Talvez lenda, talvez facto: a palavra corrente por aqui é que uma das consequências do longo encerramento das fronteiras na antiga Checoslováquia, foi o desenvolvimento de um apurado gosto entre os checos pela caminhada. A verdade é que por aqui é possível nas papelarias mapas de detalhe de qualquer região da República Checa. Por esse campo fora, sobretudo nos fins-de-semana mais solarengos, os trilhos criteriosamente marcados enchem-se de caminhantes. Foi em meados do século passado que o clube de caminhantes da Checoslováquia inventariou e assinalou uma infinidade de trilhos, atribuindo-lhes quatro cores caracteristicas: vermelho, verde, azul e amarelo.

Torna-se assim fácil para o amante da natureza e da marcha passar um dia em cheio, tendo como única dificuldade a selecção do percurso, de entre a enorme variedade disponível nesses mapas-roteiros que se compram por tuta e meio em tanto posto de vendas.

Para este Domingo escolhi Cesky Raj, que significa “paraíso checo”. É uma região montanhosa, pejada de antigos castelos e ruínas de fortificações ainda mais antigas, com trilhos que se desdobram por entre impressionantes formações rochosas.

Um dos melhores acessos à montanha faz-se a partir da pequena cidade de Turnov, para a qual me dirigi pela manhãzinha, apanhando um autocarro na estação central de Praga. Na companhia de três amigos a suave ascenção iniciou-se por entre a bruma matinal, que insistiu em nos acompanhar até meio da tarde. O carácter outonal da paisagem está bem marcado pelas tons quentes do ouro das folhas que mesmo à nossa frente se desprendem das árvores. Aos poucos as últimas casas que pintalgam a orla da cidade ficam para trás.

Subitamente deparamo-nos com um misterioso conjunto de estátuas talhadas em madeira. O lugar exala um misticismo reforçado pela neblina que nos envolve. Dir-se-ia um sacro local de culto, mas afinal as figuras foram ali colocadas por um grupo de estudantes de Belas Artes. Logo ali à frente encontra-se uma torre de observação imponente, junto à qual se reunem caminhantes de todas as idades. Caso para dizer, sem exagero, dos 7 aos 77 anos. Há mesas em rija madeira e um ponto de vendas de refrescos. Também nós, depois do deslumbre da vista lá do topo, fazemos uma pequena pausa por ali.

A viagem prossegue ate Valdstejn, um castelo cuja visita dispensamos. Daí em diante entramos num caminho que oferece vistas espectaculares sobre as famosas formações rochosas. Muitos checos aproveitam o Domingo que se vai tornando solarengo para um dia ao ar livre. Os trilhos estão cheios de pessoas que tranquilamente disfrutam do que a Natureza tem para lhes oferecer. Nisto, estamos já em Hruba Skála, que planeávamos visitar. Infelizmente uma festa privada não permite a entrada de simples turistas nos terrenos desta castelo tornado palácio, numa bizarra sobreposição de estilo e função. Ali ao lado, um hotel de luxo permanece solene, como que desconfiado da baixa estirpe das vizinhas barracas de comes e bebes, logo defronte, do outro lado do parque de estacionamento.

A partir daqui deixamos de nos cruzar com colegas de passeio. Entramos na última fase do nosso percurso, já no troço descendente, deixando a montanha para trás. O que nos rodeia agora é uma impressionante floreste de coníferas altíssimas, com frequentes rochedos incorporados, que nos espreitam de um lado e de outro. Passamos junto a imponentes prados de vegetação bem verde. Aproximamo-nos de um dos momentos altos do dia: junto a um lago de consideráveis dimensões ergue-se uma parede de rocha à qual trepo, para me deparar com uma paisagem magnífica. O sol está já baixo e todo o cenário se encontra banhado por uma luz dourada que intensifica ainda mais as tonalidades da folhagem decadente. Na calmaria das águas, um ou outro peixe salta, em busca de um fugaz pedaço de alimento, quebrando o silêncio envolvento com esses casuais “splashes”.

