19 de Novembro

Dia grande desta viagem. Na realidade, o dia maior. Em número de horas, em locais visitados, em intensidade. Às 7:00 o nosso condutor estava na recepção. Um homem nos seus cinquenta e muitos, atarracado, com ligeiros toques de gangster. De poucas falas, inglês mais do que rudimentar.  Chovia quando acordei e quando abandonámos Aleppo a precipitação ganhou contornos de dilúvio. Sigo de semblante carregado. Não quero acreditar que o dia mais desejado irá ser estragado pelas condições metereológicas.


Depois de rodar mais de uma centena de quilómetros na estrada principal, que liga Aleppo a Damasco, o condutor interna o carro numa aldeia. Sob a chuva que não pára de cair os militares abrigam-se. Os veículos blindados estão cobertos, discretos. Na povoação vejo pela primeira vez uma outra Síria, bem mais pobre, rural. As crianças semi-despidas, as ruas esburacadas, as casas revelando anos a fio de improvisos estruturais. É ali, naquele momento, que confirmo que nunca poderia ter percorrido os caminhos que passámos naquele dia sem a ajuda de um local. Sob os olhares prescrutantes dos soldados sentados à porta dos seus contentores feitos habitação.  Estamos muito perto das cidades problemáticas, zonas interditas aos estrangeiros nos dias que correm.

A aldeia ficou para trás, circulamos agora por uma estrada sinuosa mas plana, com uma paisagem estranhamente verde de ambos os lados. A chuva começa a abrandar, e nisto já não cai. Chegamos a Serjilla. Se existem milagres, naqule momento deu-se um. Depois de horas a chover copiosamente, no momento em que o carro se detém à entrada desta cidade perdida, as gotas de água cessam. Estão reunidas as condições ideais para visitar o lugar: céu cinzento e humidade sem chuva. Exactamente o cenário em que imaginaria conhecer Serjilla!

Esta talvez a mais significativa das muitas cidades perdidas, vestígios de uma presença bizantina na região que desapareceu um dia, sem causas evidentes. Não é, na realidade, uma cidade. Ocupa a área  de uma aldeia de médias dimensões, com as ruínas a estenderem-se num terreno com algumas elevações. Com os edíficios ainda de pé, não é complicado imaginar-se a vida que um dia ali existiu. A pedra das casas e igrejas ganhou um tom avermelhado, com a lama e os resíduos argilososos do terreno.


Vagueei fascinado por aquele local fantasma, fotografando sem parar. O condutor tinha-nos dado meia-hora para explorar. Dos 30 fiz 45 minutos e mesmo assim foi pouco. Poderia passar o dia ali. talvez noutros tempos Serjilla se encontrasse repleta de turistas. Mas não agora. Nem sequer se encontra no local o funcionário encarregue de vender os bilhetes. É como se esta “cidade” tivesse sido duplamente abandonada. Primeiro, pelos seus habitantes originais, e agora, pelos visitantes.

A viagem até ao Crac des Chevaliers fez-se sem precalços. Ao longo de todo o caminho a presença militar tornou-se mais evidente.  Viaturas blindadas posicionadas em pontos estratégicos, checkpoints, atiradores nos telhados, abrigos feitos com sacos de areia. Alguns dos militares estão razoavelmente equipados, enquanto outros, provavelmente mílicias ou polícias, assemelham-se mais com elementos de bandos armados. Tinham-nos contado que as autoridades, depois de terem anunciado a retirada do exército das cidades em alvoroço tinham mandado pintar de azul os blindados. E pronto. Já não é o exército. De azul, é a polícia. E debaixo de umas árvores, num acesso à via principal, vi uma destas mutantes viaturas estacionada.

Nunca me deixei de surpreender pelo desconhecimento geral, entre as pessoas com quem conversei em Portugal,  do Crac des Chevaliers. Estamos perante um dos mais bem preservados castelos do mundo medieval, património UNESCO, e figura de proa do turismo sírio. A sua silhueta imponente surgiu de repente, quando menos esperava, porque os castelos supostamente são construidos nos pontos mais altos e este não. O condutor parou o carro, para mais um dos seus inesgotáveis cigarros, fazendo-nos sinais que era altura de tirar fotografias. De facto o local oferecia a melhor perspectiva do grande castelo, de uma distância razoável e de um posição mais elevada. Mas a luz não era a melhor. Se exultei com o céu cinzento que envolvia Serjilla, já o Crac des Chevaliers seria mais bem visitado sob um resplandecente sol de Primavera.


