Não há viajante que não mencione as bicicletas de Amesterdão nas suas memórias de jornada. E compreende-se bem porquê. Os holandeses são malucos por bicicletas – no que os dinamarqueses não lhes ficam muito atrás, diga-se de passagem – e usam-nas de forma intensiva. As vantagens de tal comportamento são evidentes: os níveis de poluição sonora e atmosférica das cidades holandeses são poupados ao castigo de dióxido de carbono e de buzinadelas a que todas os centros urbanos são submetidos e a despesa energética do país goza de alguma redução. Isto apesar dos padrões de consumismo holandeses certamente não fazerem do seu país um paraíso de poupança de recursos e de serem necessários não sei quantos bifes extras ao ano para providenciar a energia nas pernas para tanto pedalar.

Mas estou convencido que esta obsessão pelas bicicletas tem os seus aspectos funestos. Para começar, considerando a forma alucinada como os holandeses se movimentam sobre as suas amigas de duas rodas, ninguém me tira da ideia de que há um elevado número de cascas de nozes partidas por aquelas ruas fora. Até porque enquanto ao volante, pelo que vi, a atitude mantém-se. Só que dar um toque entre viaturas de chapa resulta numa troca de apontamentos e em despesa indesejada para uma qualquer companhia de seguros. Já uma brincadeira do mesmo calibre sobre duas rodas é quase certa ida ao hospital, na melhor das hipóteses. Depois, há a introdução de um novo agente: as motorizadas, não tão abundantes como as bicicletas mas mesmo assim numerosas, e nas quais eles se deslocam a velocidades mirabolantes e sem capacete.

Por tudo isto, o peão não tem vida facil nas ruas de Amesterdão. O velho hábito de olhar para a esquerda e para a direita ao atravessar a rua perde aqui qualquer valor. Aliás, o simples pensamento quase me induz uma gargalhada, tamanha é a futilidade de um acto de prudência tão simplificada. Não meus amigos, em Amesterdão uma travessia de rua implica a adopção da atitude do giroscópio, e certamente não é algo ao alcance de enfermos de tendinites na zona do pescoço. É que se os carros se mantém nas suas faixas de rodagem, as bicicletas e as “scooters” fazem tábua rasa de tudo: passagem de peões, semáforos, vias de rodagem, trajectórias de acordo com o código da estrada… não… nada disso… na prática são como milhares de insectos que, sem zumbir, nos rodeiam, cruzando todas as direcções a velocidade impensáveis.

Um outro problema deste universo sobre duas rodas são os restos. As ruas estão cheias de cadáveres de bicicletas diligentemente presas a algo inamovível por correntes e cadeados. Cada uma terá a sua história. Terá o seu dono partido deste mundo deixando ali a sua fiel amiga abandonada? Ou terá esquecido a posição exacta da sua “bicla” naquele oceano de quadros e rodas, a perder de vista nas áreas de parqueamento? Nalguns casos são bicicletas roubadas e deixadas ao abandono depois de umas voltas ou simplesmente foram trocadas por modelos mais recentes e esquecidas intencionalmente onde foram deixadas. Seja como for, retomando o tema da poluição, não consigo imaginar a cubicagem de um imaginário monte que se fizesse com todas as bicicletas abandonadas de Amesterdão, que hoje infestam a cidade. Ao princípio são até elementos pitorescos, mas passado uns dias uma pessoa apercebe-se que por mais engraçado que seja, aquilo não é mais do que lixo inodoro, e que não vai ser organicamente degradado.

Depois, há um outro nível do problema, quase invisivel: no fundo dos milhentos canais da cidade jazem inúmeras bicicletas, para ali arremessadas por indíviduos de honestidade duvidosa, pagos pelas lojas do ramo para promover o seu negócio. O que é que um cidadão de Amesterdão faz quando chega ao local onde deixou a sua bicicleta para encontrar lá apenas uma corrente quebrada? Pois é, vai comprar outra. E é isso que eles querem quando dão meia dúzia de tostões aos paspalhos que se dedicam a esta actividade.

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