Ali, ou Muhamed, ou Muhamed Ali, como cada um lhe quiser chamar, com a liberdade que ele próprio deixa aos que conhece, é um homem jovem, ainda não chegou aos trinta anos. Nasceu em Mardin, uma cidade pitoresca, que começa agora a despertar para o turismo doméstico no Curdistão Turco. É filho de um pai árabe e de uma mãe curda, mas é cidadão turco. Vive a poucos quilómetros da Síria e a um pouco mais, mas não muito, do Iraque. Mas é turco.

Hoje é o gerente de um hotel com filosofia de hostel na parte antiga de Mardin. A cidade nova fica distante, a cerca de três quilómetros, e sente-se como um outro mundo. Ali é que se vive, naquela espécie de medina, habitada sobretudo pelos árabes da comunidade, porque lá para baixo, para os bairros novos, feitos de torres residenciais, habitam essencialmente os curdos. Turcos há poucos. Mas foi por eles que Ali lutou, integrado numa unidade de elite que perseguia os guerrilheiros do PPK, que alegadamente lutavam pelos direitos da minoria curda na Turquia.

Aos dezoito anos foi recrutado, recebeu formação militar intensiva, e juntamente com noventa e nove camaradas palmilhou os montes áridos do Curdistão. Diz-me que os conhece a todos, que não falhou um. Carregado com a arma individual, o colete à prova de bala, os carregadores extra, a mochila carregada de mantimentos e equipamento militar. Um Hércules de camuflado, com 35 kilos sobre o seu corpo. Quando a comissão terminou, diz-me, dos cem restavam oitenta. Vinte dos seus tombaram sob os ataques do inimigo, por vezes indirectos, traiçoeiros. Como aquele que matou um dos seus, uma mina manhosa que o fez voar pelos ares, a poucos metros do meu amigo. Mas os homens do PPK pagaram caro a ousadia. Diz-me que ao longo da comissão, a sua unidade abateu mais de cinquenta “terroristas”.

Ali não tem convicções, e não me atrevo a ir mais fundo na conversa. Para ele, era uma questão de fazer o que tinha que fazer. Sem hipóteses. Um árabe e curdo, matando curdos, em nome de uma Turquia que pouco lhe diz. Recorde-se que os Curdos são o povo mais numeroso do mundo sem uma Nação física. São cerca de trinta milhões, espalhados pela Turquia, Síria, Irão e Iraque. Até 1999, quando Abdullah Ocalan foi capturado, de forma completamente ilegal e à margem do Direito Internacional, a guerra no Curdistão Turco era intensa e generalizada. Depois, acalmou. Mas não sem antes marcar Muhamed Ali, o Curdo.

Ali é um rapaz alto e magro, de sorriso fácil. Recebeu-me no hotel, depois, encontrando-o casualmente nas ruas de Mardin, convidou-me a acompanhá-lo a uma “casa da cultura”. Não percebi bem ao que ia, mas seguiu-o. À chegada ao que parecia uma casa familiar fui logo convidado para um chá e durante quase uma hora ouvi-os conversar sem perceber nada, mas deliciado pela experiência. Discutiam a abertura de um café naquele espaço, uma casa tradicional da região. A dinâmica evidente de Ali estava certamente por detrás daquele projecto. É evidente que se sente isolado em Mardin, que aquele pequeno universo é demasiado restrito para a sua energia. Sei que sonha com o mundo.

Descubro que um amigo meu, norte-americano, ficou hospedado no mesmo hotel há pouco mais de um mês. Ao serão, Ali, excitado, mostra-mo no seu Facebook. No dia seguinte, serve-me o pequeno-almoço, que tomo na companhia de uma mulher basca que viaja sozinha. De seguida ele convida-nos a visitar o terraço do edifício. Sentamo-nos ao sol, três cúmplices daquela loucura que é querer conhecer o mundo e palmilhá-lo, todo.

Mais tarde vou receber uma prova do solidez do carácter de Ali, quando acreditando que um carteirista me aliviou do tablet, já em Tatvan recebo uma mensagem deste amigo dizendo que me esqueci dele na recepção do hotel. Arranjos feitos, expediu-o logo no dia seguinte e em vinte e quatro horas o equipamento estava de novo nas minhas mãos. Tudo o que ele teria que fazer era manter-se calado, mas não, escolheu ser honesto e com isso ganhou um amigo. Eu.

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