Pago o bilhete (já não me recordo do valor, mas muito baixo, talvez 1 ou 2 Euros), entrámos. Um dos homens que se encontrava na bilheteira seguiu-nos de imediato, propondo os seus serviços de guia encartado. Disse que não, claro. Mas ele manteve-se conosco, explicando aquilo e acoloutro, chamando a atenção para os números fantásticos, para este ou aquele aspecto da história do castelo. Tive que lhe dizer, de forma mais clara, que de facto preferia descobrir este tipo de locais sozinho. Ele retorquiu que o castelo era tão vasto que sem um guia iria perder muitas coisas, mas acabou por se convencer. Não tinham passado dois minutos quando nos surge um outro guia. De novo, explicar que preferia estar sozinho. Mas este teve uma abordagem diferente e inesperada. Disse-me que dinheiro não era problema, se eu não queria pagar, ele fazia uma visita de uma hora de borla. Evidente que só a ideia de ser escoltado por um guia me dá calafrios. Se necessário fosse, poderia até abrir os cordões à bolsa para estar SOZINHO. Mas o tipo não me deixou de fazer uma certa pena. Será que faria mesmo aquela visita sem esperar uma retribuição, ou estaria a apostar num amolecimento do meu coração. Se, como ele me disse, não iam turistas ao castelo há mais de 45 dias, então não me espantaria que estivesse disposto a trabalhar gratuitamente só para desenferrujar o seu inglês e falar com gente diferente.

Devo ser honesto: o Crac foi, na sua globalidade, decepcionante. Não que não seja interessante e grandioso, simplesmente as minhas expectactivas estão elevadas demais. O dia cinzento também não ajudou, e quando se aproximou a hora de partir (para esta visita o Adolf sírio deu-nos três horas, o que foi a conta certa) recomeçou mesmo a chover.

Explorar o castelo foi passar por salas e salas vazias, descer escadas de pedra húmida e escorregadia, espreitar a vista que inclui a pequena cidade nas imediações. Depois, no sector central (na realidade, como tantos outros castelos, o Crac está estruturado em níveis defensivos, mais compactos há medida que se caminha para o seu interior), alguns elementos mais interessantes, como a grande capela e os claustros. Sobretudo dececpionou-me a monotonia. Os sectores são previsiveis. Torres, ameias, passagens, escadas, salas e… torres, ameias, passagens, escadas, salas. Faz falta o factor surpresa.


A viagem do Crac para Palmyra foi longa mas agradável, adornada por uns quantos checkpoints, onde os militares e polícias de serviço se abstiveram de colocar problemas, sobretudo depois de se aperceberem que éramos estrangeiros. Nem os passaportes lhes interessaram de sobremaneira e apenas um lhes deu uma vista de olhos sumária. Noutra ocasião, depois de te lhe terem sido entregues, um polícia perdeu-se na conversa com o nosso condutor e conosco, devolvendo-os sem qualquer verificação.

A determinado momento abandonámos aquele eixo viário principal. Era o desvio para Palmyra, cujo nome moderno é Tadmour. Seguiram-se dezenas de quilómetros por uma estrada larga e excelentes condições que cruza ali o deserto. Afastados do caldeirão explosivo de Homs e Hama a presença militar desvaneceu-se. Apesar de termos passado junto a algumas instalações do exército e a uma base da força aérea, mas essas, por assim dizer, sempre lá estiveram.


O céu estava espectacular. Nalguns sectores apresentava-se escuro como breu, não sendo de espantar que de tempos a tempos um pesado aguaceiro se abatesse sobre nós. Noutros quadrantes já começava a abrir e o sol sorria a tempos, criando múltiplos arco-iris. Foi com este cenário que avistámos o castelo árabe que se ergue junto a Palmyra. Do lado de onde nos aproximámos foi a primeira coisa a surgir, com a sua colina a tapar a visão para a cidade, como que lhe estendendo um manto protector.

O nosso condutor tinha horror a conduzir de noite, dai o controle apertado sobre o tempo que tinhamos disponível. Isso já me tinha aborrecido um pouco, mas quando ele anunciou que nos ia levar para um hotel à sua escolha, deixando magigamente de compreendetr inglês quando tentei dizer que não, a coisa começou a chatear-me a sério. Foi o momento baixo desta viagem. O Ahmed tinha-lhe dado instruções específicas para onde nos levar, e tinha até combinado tudo com um determinado hotelzinho económico. Era para lá que queria ir, claro, confiando inteiramente na escolha do nosso novo amigo.  Quem acabou por pagar por esta tensão foi o pessoal do Citadel Hotel, o que, como depois se verificou, foi injusto. Não podiamos ter ficado melhor entregues: com comissão ou sem comissão, o preço foi uma pechincha, 6 ou 7 Eur a cada um; o quarto era modesto, claro, mas nada mau pelos padrões da região, e muito espaçoso com vista sobre as ruínas; a localização era simplesmente a melhor possível… ali nenhum hotel fica verdadeiramente longe das ruínas mas estou em crer que este era o mais próximo da entrada principal; e depois… depois nada… o hotel era simplesmente simpático e o seu pessoal atencioso. Gostei de tudo, no final de contas.


