A ocasião surgiu nos últimos dias da minha visita a Praga em Maio de 2014. Queria reviver os melhores momentos da vida que levei por aquela cidade, sair para o país profundo, explorar aldeias e hospodas (a corrrespondência à nossa taberna, substituindo-se o vinho pela cerveja), trilhos e ruinas, viver aventuras com amigos e deixar-me levar pelos vapores de um serão de copo na mão. Foi assim com entusiasmo que aceitei o convite do meu grande companheiro Daniel Plavecky para visitar um amigo dele que comprara uma casa na provincia.

Deixámos Praga para trás, a bordo de um velho autocarro. E no destino, lá estava ele, Ondra, à nossa espera, com a sua carrinha mágica, para nos conduzir até casa. Sentei-me atrás, partilhando o espaço com um velho capacete de escalada, cordas, grades de garrafas de cerveja e umas quantas em avulso, rolando pelo banco e pelo chão. Peguei num mapa de grande escala da zona e entretive-me a estudá-lo enquanto me deixava ir.

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A estória de Ondra e da sua casa em Nechvalice conta-se em poucas palavras: depois de uma breve carreira, brilhante e prometedora, numa área profissional de imenso futuro, decidiu deixar ficar para trás os valores sociais incutidos. Quis regressar às origens, simplificar uma vida que se adivinhava complicada. Com meia dúzia de tostões, por assim dizer, comprou esta casa numa pequena aldeia. Era um lar centenário, habitado por sucessivas gerações da mesma família durante séculos. Estava gasto, cansado. Como o estavam os últimos proprietários, que se finaram deixando uma herança nas mãos de alguém que a passou ao nosso amigo em troca do valor justo.

Quando se mudou Ondra passou semanas a descobrir os tesouros antigos escondidos pelos cantos da casa. Se calhar ainda não os encontrou todos, mas diz, meio a brincar meio a sério, que se vendesse parte do que achou por ali poderia pagar a casa e ainda arrecadar uma boa maquia. É que o recheio veio com a propriedade, e as surpresas que lhe estavam reservadas tinham-se acumulado durante centenas de anos. Há velhos rádios de início de século, mobílias com mais de duzentos anos, documentos raros, livros valiosos, peças de antiguidade desejadas por colecionadores. E coisas bizarras, como o veículo que desliza na neve impulsionado por uma enorme ventoinha que Ondra tenta pôr a funcionar há meses.

O meu anfitrião mostrou os cantos à casa. Há a adega que mais não é do que um frio e húmido buraco no chão, forrado a pedra, que dá arrepios. O sótão ainda pejado de objectos com muito para contar à espera de serem  descobertos. A garagem que era o celeiro e que agora alberga um par de Trabants e uma mão cheia de velhas motorizadas incapazes de andar. A divisão que sofre infiltrações e está por recuperar, devidamente isolada do resto da casa. O “quarto” dos hóspedes – na realidade uma arrecadação com tralha e um par de colchões colocados no chão, onde mais tarde passarei a noite dos justos.

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Ficámos por casa uma boa parte do dia. Ouviu-se Tchaikovsky num prato – ou gira-discos, como se dizia no meu tempo – antigo, um hino à glória do vinil, realçado pela colecção de Ondra, talvez mais um pedaço do património inesperadamente herdado com o imóvel. Já com uma cerveja na mão, gelada pelo frigorífico natural que é a cave da casa, conversámos. E como não ter assunto de conversa hoje, neste local, com estes amigos em redor? Daniel mostrou-me um misterioso caderno, de aspecto tão antigo como tudo o resto. É o registo de ocorrências da casa, que Ondra mantém religiosamente. Já ali está assinalada a minha revista, neste verdadeiro logbook de um navio que sulca os mares do tempo sem se mexer desta perdida aldeia de Nechvalice.

Comemos qualquer coisa. Depois, deixo os dois checos colocar a conversa em dia e trepo para a cama suspensa sob o alpendre, a uns três metros de altura. Enrolo-me ali a ler, parando a tempos para apreciar o momento. Perco-me em considerações filosóficas, que passam pela definição de felicidade por este momento presente e pela valorização dos prazeres mais simples como a conversa de qualidade e a observação das coisas belas. Os meus amigos vão agora cavando as ervas daninhas que cresceram excessivamente a um canto do jardim interior. Continuo a ler.

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O Daniel enrola mais um cigarro. Foco o olhar no magote de pequemos malmequeres que no topo do velho muro de pedra sobem em direcção ao sol, eriçados, em bicos de pés, com o céu muito azul por detrás. Eles fazem uma pausa no trabalho.  Vamos um pouco para dentro e aproveito para observar mais uns quantos detalhes. Uma fotografia de Beneš (um presidente checo de profunda importância histórica) suspensa na parede ganha nova vida com o foco de luz que lhe está apontado, como que observando o Daniel, que mais abaixo procura sintonizar o rádio da melhor forma.

Por esta altura estou em modo checo, o que significa que sendo uma tarde de Sábado que caminha para o final, começo a pensar em cerveja. Se há uma hospoda na aldeia? Há mas…. palavras que ficam por dizer, subsiste a ideia: não queremos lá ir. Prometem-me uma outra solução, numa aldeia vizinha. Há que caminhar. Excelente. Que mais pode um homem desejar… um bonito dia de Primavera no campo, com gente interessante, cerveja e um passeio pela natureza.

