MIA, aliás, M.I.A., aliás, Missing in Action. Designação empregue na língua inglesa para os combatentes desaparecidos em acção, cujos corpos nunca foram recuperados e o seu destino final se manteve desconhecido para sempre. No Vietname foram listados 1350 nomes. Homens que nunca morreram. Oficialmente. Mas nunca mais foram vistos. Muitos foram na realidade capturados e mantidos em cativeiro após o final da guerra. Sobre eles fizeram-se filmes, mais ou menos fantásticos, jogando com o papel que estes MIA desempenharam no imaginário norte-americano nas décadas que se seguiram à guerra do Vietname.
Um excelente artigo, em inglês sobre este assunto

A estória passa-se em Saigão. Saio do hostel em busca de um local onde trocar dinheiro. Logo ali vejo uma mulher jovem sentada numa mesa, à porta de uma espécie de pensão, com cartazes que anunciam o câmbio. Pergunto-lhe as condições, ela escreve-me num papel os valores. São aceitáveis. Regresso ao meu quarto e volto passado um bocado com o numerário. Enquanto ela conta as notas, vejo um homem aproximar-se, rua abaixo, e começar a falar com ela, em vietnamita. Olho-o. É um branco, alto, não, altíssimo. Magro, de pele muito clara, cabelo já branco e olhos claros. Veste-se como um vietnamita, fala como um. Seria um, não fosse o seu aspecto claramente ocidental. E nisto dou-me conta: ele é aquilo que eu imaginaria ser um MIA. Um norte-americano mantido em cativeiro, forçado pelas circunstâncias a uma metamorfose cultural.

Entretanto a mulher dos câmbios pega numa motorizada, com o meu dinheiro, e diz que volta já, que tem que ir ao outro escritório fazer a troca. O americano fica a falar comigo. Diz-me que está a escrever um livro e que há meses que trabalha com ela. Montam-se na scooter e saem por ai, por aldeias e lugares, onde ele procura velhos combatentes –  dos dois lados – que se prestem a partilhar memórias e pontos de vista. Conversamos por mais um bocado, e ele tem que se ir embora. Diz que não se está a sentir bem. Que anda há umas semanas com uma infecção nos pulmões. Convido-o a aparecer mais tarde no meu hostel para uma bebida, e penso que nunca aparecerá.

Mas estou enganado. A meio da tarde batem-me à porta. Tenho uma visita. Passamos várias horas a debater História. A tese dele é que a Guerra do Vietname não se iniciou com a chegada das primeiras tropas de combate dos EUA mas muito antes, ainda no tempo dos franceses, antes mesmo da II Guerra Mundial, quando uma série de benefícios financeiros trouxeram as primeiras multinacionais de origem norte-americana para o Vietname. Conta-me que não chegou a participar na guerra, por uma unha negra. Era piloto de helicópteros. Recebeu a formação necessária para manobrar esses aparelhos sobre a selva vietnamita. Mas quando estava na Tailândia no seu período de aclimatação, a guerra acabou. Assim, sem mais nem menos. Mas sentiu-se preso à região e o elo era tão forte que o trouxe uma e outra vez para estas paragens. Aprendeu tailandês e, depois, com a abertura do Vietname, decidiu concretizar o seu projecto. Para melhor poder pesquisar aprendeu também vietnamita.

Nas suas andanças viu-se duas vezes em apuros. Numa ocasião, entrando numa aldeia, viu um ocidental, entre os locais. Acredita que viu um genuíno MIA, passados estes anos todos ainda ali, despojado da sua família, uma vida capturada, em toda a amplitude do conceito. Sentiu que tinha visto algo que não devia ter visto, receou por si próprio. Teve o sangue-frio de fingir que não tinha reparado em nada de extraordinário e sobreviveu aquele dia. Noutra altura foi convidado para uma aldeia, e quando lá chegou sentiu-se numa armadilha. Não passou de um susto. Mas foi um forte susto. Os aldeões levaram-no a crer que não sairia dali vivo. Que o iriam torturar e depois fazê-lo desaparecer. Depois de um mau bocado gritaram-lhe para desaparecer dali, para andar e não olhar para trás, para sair das suas vidas para sempre.

Deu-me um gosto imenso ouvir este homem. Escutar as suas aventuras, debater as suas ideias, contribuir com algo novo. Como português as minhas opiniões interessavam-lhe especialmente. Por causa da nossa presença em África, da nossa própria guerra. Por fim despediu-se, falando de novo no seu estado de saúde. Estendeu-me um cartão com o seu nome e um endereço de e-mail. Mais tarde, passado um par de meses, enviei-lhe uma mensagem. Ficou sem resposta.

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