Estavam quase a terminar os dias da Ucrânia. Era hora de dizer adeus a Sevastopol e dirigir-me para Odessa, última paragem no longo périplo pelo segundo maior país da Europa. E o comboio era a única possibilidade viável. O meu anfitrião Nick conduziu-me à estação, comprou-me o bilhete desejado – 7 Eur por uma viagem de 600 km que levaria parte da tarde e toda a noite. Depois deixou-me no centro da cidade e foi trabalhar. Ainda vagueei um pouco por ali, aproveitando o primeiro dia de sol desde há bastante tempo. Fazia-se tempo. Apanhei o autocarro para Simferapol e, uma vez lá chegado, encontrei-o sem problemas. Lá estava ele, aquele comboio pintado com as cores nacionais: azul e amarelo.

De cada carruagem assomava uma “revisora”. Os comboios têm uma responsável por vagão, uma espécie de hospedeiras com toques de matrona. Mostro o meu bilhete à primeira que apanho. Sim, estou correcto, é mesmo ali, posso entrar. Ainda era cedo e lá dentro não se via vivalma. Faltavam cerca de 45 minutos para a partida. Instalo-me, com toda a calma do mundo. Inspecciono o interior da carruagem e o meu cantinho. Suspenso, por cima do banco, existe uma “cama” que se recolhe, transformando o conjunto numa espécie de beliche quando está estendida. Ainda mais acima, estão jogos de lençóis e almofadas, devidamente selados. O banco, por outro lado, é uma espécie de arca que se abre para receber o que quer que queiramos guardar. Ou seja, depois de estarmos a dormir é mais ou menos impossível que os amigos do alheio deitem mão aos nossos pertences.

Aproxima-se a hora da partida. As pessoas vão chegando a um ritmo cada vez mais elevado. E aparecem os meus companheiros de viagem. Um casal novo com um homem mais velho, aparentando uns 60 anos mas provavelmente não tendo ainda 50. Sentam-se e logo vão pondo a mesa: um frango assado, garrafa de vodka, garrafa de refrigerante e uma série de latas de cerveja fresca. Terminados os procedimentos, fazem-me sinal para me servir, o que declino com um sorriso e baixar de cabeça. Ainda a composição não se tinha posto em marcha e do frango já só restava a carcaça.

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Soa um apito. As rodas chiam, protestando com o esforço a que são sujeitas naquela tarde preguiçosa de final de Maio. E lá vamos nós! Primeiro, com o sol a prepar-se para a noite, as paisagens de terras ucranianas desfilam pela janela. Bonito! Lindo! Com as cores cada vez mais quentes, até se tornar tudo num laranja que anuncia o pôr-do-sol. A noite chega. Vou lendo algo no meu Kindle, enquanto a vizinhança segue sorrindo e fazendo piada de tudo, deitando abaixo vodka e latas de cerveja como se não houvesse amanhã. O mais velho abre a sua tábua elevada, trepa lá para cima e retira-se para o mundo dos sonhos. Mas a festa continua no rés-do-chão. Reparo que apesar das cervejas iniciais há muito terem sido consumidas, continuam a aparecer mais latas em cima da mesa. Um outro casal jovem junta-se aos meus vizinhos. Já se trocam sorrisos. É preciso estabelecer contacto, mesmo sem uma língua em comum. Por gestos pergunto como é que é aquele milagre das cervejas frescas que se multiplicam. E por gestos explicam-me que se compram lá ao fundo, no gabinete da revisora. Maravilha! Cada vez gosto mais da Ucrânia!

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Vou até lá, peço duas latas e pago menos de um Euro. A noite promete. Regresso ao meu lugar, e como o álcool solta inibições e torna toda a gente em multi-linguista, os meus novos amigos já sabem falar inglês, e vamos conversando sobre generalidades. O futebol é sempre um tema vivo, e naquela noite, a duas semanas do início do Europeu na Ucrânia, ainda mais. As cervejas continuam a vir, e a conversa a fluir. O mais velho ressona. Outros passageiros já se instalaram para dormir. Aparece-me um tipo que procura “o português”. Chama-me à parte e, tão ébrio como eu próprio, vai-me confidenciando que estou ali com gente que não presta. Convida-me a tomar uma cerveja com ele lá fora, num dos átrios de entrada da carruagem. É todo adepto de bola. O que ele quer mesmo é deixar claro que a seguir à Ucrânia o seu coração estará sempre com a Selecção de Portugal. Ora diz isso, ora sublinha que lá dentro estou em má companhia. E bebemos mais duas latas. Passam por nós duas jovens, digamos, menos bem todas pela natureza; e tornam a passar. O meu amigo confidencia-me: “- O que estas querem, sei eu: sexo!”. E, no meio da sua alucinação, é capaz de não estar longe da verdade. Aborreço-me com a conversa, e arranjo forma de regressar para a companhia dos meus vizinhos de viagem.

A noite já vai relativamente avançada. Serão talvez umas duas da manhã. Acabo por me enfiar no saco cama e deixo-me dormir. Quando passado cinco horas acordo, os meus vizinhos já partiram. Vejo o outro casal, mais recatado, agora que passaram os efeitos da bebida. Sorrimos. Dormi relativamente pouco, mas muito bem. O sol já se prepara para um novo dia. Em breve chegaremos a Odessa. Está a acabar a viagem que foi, por si, um dos momentos mais altos de quase duas semanas na Ucrânia. É isto o verdadeiro sumo de viajar, estes momentos… momentos.

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