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Vamos a caminho. São uns 5 km, por montes e vales, trilhos por vezes inexistentes. Deixo-me conduzir, por uma vez não sou eu que tenho que indicar o caminho, posso simplesmente relaxar, sentir o verde vibrante da paisagem ouvir o deslizar rápido das águas no ribeiro por detrás dos canaviais. O céu tem núvens altas de tons ricos que oferecem uma dimensão mais profunda às fotografias. Ao longo do percurso conjugam-se os elementos bucólicos, como se tudo não passasse de uma encenação para recriar uma imagem padrão da vida rural na Boémia. Encontramos uma casinha de camponeses e, mais à frente, a manada de vacas que nos observa com indiferente curiosidade. Exploramos uma antiga pedreira transformada naturalmente em lago, junto ao qual um par de jovens fuma um charro.

Estamos a chegar. Já se vê a povoação à distância. Passamos junto a um complexo de viveiro de trutas. Entramos na aldeia, claramente maior do que Nechvalice. Não se vê vivalma, não há traços de vida humana. Passeamos um pouco, entramos no cemitério adjacente à igreja local. Vamos, temos que prosseguir, o objectivo está próximo, o hospoda. Mas… como é possível… está encerrado. Os meus amigos dizem-me para não me preocupar. São quase cinco da tarde e é possível que abra a essa hora. Sentamo-nos. Primeiro num banco fronteiro, para o retrato de grupo. Depois, nas escadas do bar.

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Mas chegam as cinco e logo partem. A porta mantém-se encerrada. Ondra vai estranhando a quietude. Nem hospoda nem gentes na rua. Esperamos mais um pouco, quem sabe…. mas nada. Não há sinais de vida na aldeia nem no interior do edíficio onde o dono do estabelecimento vive. E de repente ocorre-nos. Hoje é dia grande do mundial de hóquei no gelo. Joga a República Checa. Já afastada da grande final disputa o terceiro lugar numa partida contra a Finlândia. Está explicado o sossego artificial, quiçá as portas encerradas. Mas… como é… dia de jogo e o pub está fechado. Poderá parecer contra-natura mas o mistério está prestes a ser resolvido.

Entretando o Ondra, já desesperado, vai bater à porta do dono, e lá vem ele, por dentro, abrir o estaminé para nosso deleite. A tarde continua amena e, pegando nos copos, desdenhamos para já o interior sombrio do estabelecimento, voltamos às escadaria exterior e consolamo-nos com o refrescante líquido enquanto vamos falando de coisas como a obsessão pelo desporto. Abrem-se portas, aqui e acolá. Ouvem-se vozes. Pronto, já está. Acabou o jogo. Há pessoas, não muitas, que se dirigem ao hospoda. O primeiro a chegar conta-nos os detalhes. Não correu bem. O homem vem zangado e divertido ao mesmo tempo, uma estranha combinação que se revela através de um grande sorriso de onde sai um chorrilho de insultos e pragas contra a ineficácia da equipa checa. Vai para dentro.

Começa a arrefecer e passado um pouco seguimo-lo. A uma mesa está o nosso novo amigo, o dono do estaminé, uma senhora com alguma idade e outro tipo também já nada novo. A conversa ali vai animada, e a nossa vai acelarando à medida que o alcool vai levantando barreiras. Passámos ali horas, como sempre sucede nestas ocasiões. O dono diz-nos que se está a borrifar para desporto… não,  que odeia desporto. Que na sua “loja” não há disso e portanto não vale a pena abrir em tardes assim, porque as pessoas ficarão nas suas casas a ver o jogo. Mais tarde, liga-se a TV. Está a dar futebol. É dia da final da Liga dos Campeões. Real Madrid e Atlético de Madrid enfrentam-se no Estádio da Luz. Vai para desligar, mas faz uma pausa, deixa ficar e diz-nos que em honra ao hóspede português, por esta vez e apenas por esta vez, vai deixar o desporto correr no seu estabelecimento.

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O homem de camisola encarnada, o primeiro a chegar, apresta-se a partir. Depois de umas quantas trocas de palavras com a ajuda na tradução do Daniel e do Ondra, sinto que já somos suficientemente amigos para lhe pedir que fique no boneco comigo. Ele discursa, palavras peganhentas, arrastadas, que as muitas cervejas tomadas não perdoam. Abraçamo-nos, e por uma fracção de segundo o meu pensamento volta a tocar a ideia de felicidade. Que momento!

Vai-se embora e pouco depois pagamos a despesa e saimos também. Claro que já é noite cerrada. Serão umas onze horas. E agora, meus amigos, para a frente é que é o caminho. São 5 km pelo meio do bosque e por colinas sem trilhos delineados, o verdadeiro todo-o-terreno sem motor. Chegamos sem incidentes, cada um joga-se para o seu posto de dormir e apagamo-nos instantaneamente. Isto é viver.

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Outras fotografias do fim-de-semana em Nechvalice. Click para ampliar:

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