O Ronny cruzou a minha vida em Cartagena, Colômbia. Fevereiro de 2016. Eu estava na cama do dormitório do hostel a ler qualquer coisa, o tipo entrou, foi remexer num armário ali ao lado que lhe servia de sala de arrumação para tudo o que possuía na vida, cumprimentou-me, eu devolvi-lhe o “buenas tardes”, mas ele não se satisfez, chegou-se mais perto e estendeu-me a mão, apresentou-se.

Mais tarde, ao serão, ouvi-o à conversa com alguém. Ele na sua língua nativa, o castelhano, e o “alguém” tentando manter o diálogo, numa língua que não era a sua. Ao fim de um bocado decidi investigar, desci lá abaixo. Assim que me viu surgir das escadas, convidou-me para me sentar com eles.

Os outros eram um casalinho alemão, muito jovem, acabado de chegar à Colômbia. Ajudei um pouco, traduzido nos dois sentidos, de espanhol para inglês e vice-versa. Depois apareceu outro alemão, com quem viria a construir uma amizade que ainda dura. E um brasileiro com quem, num desafio aos intentos do famigerado acordo ortográfico, decidi de mútuo acordo que seria melhor conversar em inglês. Afinal compreendia-o melhor assim e o mesmo se passava com ele. Mas adiante… os convivas chegaram e foram, às tantas o brasileiro foi jantar com o Ronny. O casalinho foi-se deitar. O alemão saiu, para a vida nocturna, galdério. Os outros dois regressaram do jantar, o colombiano já um bocado “alegre”. Como estava eu, que durante este tempo fui esvaziando cerveja atrás de cerveja.

E às tantas, estava eu e o Ronny na mesa e foi então que a conversa se tornou mais pessoal. O Ronny parece um puto de vinte e tal anos mas já vai quase nos quarenta. Veio de um lugar qualquer na região de Cali. Decidiu vir para Cartagena quando lhe disseram que era impossível viver por aqui porque era tudo caríssimo. Foi o suficiente para ele fazer o que aprendeu: transformar tudo o que é negativo em positivo. Pois se tudo era caríssimo ele poderia cobrar um bom preço pelo que viesse a fazer. Tornou-se cabeleireiro.

Trabalha no prédio do lado, que pertence à mesma proprietária deste hostel e do hostel a seguir. Trabalha lá e dorme lá, mesmo ali, no salão. Também pode passar a noite no hostel, mas nesse caso a dona desconta-lhe um valor do ordenado, mesmo que de qualquer modo ele durma apenas na rede esticada no páteo. Diz que quando conhece pessoal estrangeiro entretém-se à conversa e fica por aqui. Lá terá que pagar.

Falamos do poder da energia positiva. Conta-me que já sofreu muito, repudiado pelo pai, desprezado pela família. Navegou pelas trevas até ver a luz ao fundo do túnel. Sem a mãozinha da suspeita do costume, a religião. Simplesmente encontrou as suas soluções e aprendeu a transformar tudo o que lhe toca em algum de bom. Talvez venha o dia em que isso não seja possível, mas por agora, garante-me, qualquer coisa que lhe aconteça, qualquer notícia potencialmente má que receba, pega, enrola, e como num passe de mágica, devolve ao seu mundo como um elemento positivo.

Com as pessoas faz o mesmo e exemplifica-me de forma bem pessoal: relembra-me como depois de o ter cumprimentado, à tarde, baixei os olhos para o meu livro. Se ele não tivesse aplicado a sua energia positiva, aproximando-se,  apresentando-se, e depois, mais tarde, convidando-me para a mesa, não estaríamos agora ali, unidos por uma amizade fugaz, e eu não lhe teria encomendado um corte de cabelo para o dia seguinte. Teria perdido isso tudo.

E a conversa continuou, com mais exemplos, com estórias trocadas, as minhas mais banais, do mundo e de viagens, as dele, das suas interações com o mundo envolvente e com as pessoas, sempre fabulosas. O Ronny tinha uma cultura geral próxima do zero. Portugal talvez fosse na América do Sul, o português era capaz de ser a língua falada no Brasil. Guatemala, Nicarágua, Costa Rica… não fazia ideia do que seriam esses países, apesar de quase fazerem fronteira com a sua pátria. Internet não usava. Dessas “modernices” apenas telemóvel. Fizemos uma pausa na conversa para uma incursão à rua, para mais uma cerveja de litro para cada um, comprada na loja defronte onde, sem surpreender, o Rommy transformou uma porta fechada em porta aberta e um proprietário carrancudo numa cara sorridente. Sem qualquer esforço aparente, com a simplicidade com que pauta a sua vida.

O título deste artigo não é apenas uma figura de estilo. Ele não sabe, nem lhe posso dizer porque, lá está, não é utilizador de modernices, como o correio electrónico. Mas não há muitos dias em que não pense nele, como um modelo. Acho que esta efémera passagem pelos meus dias me transformou. Fez-me uma pessoa mais de bem comigo e com a vida. E no dia seguinte lá se fez a tal carecada acordada, com aparo da barba e do bigode. Na fotografia o Ronny fuma um charro depois de um trabalho bem executado.

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