apenas alguns vendedores abriram as suas bancas. Tinham-me dito que era pena eu apanhar um destes dias, que a cidade não tinha piada. Mas gostei. Pode-se andar por locais que na véspera estavam repletos de gente, reparar em pormenores, parar para fotografar. É infinitamente mais descontraido. E mesmo assim, sobretudo a partir do final da manhã, existe algum comércio. Muitos fieis cumprem as obrigações religiosas e depois seguem a sua vida normal. O fim-de-semana no Islão engloba a Sexta-feira e o Sábado, mas o ênfase é invertido, em relação ao nosso calendário: o primeiro destes dias é mais global, e depois, no Sábado, para muitos já é um dia mais normal. Socialmente a Sexta-feira é um dia de família, doméstico, enquanto Sábado fica reservado para os amigos, para a festa.


Saímos do hotel às 10:34. A localização deste alojamento é excelente. Às portas da cidade antiga, por detrás da biblioteca nacional, encontra-se numa encruzilhada, entre a a velha Aleppo e o bairro cristão. E foi por ai mesmo que fomos, por entre ruas de casas com sabor colonial, muitas delas erigidas pelos franceses. São fachadas muitas vezes decoradas com cores garridas, a influência europeia a sentir-se, disfarçada pela adaptação a um novo clima. Passámos pelo hotel Baron, esse marco incontornável da história recente de Aleppo, onde figuras como Lawrence da Arábia, Agatha Christie (ali escreveu ela uma boa parte do seu romance Crime no Expresso do Oriente), Charles de Gaulle, Freya Stark, Julie Christie, Ataturk, Charles Lindbergh, Rooservelt, Yuri Gagarin. Da varanda do quarto 215 o rei Faisal proclamou a independência da Síria. Mas hoje é um farrapo, um velho traste que mal sobrevive à custa da glória passada. Arriscámos a entrar. Esperávamos talvez um pouco de simpatia de quem vive de e para o turista, sobretudo em tempos em que estes se tornaram uma raridade. Mas só recebemos olhares secos e um acenar rígido quando perguntei se podia tirar fotografias.


Continuámos a andar, até chegar a uma nova zona da cidade. Não é ainda a nova Aleppo, mas algo intermédio. Há um parque, que nos foi recomendado pelos anfitriões, mas que desagradou profundamente, sujo, seco, ao abandono. Mesmo assim é claramente um pólo de atracção para as famílias locais num dia como o de hoje. À entrada, numa vasta praça, organiza-se uma manifestação pró-governo. Aqui e ali, numa pretendida discrição, os homens dos serviços secretos observam. Num jeep preto três figurões de óculos escuros que não enganam ninguém. É preciso ter a certeza que os bons seguidores do presidente Assad não são incomodados.

A ideia era chegar à estação de comboios, que, dizem, é só por si algo digno de se ver, dentro do estilo decadente. E depois, há uma série de carruagens e locomotivas por ali abandonadas, nos ramais adjacentes. Mas, olhem, esquecemo-nos! Só nos lembrámos quando iamos de volta, e não apeteceu regressar. Em compensação vimos um palácio com uma placa que anunciava um instituto alemão de investigação. Ficou a dúvida se o seria ainad ou se estaria disoluto. Adoraria ter fotografado, mas afinal a Síria é a Síria e quando estava a olhar chegou um homem de bicicleta, que abriu o cadeado do portão e não se apressou a desaparecer de vista. Não quis arriscar.

Dirigimo-nos à cidade antiga para uma segunda vista de olhos. À porta de uma loja de pneus o orgulhoso proprietário sugere-me por gestos que lhe tire uma fotografia. Feito o click, pede para a ver, no LCD da câmara. Entusiasmo! Decididamente ficou rendido aos meus dotes de fotógrafo, considerando o enorme sorriso que se lhe abriu na face e as exclamações excitadas com que chamou todos os amigos da rua para virem, também eles, verem o seu vizinho eternizado.

As ruas da cidade antiga estão quase vazias. Alguns homens regressam da mesquita. Somos interpelados por uma figura bizarra, um velhote que diz em inglês improvisado que não o devemos temer porque é cristão, segue-nos, aborda-nos diversas vezes, pede-me a morada para me escrever. Dou-lhe o endereço de e-mail. faz mais perguntas e começo a sentir-me desconfortável. Poderá ser? Um informador da polícia secreta? Nunca o saberei.

