Era um mês frio de Novembro. A primeira viagem a uma nação escandinava. E todo aquele imaginário guardado anos a fio despontava e encontrava a realidade, à espera, de mão estendida. Foi assim a visita a Estocolmo, encantadora, mágica, toda ela. Uns quantos dias que deixaram memórias daquelas que ficam, como um álbum de fotografias, feitas de imagens em avulso. Lembro-me da noite que chegava ainda de tarde, da caminhar pelas ruas e ver as cores quentes no interior dos lares, quase como se as casas estivessem iluminadas a velas. O bulício das famílias a reunirem-se depois de mais um dia, de trabalho para uns, de escola para os mais novos.

Mas num daqueles dias, chegada a hora em que o sol anuncia a sua retirada e a noite começa a cair sobre a cidade, o plano foi outro. Em vez de, também nós, iniciarmos a retirada para o aconchego do apartamento, metemo-nos num dos mil barcos que unem as partes de Estocolmo eternamente separadas por aqueles braços de mar, e fomos. Quando desembarcámos, dez minutos mais tarde, tinhamos já sido ofertados com um lusco-fusco lindo de morrer. Enquanto estávamos lá, no meio da água, as luzes da cidade, acabadas de aparecer, lutaram por uns momentos com a pouca claridade que existia ainda no céu. Por detrás de todos aqueles prédios cheios de vida, o laranja que o sol tinha deixado para trás esbatia-se, lentamente, num azulão que se tornava negro à medida que o olhar se elevava. Veio-me à ideia que deverá ser assim a mítica vista de Manhatan a partir do mar.

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E onde nos dirigiamos: a uma espécie de ilha que não o é. Bizarro. Tem comportamento de ilha. Os acessos são primordialmente feitos por mar e assim que lá se chega uma pessoa sente-se isolada do corpo principal da grande metrópole. Até os locais transmitem aquele não-sei-quê de cumplicidade que se encontra nas pequenas comunidades, que vivem o seu afastamento com uma altivez orgulhosa feita de “nós” e “eles”. As ruas daquele lado estavam quase desertas. Apesar de ali tão perto, do outro lado, o centro de Estocolmo fervilhar, em Djurgårdsvägen vê-se uma ou outra sombra que se esgueiram, passo rápido de quem está atrasado para algo, que, no caso, se me afigura como o mandamento imperioso de encontrar o abrigo doméstico antes da noite se instalar em definitivo.

A travessia até à ilha que não o é foi feita para experimentar a agradável viagem sobre as águas daquele Atlântico distante, tão afastadas do seu corpo principal. Mas queriamos também espreitar o Vasa, aquele navio museu que tinha preços de bilhereira fora do alcance deste viajante de pé descalço. Lá estava ele, agora pouco mais que uma sombra. O grandioso Vasa. Sobre ele, dizia um amigo sueco, que só o seu povo se lembraria de algo tão rídiculo como preservar para a eternidade o testemunho de uma asneira de todo o tamanho. O Vasa nasceu e morreu no mesmo instante. Construído para ser um dos orgulhos da emergente Marinha Sueca, naufragou poucos minutos após ser lançado à água.

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Estávamos nós a observar o casco abrigado do navio, quando avistamos uma auréola alaranjada do lado oposto do complexo-museu. Decidimos investigar. Parecia o espectro de uma incêndio, daqueles que nos habituámos a ver em Portugal, dos que devoram florestas e matos, noites a fio. Havia um tremeluzir peculiar naquela luz. Como só o fogo provoca. Aproximámo-nos e compreendemos, assim, de repente: a origem do clarão fabuloso eram as milhares de velas que cintilavam ali, espalhadas pelo cemitério. Como descobri mais tarde, estavamos em Galärvarvets kyrkogård. E no momento em que transpusémos o portão poente, os últimos visitantes deixavam o espaço pela entrada oposta. Ficámos apenas nós na reino dos mortos. E a luz. Foi daqueles momentos sorvidos com a gula de quem sabe que não se voltarão a repetir.

Como tantas vezes sucedeu naqueles dias de Estocolmo, senti uma enorme frustração por ter deixado a câmara fotográfica em casa. A compacta teve de servir, com todas as suas limitações. Cruzámos o espaço do pequeno cemitério, disfrutando daqueles contrastes de luz e penumbra. Porque estava de facto uma noite escura como breu. Havia velas nas campas, mas sobretudo nos espaços abertos. Eram aos milhares, desenhando formas imaginárias que emergiam do silêncio. Era o seu dia, dos mortos. 1 de Novembro.

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