O passeio está a chegar ao fim. Já não haverá tempo para visitar o castelo de Trosky, mas conseguimos avistá-lo ao longo, majestoso, assustador. Atravessamos um lugarejo constituido por casas tradicionais, cada uma mais espectacular que a anterior. Parece que remontam aos séculos XVIII e XIX. Algumas têm ainda nos terrenos adjacentes velhos instrumentos agrícolas e estruturas de apoio ao abandono. Por todo o lado existem macieiras, que nos oferecem uma infinita quantidade das maçãs mais suculentas que já experimentei: vermelhinhas, doces, saborosas, sumarentas. E com isto a noite quase que caiu. Chegamos ao troço final, já perto da estação de comboios, quase em passo de corrida. Nos campos, ali planos, a neblina nocturna desperta, levantando-se fantasmagoricamente, rodeando-nos como um nevoeiro até ao peito.

Pela frente teremos uma hora de espera num velho apeadeiro, que aproveitaremos da melhor maneira, dançando ao som de telemóvel, revivendo as aventuras do dia, tagarelando por vezes sem sentido. Foi um longo dia que chega agora ao fim.

3 COMENTÁRIOS

  1. Como é viajar tanto?
    Vi algumas fotos de suas viagens. Você é bom fotógrafo.
    Sou fotógrafo, mas trabalho tanto com outras coisas que quase não dá tempo para parar e fazer fotos de paisagens assim como as suas.
    Me dê um retorno. Sou estudante de Comércio Exterior e logo logo vou embarcar nessa de viajar mundo afora vendendo coisas do Brasil. Aí, quem sabe dá para eu fotografar algumas maravilhas por aí, né.

    Meu e-mail é [email protected]

    Aguardo um retorno. Estou curioso.

    Até mais.

  2. Olá, Ricardo.

    Deixo aqui uma mensagem de agradecimento e de surpresa por esta maravilhosa viagem a Praga. Há muito tempo que sonho ir a Praga e nunca ocorreu fazê-lo, mas depois de todas as dicas que deixaste no teu site, tudo tornou-se mais fácil.

    Parabéns por tudo e continuação de um bom trabalho, quer com o site e com o blog, como também com o teu projecto Chech Fun Fan.

    Tânia (Wavey – DVDMania)

  3. Adoto Praga. Obrigado pelas suas impressões de viagem. (Mas… Citação de Ciberdúvidas:
    É mais que evidente que solarengo não se deve empregar com o sentido de ensolarado, porque têm significações diferentes:
    a) Solarengo é um adje(c)tivo que significa «relativo ou pertencente a um solar»; e um solar é uma casa ou herdade nobre. Camilo Castelo Branco escreveu assim em “Anos de Prosa”, cap. 3:
    «O pai do mordomo tinha feito extraordinárias despesas… na reedificação da capela solarenga.»
    b) Ensolarado é também um adje(c)tivo, mas que quer dizer coisa muito diferente, pois significa «iluminado pelo sol, que está ao sol, soalheiro; luminoso». É assim que o registam os principais dicionários da língua portuguesa.
    Fica assim claro que é um erro crasso empregarmos solarengo com o sentido de ensolarado ou soalheiro.
    Como é que se explica, então, a abonação do Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa? Enfim, é mais um dos muitos disparates que lá se registam!…

    2. Ainda sobre o vocábulo soalheiro. Podemo-lo empregar como substantivo ou como adje(c)tivo.
    Como substantivo, entre os vários significados, tem o de lugar exposto ao sol :
    a) «No Inverno o soalheiro do meu quintal é tão agradável!…»
    b) Como adje(c)tivo, significa que tem sol, exposto ao sol:
    c) «Este lugar é muito soalheiro.»
    d) «Que bela manhã soalheira nós tivemos ontem!»
    e) «E a quinta-feira passada! Foi um dia tão soalheiro!»
    Aqui temos, nas frases c) e d), o adje(c)tivo soalheiro referido a tempo: manhã e dia.

    José Neves Henriques)

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