Instalados, esclarecidos quanto aos complexos complexos procedimentos para se obter água quente no duche (abrir as torneiras todas, desde que entre as 9 e as 10 e as 17 e as 18 horas, esperar que a água quente chegue, fechar as torneiras excepto a do chuveiro) pude saciar a fome que me atormentou todo o dia. O pequeno ditador recusou-se a parar onde quer que fosse para que pelo menos pudesse comprar algo para trazer e trincar. Mas no hotel encomendei uma fenomenal espetada, servida com todo o rigor que me soube como só a comida sabe a quem está esfomeado. Ainda restava algum tempo com luz do dia e saimos para explorar.

Primeiro, fomos dar uma grande volta. Seguimos a rua que se inicia mesmo em frente ao hotel, e em vez de a seguirmos, naquilo que seria a penetração perfeita na área das ruínas, rodeámos pela direita a muralha primordial, que, na minha ignorância, tomei como um muro relativamente recente. Antes, passámos pelo edíficio do museu e por uma rotunda alagada, que ultrapassámos a custo. Neste bocadinho, todos os homens que se deslocavam de motocicleta, e que eram muitos aquela hora, nos prestaram todo o tipo de atenção: uns simplesmente observavam, outros sorriam, e os mais atrevidos gritavam desejos de boa estadia em Palmyra. Um parou, apresentou-nos o salão de chá de um amigo (na realidade, acho que era dele), palrou, falou e falou, querendo que fôssemos até lá tomar qualquer coisa, que nos levava na mota e mais isto e aquilo. Acabou por se satisfazer com a promessa de uma visita para mais tarde, que nunca veio a acontecer, apesar de o tornarmos a encontrar duas vezes durante o passeio, em locais diferentes e a horas bem distintas.

Aquele pessoal decididamente adora motocicletas. Mesmo nas ruínas os trilhos são sulcados por esta frota infindável de motocicletas. Gostaria de salientar que a entrada na cidade antiga, na capital da antiga civilização de Palmyra, é gratuita. Não existem muros ou vedações, bilheteiras ou funcionários. Aquela metrópole em ruínas está ali desde tempos quase imemoriais, e como sempre, quem quiser entrar e explorar só terá que caminhar a seu gosto.

E foi o que fizémos, tornando aquele final de tarde e início de noite num daqueles momentos mágicos que no final de tudo perduram na memória, tornando-se símbolos de uma viagem, de uma vida de viagens. A noite caiu enquanto descobriamos Palmyra, e à medida que a luz se desvanecia o céu mudou de temperamento. O cinzento plúmbeo que antes dominava deu lgar ao azul, prometendo um dia seguinte luminoso e feliz. A iluminação do castelo, lá em cima, acendeu-se, e de seguida foram as lâmpadas verdes que durante a noite projectam a sua luz sobre as tumbas, e, por fim, os projectores amarelos que destacam as colunas de entrada na grande avenida de Palmyra. E enquanto tudo isto sucedia, estávamos lá. Sozinhos, sentindo que não poderíamos estar mais seguro. A perspectiva de alguém ser incomodado ali, molestado seja de que forma for, é tão remota que é como se não existisse. O “pior” que sucedeu foi a abordagem da pequenita Sophia, uma menina de uns nove anos que certamente se habituou aos turistas que noutras anos por ali abundaram. Pediu qualquer coisa, mas não tinhamos nada para lhe dar. Pediu uma caneta, uma guloseima, qualquer coisa, mas não havia mesmo nada que pudesse ser deixado como uma prendinha para a Sophia que, sem pedinchices nem insistências, compreendeu e voltou a correr para o acampamento de onde saiu.

Depois daquele passeio abençoado andámos ainda um pouco pela principal rua da cidade moderna (moderna em contraposição com a Palmyra da Antiguidade). Sente-se uma sofreguidão pelo turista, aliás, pelo seu dinheiro, uma situação que se revelou pela primeira vez na Síria, e que encarei com algum beneplácito considerando as circunstâncias. Imagem o Algarve privado de TODOS os turistas de um dia para o outro. Essa é a situação em locais como Palmyra. Pessoas que desenvolveram a sua actividade profissional em redor do turismo de repente vêem-se sem fontes de rendimentos. Alguns estabelecimentos, mais cosmopolitas, fecharam já portas, enquanto que algum comércio se mantém, com evidentes dificuldades. Comprei uns chocolates e fui evidentemente “roubado”, mas de qualquer forma, continua barato. Num supermercado as compras fizeram-se a preços normais, locais. E depois regressámos, para um excelente humus no hotel… por 1 Eur. Ficámos um pouco, a ler, ao serão. Como a noite caiu pelas 5 horas, eram apenas 9 horas quando nos retirámos, depois de um bocadinho bem passado, na sala de estar junto à recepção, onde nos divertimos observando as andanças do pessoal e os homens que ali vão para conviver um bocadinho, como se de um café se tratasse. Até Internet havia!

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