Vocês não vão acreditar onde conheci esta gente, porque eu próprio tive alguma dificuldade em perceber que o que estava a ouvir ali, naquele fim do mundo, era português. Estava a atravessar a América Central, tinha arranjado uma caminha num estabelecimento de descrição complicada, em El Remate, Guatemala.

El Remate fica a meio caminho entre a muito turística Flores e as não menos turísticas ruínas mais de Tikal. Mas é ainda um lugarejo genuíno, com muito poucos estrangeiros e um verdadeiro palpitar guatemalteco. Tinha chegado, caminhei um pouco em busca de um sítio para ficar, encontrei aquele.

Aquilo era uma construção de madeira, colocada sobre o café da família, um espaço onde se acedia a partir do piso térreo por uma escada que dava para uma zona com 4 ou 5 camas alinhadas. Não havia portas, lá em baixo nem sequer havia paredes e no quarto não existiam janelas.

Até ao serão, deliciei-me com o cenário. Fui dar uma volta. Regressei para o pôr-do-sol, perguntei se se podia comer, quanto custava. Outros hóspedes sentavam-se à mesa, comunitária. À minha frente um casalinho de putos de uns dezoito anos falavam, muito baixinho… em português. Ora ora… mas o que temos aqui….

Fiquei caladinho, a apreciar a situação. Usufruindo daquele privilégio de entender sem ninguém saber que entendia. Valeu-me de pouco porque não ouvi nada de interessante. A conversa andava em redor da refeição e dali não saiu. Quem saiu fui eu, que depois de comer fui esticar um pouco as pernas.

Ao regressar, os jovens portugueses estavam sentados à porta a ver o lago e quando os cumprimentei com um “Boa noite, tudo bem”, ficaram com os queixos bem caídos.

Sentei-me com eles, foram feitas as apresentações e aqui fica um mea culpa, porque o Ricardo e a Patrícia podem bem não o ser. Esta memória, esta maldita memória. Talvez ela fosse Sofia em vez de Patrícia, talvez não. Talvez ele não fosse Ricardo, mas acho que não me ia esquecer do meu próprio nome. Seja como for, vou respeitar o que sinto lá no fundo deste túnel da memória, por vezes tão escuro. Que fiquem como Ricardo e Patrícia.

E portanto, o Ricardo e a Patrícia tinham tirado um ano das suas vidas. Para viajar, antes de mais nada. Antes de um curso universitário, de um trabalho, de uma carreira profissional. Um ano para atravessar a América Latina, de ponta a ponta. Estavam portanto mais ou menos no início da aventura, iam dirigir-se para sul, de onde eu vinha. Fazíamos caminhos inversos e pude dar-lhes uma série de conselhos, ideias, dicas e informações sobre as paragens por onde tinha passado: Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador.

A conversa estava boa, porque entrou pela noite dentro, interrompendo-se apenas quando algum irado hóspede mandou uns murros na parede, manifestando desagrado pelo som das nossas vozes. Deu para muito mesmo assim. Deu para me admirar da coragem destes putos. Se não tinham dezoito aninhos teriam dezanove. Arrancaram de Cascais e agora estavam ali. Saíram de um mundo conhecido, de uma área de conforto evidente, para se lançarem no desconhecido, num universo distante. Apenas porque sim. Pela aventura, para conhecer mundo, para viver. E logo durante um ano inteiro.

Enquanto a maioria dos seus pares se senta nos cafés da sua terra lamentando-se sobre a falta de oportunidades e de quão injusta é a sua pobre vida, o Ricardo e a Patrícia criaram a sua oportunidade e fizeram da pobre uma rica vida. Só porque quiseram. Dinheiro? Com um orçamento de 5 Euros por dia não é necessário ajudas. Uma época de trabalho árduo gera a soma necessária para cruzar mundo durante um ano.

Tenho pena de não ter ficado com um contacto, mas quiçá será melhor assim, para além das barreiras do costume: Tens “Face”? E-mail? Se calhar é preferível deixar o pensamento derivar de tempos a tempos para eles, pensar onde estarão neste momento. Apesar de a mim me parecer há uma eternidade, ainda só se passaram oito meses. Se tudo estiver a correr normalmente ainda andarão pelas Américas, talvez no Chile, sei lá.

Quase na despedida perguntaram se me podiam entrevistar. Fiquei curioso. Como assim, uma entrevista? E era assim… ao longo da sua deambulação tinham este projecto maluco de colocar uma série de perguntas a pessoas que encontrassem, sobre coisas da vida, e filmar. E foi assim, que nas margens do lago na Guatemala profunda fui entrevistado, como Cruzamundos, falando para um telemóvel enquanto outro recolhia a imagem e uma lanterna fazia as vezes de projector de filmagens. Fabuloso, no local especial, na companhia de gente extraordinária.

 

3 COMENTÁRIOS

  1. Bom dia. Gostaria de saber se por volta de Maio e Junho ira haver voos para o Canada mas de Lisboa. Isto porque gostaria de ir passar duas semanas ao Quebec ou a outra cidade para fotografar belisimas paisagens naturais. Sendo eu fotografo. Aguardo o vosso email e muito obrigado.

    • Oi Edgar… nos últimos tempos não me recordo de me terem passado pelos olhos promoções para o Canadá. Um destino interessante que por vezes surge, com partidas da Irlanda, é a Terra Nova.

Responder a Edgar Freire Cancelar resposta

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui