Andava por Cuba e estava a passar uns dias em Santa Clara. Gostei logo desta cidade, do seu pequeno caos humano, do comércio intenso, da ausência de turistas fora das grandes atracções, quase todas elas associadas a Che Guevara. Santa Clara é a cidade de Che. Porque foi aqui que ele brilhou mais alto na sua luta pela Revolução, derrotando um forte contingente de tropas governamentais transportadas por um comboio blindado numa altura em que aquela unidade inimiga tinha mesmo de ser detida.

Estava eu portanto no segundo dia em Santa Clara. Eram umas quatro da tarde. Comprei o Granma (jornal oficial do Partido Comunista Cubano) a um velhote e subi à esplanada que dava para a praça principal da cidade, a Plaza Vidal. Tinha descoberto que ali a clientela era cem por cento local e que com jeito se comprava uns copos de rum ao preço real.

Dirigi-me ao balcão, comprei a bebida. Desta vez ainda foi mais barato do que na véspera. Três pesos cubanos, o que equivale a nove cêntimos de Euro. Sentei-me num murinho, porque as mesas estavam todas tomadas. Era Sábado, os cubanos estavam na rua. Observei as pessoas em redor. Muitas delas já davam sinais de estarem tocadas pelo álcool. Era uma interessante combinação: homens entre amigos, famílias, personagens com pouco em comum ali juntas. Um senhor de aspecto digno, com uma farta barba, cuja imagem se encontrava no meu imaginário com a de um velho comandante de navio, ia pagando rum a um e a outro que se aproximasse para dois dedos de conversa.

Dei uma vista de olhos pelo jornal, mas o que me interessava naquela tarde eram as pessoas. Fui bebendo lentamente e vendo. Até que se me acabou o rum e fiquei com o copo vazio, a dançar-me nos dedos. Estava mortinho para conhecer gente. Olhei umas quantas vezes, discretamente, para o “lobo do mar”, procurando ver um sinal de interesse que nunca chegou. E estava isto quando do meu lado esquerdo um cubano me acena com uma garrafinha de água plena de um líquido que seria certamente outra coisa… o gesto era inconfundível: “Queres uma bebida, ofereço eu?”. Claro que sim.

Levantei-me, com o maior sorriso que consigo fazer, e fui lá, de copo estendido. Ele atestou-me de rum, uma quantidade equivalente a umas quatro doses regulares, e enquanto o fazia perguntou-me de onde era. De Portugal. Palavras mágicas. Como tantos outros cubanos o Carlos Rafael tinha estado em Angola. Ao contrário de tantos outros, ou talvez pelo acumular de copos, apenas se lembrava de uma palavra ou de outra, mas logo me convidou a sentar à sua mesa. Estava com o Mário, um amigo de expressão simpática.

Copo atrás de copo fomos conversando. E como é fácil conversar com um cubano. A língua não é problema. O portuñol funciona a cem por cento. Não há assunto que não se possa debater por causa da diferença de línguas. Assim fomos falando das vidas aqui e lá, de impressões de viagem, de Cuba e do futuro. Mas também do passado. Dos dias de África, quando Carlos Rafael, tal como centenas de milhares de outros jovens cubanos foi enviado para combater a UNITA e os Sul-Africanos.

O meu novo amigo, ao contrário de muitos que partiram na jornada transatlântica, regressou inteiro. Não ter andado no mato ajudou. Foi piloto, de Mig-23. Muitos dos seus camaradas perderam-se, os seus aviões abatidos por caças inimigos, por armas anti-aéreas, por deficiências mecânicas, por acidentes. Mas ele regressou. Na sua passagem pela força aérea chegou ao posto de tenente-coronel. Uma patente elevada. E agora, o que é que faz na vida? Ah, trabalha na construção civil. Vai-me dizendo que no seu país não há grandes horizontes. No seu caso pessoal, talvez arranjasse um trabalho como piloto, mas seria mais mal pago do que a soldar. E então solda.

Falamos sobre o capitão Peralta, um oficial cubano que foi capturado na Guiné pelas nossas tropas, antes da independência daquele país. Foi um caso único, mas teve algumas implicações políticas. Provou a existência de conselheiros militares estrangeiros no nosso território. Dizem-me eles que agora é general, o general Peralta, e está bem na vida. Dizem-me que esteve dez anos preso pelos portugueses, que veio muito mal tratado. O que não pode ser. Quer dizer, os dez anos.

Por duas vezes Carlos Rafael levantou-se para atestar a sua garrafa de plástico. Sempre a encher-me o copo. E o seu, e o de Mário. Às tantas chegou à mesa um senhor que vendia amendoins, que em Cuba geralmente vêm nuns cones de papel enrolado. Ele cmprou uma mão cheia de pacotes, deu-me três, e não aceitou um tostão. Foi a primeira vez – e a única – que alguém me ofereceu alguma coisa em Cuba. Aliás, naquela tarde o Carlos ofereceu tudo… a bebida, os amendoins… e a sua amizade fugaz. O Mário contou-me que ele andava deprimido, estava a atravessar uma fase pós-divórcio, ao que ele acenava com a cabeça, confirmando a situação.

Falámos do Natal que se aproximava. De como se comemorava em Cuba e em Portugal. Foi então que trocámos moradas e números de telefone. Para me compensar de neste ano passar a consoada pela primeira vez afastado da família, Carlos Rafael prometia que me ligaria para me desejar um feliz Natal.

Já escurecia, tinha-se levantado um vento desagradável. Os dois homens convidaram para um baile cubano. Claro, porque não. Estava a adorar cada instante daquela tarde. E lá fomos. Não era longe, havia um muro, uma porta discreta e era por ali que se entrava. Fui encontrar um recinto ao ar livre cheio de uma multidão que dançava com gosto. Desta vez paguei eu. Seis cêntimos de Euro por pessoa pela entrada. E depois, fui-me apagando. Desta última parte fica a memória de mais um copo, a música a ressoar, os corpos embalados pelo ritmo, as amigas deles que me foram apresentadas (não, não eram mesmo nada jeitosas). Depois, acordei, já no dia seguinte, muito cedo, a tempo de seguir para a estação de autocarros. Eles tinham tido que despertar a meio da noite para ir para o trabalho.

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Um Mig-23 cubano idêntico ao que Carlos Rafael pilotou em Angola

 

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