Tiro muitas fotografias. Não me sinto constrangido, como sucedeu em Damasco. É uma bela tarde, apesar do céu nebulado, sempre a ameaçar chuva, que nos acompanhou por todo o lado na Síria (excepção feita ao último dia, em Palmyra). Vamos visitar a cidadela, o castelo. Pagamos o bilhete, com um custo simbólico, e entramos pela monumental rampa. Nota-se bem que é dia santo, o local está cheio de sírios que usufruem da sua Sexta-feira. Há miúdos que descem as ingremes faces do cone de terra e rocha onde assenta a fortaleza, fazendo uma espécie de “rapel” pela gigantesca bandeira nacional que foi colocada toda em redor depois do início da crise. Exploramos o complexo sistema de ruínas da cidadela até que damos com uma agradável esplanada, com excelente vista para a cidade. Paramos para tomar um chá, num daqueles momentos que poderia durar para sempre. A vida é bela.


Em breve começará a escurecer. É Inverno e os dias são curtos. Iniciamos o caminho de regresso. Por duas vezes encontro grupos de miúdos que pedem para os fotografar. Tão diferente de outros países onde o viajante tem de dispensar uma moeda antes de poder pensar em tirar o retrato a um habitante local. Dois deles estão concentardos, à porta da loja dos pais, de volta de uma Vespa. Tiro-lhes uma primeira chapa, discretamente, mas sou avistado. Grande festa. Põem-se em cima da motorizada, posam, incitam a mais disparos, fingem ir a alta velocidade sem sairem do sítio, e quando carrego no botão aceleram com vigor, como se o som ficasse retido pelo sensor da Nikon.

Antes de nos reunrimos com os nossos amigos para a ida ao Carrefour, há ainda tempo para mais um maravilhoso batido de banana no quiosque do costume. Já sou considerado velho cliente da casa, depois de três visitas em três dias. É sempre uma festa quando lá apareço. É espantoso.

No hotel abordamos um problema com o Ahmed, uma situação sobre a qual já tinhamos até falado e para a resolução da qual obtivémos vagas promessas. É que, ao contrário do que pensava, não há forma efectiva de chegar de Aleppo a Palmyra. Portanto, das duas uma: ou não se visita Palmyra de todo, ficando-se mais dois dias em Aleppo, ou vai-se de volta a Damasco, para voltar para norte até ao meio do país, e de regresso à capital. Duas possibilidades pouco atractivas. Em Aleppo sentimos que já vimos o que há para ver e que já chega. Quanto ao ir e vir, para além de fisicamente desgastante, será certamente stressante. Entretanto o Ahmed insiste para que estejamos em Aleppo no Domingo à noite, para a sua festa de aniversário, e chegamos a um acordo, meio desafio: ele arranja-nos forma de visitar Palmyra, o Crac des Chevaliers e uma das “cidades perdidas” e em contrapartida regressaremos a Aleppo a tempo para participar na farra.

Ele leva a tarefa a sério! Pega no telefone e faz inúmeros contactos. Não é fácil. Os motoristas de Aleppo recusam-se a passar na zona de Hama e Homs. Como a população de Aleppo não se encontra activa na luta contra o regime, não é bem vinda aquela região, e já houve um caso de um motorista de táxi espancado por lá. Por outro lado, convencer um condutor de Hama e Homs a andar para cima e para baixo por uma quantia razoável também não se afigura simples. Por fim encontrou-se alguém. Passa-se à fase da negociação e dos pormenores. O programa que exigimos é sair de Aleppo de manhã cedo, visitar Serjilla e o Crac des Chaveliers, e pernoitar em Palmyra, regressando no dia seguinte a Aleppo. O homem houve e fica de telefonar em breve. Vai fazer contas. Por fim temos a proposta final: por 160 Eur temos condutor e carro para este programa. É uma despesa que não tinhamos planeado mas é demasiado tentador. Fica combinado!

Já estamos com o Ahmed, a Nicole e a Anya. Apanhamos um táxi, onde nos empilhamos no interior. O Carrefour é nos limites da cidade, e sabe-me bem aquele banho de ocidentalidade depois de uma semana no Médio Oriente. Encontro sem problemas tudo o que preciso para a feijoada, o arroz doce e a mousse de chocolate. Cá fora está frio. Mas depressa estamos de regresso, desta vez direitos ao apartamento deles.

O jantar corre bem, com os preparativos a decorrerem em ambiente festivo, garrafas de vinho a serem abertas à laia de aperitivo. Cozinho sem problemas, e o resultado é excelente. Os convivas, à mesa, aguardam entusiasmados por aquela variação inesperada à sua dieta habitual. Depois de servida a refeição principal e as sobremesas, concentramo-nos na sala, com aquecimento ligado, e a conversa vai pela serão dentro. De novo, não nos deixam caminhar de regresso ao hotel, e o bom do Ronnie leva-nos no seu carro.


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