Conheci-o em Yerevan. Já  tínhamos trocado umas mensagens. Era “couchsurfer” e solicitei-lhe guarida por um par de noites. Declinou, por alguma razão que só ele saberá.  Mais tarde,  quando já na sua cidade lhe tornei a escrever, pedindo desta feita um pouco de companhia, aceitou. Entretanto tinha acabado por ser acolhido por um casal de norte-americanos, gente boa que me recebeu generosamente. Mas quando se fica com “expats” há sempre algo que se sente fora do lugar. É preciso mais, alguém que viva a cultura local e que o faça de forma genética, que a aprenda dos seus pais, dos seus avós, que lhe esteja no sangue. A Angela e o Jarred disseram-me onde fazer as minhas compras, mas a conta do supermercado foi mais alta do que em Portugal, isto numa cidade onde um maço de tabaco custava 50 cêntimos. Porquê? Porque era a loja mais fina da cidade, onde os estrangeiros e outros abonados abastecem as suas cozinhas com produtos muito gourmet. Em suma, os meus amigos levavam uma vida de estrangeiro, e não era aquilo que eu procurava. Nunca é. E foi para tentar colmatar esta ausência de contacto com a realidade arménia que escrevi aquela mensagem ao Artyon.

Encontrámo-nos ao final da tarde, na esplanada de um café posh no centro de Yerevan. Quando o convidei a sentar-se, senti logo uma irritação muda, uma atitude contrariada de quem não gosta mesmo nada de o ser. Disse logo ao empregado de mesa que não queria nada, e de mim tratou a seguir:  “- Pensava que nos íamos encontrar para passear um pouco pela cidade”. A coisa não começava bem. Aplaquei-lhe a impertinência explicando que estava ali porque era o único local onde podia usar Internet com o meu computador, e que só o tinha convidado a sentar por uma questão de cortesia. Disse-lhe que podia pagar já a despesa e que a passeata não estava em questão.

O que se seguiu foi pura magia. Levado pela mão desta verdadeira enciclopédia humana, penetrei na mais profunda Yerevan, numa verdadeira experiência multi-sensorial que se arrastou durante quatro magníficas horas. Primeiro, a “tour” básica. Mostrou-me os pontos essenciais do centro da capital arménia, explicando-os e revelando uma profunda erudição, apenas ao alcance das mentes mais brilhantes. Quando lhe perguntei porque é que não existia um evidente centro histórico e porquê que não se via nada de antigo na cidade, Artyon levantou um dedo sabedor, exclamando “- Ah! Não é bem assim. É necessário é saber para onde olhar”.

Dito isto, faz-me um gesto para o seguir e conduz-me por ruas e becos onde eu nunca tinha estado, apesar de ter passado dois dias inteiros a esquadrinhar aquelas paragens. E lá estavam eles, os raros – mas existentes – testemunhos da antiga Yerevan. De novo, para cada um, o competente cicerone procedeu a um enquadramento completo, chegando a explicar a origem dos materiais de construção e da mão-de-obra, como foi o caso do prédio dos anos 40 construído por prisioneiros de guerra alemães.

Visto que estava o básico de Yerevan o amigo arménio decidiu que estava na hora de me mostrar alguns aspectos menos evidentes do palpitar da cidade. Depois de tanto explorar aqueles quarteirões – e não consta que o meu olhar seja distraído – não me tinha apercebido da existência daquela instituição que são os pátios de Yerevan. Os blocos residenciais são construídos em quadrado, e no seu interior existe uma micro-urbe onde de tudo se encontra. Naqueles 60 ou 70 metros quadrados a comunidade tem geralmente ao seu dispor um pequeno jardim com parque para a pequenada, uma mercearia, uma loja de artigos variados, os seus contentores de lixo e uma padaria. É uma variante do tradicional páteo lisboeta, tão bem caracterizado no famoso filme O Páteo das Cantigas. Mas aqui numa outra escalada, com dezenas de famílias a partilharem o espaço, potenciando o sentido de comunidade, desenvolvendo laços entre si.

Fizemos uma breve pausa num desses pátios. O Artyon fazia questão de me introduzir à doçaria arménia, e uma padaria aberta era algo bom demais para ser desperdiçado. Sob o olhar curioso da padeira, explicou-me cada um dos bolos – e eram muitos – disponíveis na montra. Terminada a “aula”, perguntou-me: “- E então, qual é que queres experimentar?”. E ali estava eu, de olhos muito abertos, a gula estimulada até aos píncaros, sem saber o que dizer… e tudo o que me saiu foi…. “- Eh pá, todos!”. Mas não era possível. Simplesmente não seria humanamente possível, mesmo para um guloso convicto como eu. Comecei então por um “ecclair”, seguido de duas ou três especialidades locais. Uma maravilha total. Rendido à impossibilidade de continuar a debulhar bolos aquela velocidade, encontrei uma solução de consenso: trouxe uma caixa cheia com outras variedades, para comer antes do deitar e no dia seguinte ao pequeno-almoço.  Devo confessar que de todos, foi o “ecclair” que me ficou na memória. Nunca esquecerei a cobertura cremosa e doce, a massa fofa de uma frescura só possível num bolo acabado de fazer, e o recheio, ò senhores, aquele recheio….

Aproximava-se a hora de jantar, e, ar solene, o Artyon diz que gostava de me convidar para a refeição. Pergunta-me que tipo de comida e de ambiente que eu gostaria. Respondo-lhe que, como sempre, gosto de me sentar na tasca mais rasca que for possível encontrar. Diz-me a experiência que é nesses ambientes que vou conseguir aprender algo de mais significativo sobre o povo e o país que visito. Sem falar do valor da cozinha popular e dos preços agradavelmente baixos que se pagam.

Andamos um pouco, cruzamos uma esquina e ele indica-me uma tasquinha de grelhados numa cave. Uma matrona de avental mostra-nos o que está a preparar: frangos cortados em pedaços que vão alourando sobre as brasas, enquanto num tabuleiro enorme há batatas bem assadinhas. Rendo-me logo! É aquilo mesmo! Sentamo-nos numa mesa, pedimos cervejas locais e esperamos que nos seja servida a carne acabadinha de assar. Será partilhando aquela refeição, acompanhada com pão arménio cozido para a ocasião, que aprendo um pouco mais sobre o meu companheiro. É meio-arménio, sendo a outra metade russa. Não de Moscovo ou de São Petersburgo, mas da Rússia profunda, daquela que dista tanto da sua capital como Lisboa. Os seus antepassados arménios tiveram que fugir, escapando aos massacres cometidos pelos otomanos em 1915. Artyon explica-me o que sucedeu nesse remoto ano. Era algo que me tinha despertado a curiosidade e que os bons dos americanos não me souberam elucidar. Mas agora tenho ali à minha disposição aquela inesgotável fonte de conhecimento que se voluntaria para me esclarecer. Cerveja após cerveja, já muito cheio, vou conversando com Artyon. Falamos daquilo que se fala nestas ocasiões: de História e de sociedade, de viagens feitas e por fazer, de experiências de Couchsurfing.

Tenho que me ir embora. Os meus anfitriões aguardam-me e não será boa educação chegar demasiado tarde a casa. Despeço-me de Artyon com um sentido aperto de mão. Dele sei apenas que voltou para a Rússia que o viu nascer. Despediu-se do banco para o qual trabalhava em Yerevan.

 

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