Das pessoas que tocaram a minha vida, Alfrend teve algo de especial: detinha a alma mais pura de todas elas. Este rapaz sírio, estudante, de vinte e poucos anos, esperava-nos numa estação de camionagem caótica de Damasco. Quando o vi, procurei no fundo da memória a figura do meu imaginário a que ele correspondia. E encontrei-a. Era o príncipe árabe, cuja nobreza genuina foi espantosamente passada de geração em geração no nosso país, pela via oral, cruzando inimizades do campo de batalha e mais de oitocentos anos de História. Quando ainda hoje por cá se fala da Lenda da Moura Encantada ou da Lenda das Amendoeiras em Flor, é um jovem tal e qual como Alfrend que surge descrito nesses contos como um “bondoso e muy justo rei árabe”.

Nos primeiros minutos pôs-me logo à vontade. Quando lhe perguntei como seria a gestão do nosso tempo, se teria trabalho para fazer ou aulas para assistir, olhou-me nos olhos, avançou um braço, palma da mão para cima, e disse…

“- Estás a ver, Ricardo, esta é a minha mão esquerda…”

Avançou de seguida o outro braço, mão na mesma posição…

“- E esta é a minha mão direita…”

De seguida, levantou ambos os braços em direcção ao seu peito, unindo as palmas, e terminou…

“- E são ambas vossas para os próximos quatro dias”.

A cena pode parecer teatral, soar mesmo a algo de encenado, artificial. Mas não. Alfrendo era mesmo assim. Durante três dias tudo fez para que a nossa experiência damascena fosse inultrapassável, e conseguiu-o. Logo de seguida, pedimos-lhe para trocar algum dinheiro, porque só tinhamos Euros e moeda jordana. Pôs-me uma mão no ombro e logo deixou claro que no que tocava a sentido de hospitalidade não estava ali para brincar em serviço:

“- Ricardo, EU tenho dinheiro, o que siginifica que NÓS temos dinheiro, Ok?”

E partimos por ali afora, primeiro deixar as mochilas em casa dele, e logo para o centro histórico de Damasco. Táxis, sumos naturais, museus, comida… tudo ele foi pagando, repudiano os nossos crescentes pedidos para trocar dinheiro com um aceno de mão acompanhado de um sorriso. Muito mais tarde, depois de experimentarmos tudo o que de melhor Damasco poderia oferecer, conseguimos por fim que ele nos levasse uma casa de câmbio ilegal, onde negociou uma taxa de conversão incrivelmente simpática. Ao serão, foi quase preciso torturá-lo para o fazer aceitar o dinheiro de tudo o que ele tinha coberto durante o dia.

No segundo dia, continou a oferecer-nos a sua inestimável companhia e o seu saber sem fim. O mundo árabe não poderia ter um embaixador melhor. As horas passadas a caminhar pelas ruas de Damasco na sua companhia não serão esquecidas nunca. Alfrend ensinou-me mais sobre a sua história e cultura do que poderia alguma vez aprender através de leitura.

Alfrend tinha um problema, que o consumia, e que, imagino, o consumirá ainda mais nos dias que correm: não suportava ver sofrimento alheio. A cada pedinte dava qualquer coisa, e, quando não tinha mais para dar, ficava sinceramente triste, e dizia-nos…

“- Eu não posso ajudar todos, eu não posso ajudar todos”

E com isto entrava num silêncio pesado durante alguns minutos, em que o seu semblante se escurecia, até recuperar gradualmente algum ânimo. Lembro-me de um velhote cego que pedia nas escadas de uma passagem subterrânea, e de como Alfrend, depois de lhe colocar uma moeda na mão, lhe agarrou suavemente o pulso, afagando-lhe seguidamente o braço, como que a dizer:

“- Força, eu sei que a tua vida é madrasta, mas tu consegues…!”

Depois de cansativos dias a palmilhar os cantos de Damasco, os serões ficaram gravados na memória pelas gratificantes conversas que tivemos, sentados no chão, em redor de uma mesa repleta de petiscos preparados como do nada por este incansável anfitrião. O gás já faltava na Sìria por esta altura, e tudo tinha que ser preparado sem o auxilio de um fogão. Mas dia após dia, ao pequeno-almoço e à seia, Alfrendo sempre nos surpreendia com as delícias que conseguia extrair da cozinha.

Durante esses momentos compreendi que a grandeza de coração deste amigo era herdada de uma família plena de harmonia e bom-senso. Depois de ouvir algumas das estórias que contava sobre os seus pais, tornou-se evidente qual tinha sido a semente para a sua grande atitude perante a vida e perante os outros.

Naqueles dias a tensão crescia a olhos vistos. Havia já um esboço de guerra civil, se bem que limitado a áreas específicas. Todos os dias via a expressão angustiada de Alfrend, não querendo acreditar nas imagens que iam passando na Al-Jazira, assistindo ao colapso do mundo que o vira nascer e crescer. Mas hoje, desse passado que partiu para não mais voltar, já só restam cinzas. Damasco é cenário diário de uma violência sem fim, tornou-se uma cidade sitiada. Há pouco tempo, num contacto fugaz, quando interrogado sobre o que sentia mais falta dos tempos de normalidade que já eram, ele fez uma expressão, de como quem diz que quando nada se tem as coisas banais são as mais preciosas e disse:

“- O que eu gostava mesmo era de poder entrar no meu carro e conduzir, conduzir sem destino, livre de ir ao sabor do vento até onde desejar.”

Mas isso é uma coisa que ele não poderá fazer. Para já, o seu coração sem fim, levou-o para as fileiras dos voluntários que ajudam as vítimas da guerra. Uma posição perigosa, muito perigosa. E se um dia alguém me perguntar algo do género, do tipo “o que gostarias de poder fazer em relação à Síria”, acho que o queria mesmo era ter o privilégio de um dia dar de novo um grande abraço a este grande jovem homem. Com H grande mesmo.

 

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