Acordei às 6 da manhã para telefonar ao Wagner, o jovem dos carros de aluguer. Estava farto de saber que para garantir que o plano decorria como previsto deveria ter ligado na véspera a confirmar. Mas no dia anterior o tempo tinha estado péssimo, e se tivesse contactado a malta dos carros estaria a comprometer-me definitivamente. Preferi esperar para ver como o dia se levantava. Aceitável. Peguei no telefone e aquilo que eu suspeitava aconteceu: tinha-se esquecido e agora só às 8 horas quando abrisse o escritório. Pois que seja. Consegui contactar o José António e adiar a hora do encontro. Depois, foi ir andando, a pé, até à cidade. Comprar pão e bolos para o caminho e procurar as instalações da rent-a-car. Ligeiramente mais complicado do que o esperado, mas perguntando aqui e acolá, andando para trás e para a frente, e, por fim, já em desespero de causa, ligando de novo ao Wagner, lá demos com o local.

O Suzuki Jimmy que tinha reservado não estava disponível. Ainda me foi mostrado, esse companheiro de quatro dias de aventuras em São Tomé, guardado na garagem, mas esperando uma visita ao mecânico para uma qualquer intervenção necessária. Como alternativa, foi-me passado um Mitsubishi, uma autêntica besta negra, um carro de combate gigante. Teoricamente fiquei a ganhar, mas não sei se não teria preferido o ágil Jimmy, ligeiro e de divertida condução.

Passámos por casa para verificar se a Ronja queria vir conosco. Queria. Em menos de nada estávamos a rolar na estrada para norte, a EN1, passando por Guadalupe e prosseguindo em direcção à costa. Uma paragem rápida na Praia das Conchas para mostrar o local à nossa amiga. E depois, quase sempre a andar, já um bocado à pressa, para o encontro com o José António, que nos devia esperar na estrada principal, junto ao acesso para a sua aldeia. Mas mesmo com o ritmo pressionado pelo relógio não consegui resistir a revisitar Anambó e a parar um par de vezes para apreciar a bela costa norte da ilha, com as suas praias de seixos escuros e as palmeiras altas, vergadas pelo vento.

Chegámos a Neves, chamada, meio a sério meio a brincar, a “cidade mais industrial do país” porque tem… a única fábrica de São Tomé e Principe, a de cerveja. Ia atravessando a povoação, com cuidado, porque há gente por todo o lado, quando ouço chamar. O José António. Pronto, agora podemos prosseguir até ao fim da estrada. A Ronja opta por ser largada no ponto onde o carro não pode prosseguir mais; quer caminhar de volta à última aldeia, Santa Catarina, e a partir de lá continuar a andar até apetecer e até conseguir uma boleia de regresso a São Tomé.

Quanto a nós, últimos preparativos concluídos, pomo-nos a caminho. O objectivo são as ruínas do antigo hospital que no passado servia de apoio à última roça portuguesa antes do fim da estrada, que por essa altura era mais adiante. Falaram-nos de duas horas a andar para cada lado. Quando começamos a caminhada estou já ciente que as probabilidades de sucesso são reduzidas. Convenhamos que o José António pode ser um gajo porreiro, que conhece meia ilha e sabe onde ficam as coisas, mas não é um guia a sério. Tinha-lhe mostrado fotografias dos restos do hospital, que ele, entusiasmado disse que sim senhora, que conhecia, que não havia problema. Mas pareceu-me desde logo bazófia, e nunca acreditei seriamente que neste dia chegaria às tais ruinas. Mas lá fomos andando…


Ainda mal tinhamos percorrido cem metros, o famigerado aviso: “Cobra!”. Dou um salto e avisto o “inimigo”. Afinal é só uma jita, uma cobra inofensiva para nós, uma constritora que é ameaça para pequenos roedores, e, segundo nos diz o “guia”, para a própria cobra negra, que consegue apertar até à morte. O José António prende o animal temporariamente com um pau, para que possamos ver… e assim que a deixa seguir a sua vida, de novo… “Cobra!”. Olho por cima do ombro, na direcção apontada por ele, e desta vez dou um salto a sério, porque identifico instantaneamente o negro da cobra mais temida, aquela cuja mordedura mata um humano em menos de quatro horas. Felizmente esta estava morta, decapitada, há pouco tempo. Mesmo ali em cima do muro que ladeia a antiga estrada, hoje mero vestígio de um passado agitado, engolida lentamente pela selva envolvente. Apanhei o susto do ano, talvez mesmo da década. Se aquela estivesse viva e mesmo ali, era provável que estas linhas não tivessem sido escritas nunca.

Mais à frente o que ainda restava do pavimento original da estrada desapareceu de vez. Uma bifurcação, e o primeiro erro do José António. Pressenti isso, mas não tive cara para dizer nada. Agora é morro acima, ingreme, e trata-se de um trilho de selva. Aqueles caminhos são usados pelos colectores de seiva de palma, elemento primordial do famoso vinho de palma. Por diversas vezes ele aponta-nos vestígios do seu trabalho: um garrafão deixado a encher aqui, uma catana encostada acolá. Decididamente andam por ali, mas não respondem ao chamamento que o nosso amigo emite.

Caminhar na selva é uma sensação nova. O mar de verde envolvente, a humidade, os mil sons da bicharada… passe o lugar comum mas… é tal e qual como nos filmes! Seguimos com alguns metros entre nós, com o José António a liderar, forçado a pausas a tempos para esperar por nós, pouco habituados a toda aquela humidade no ar, a suar em bica. Mais para a frente as coisas inverteram-se. Acabámos por conseguir cansar o “galgo”, mas para já é ele que faz as pausas para nos dar tempo de recuperar fôlego.

De  repente um movimento nas copas das árvores, a cerca de 150 metros, revela o que desejávamos encontrar: macacos. Os raros macacos de São Tomé, que habitam apenas neste canto perdido da ilha, acossados pelos habitantes humanos que os caçam para comer. Primeiro um, depois outro… e por fim apercebemo-nos que estamos perante uma verdadeira colónia de macacos, que vão evoluindo, lá alto.

Vou pensando em quantas cobras negras se encontrarão ali, num raio, digamos, de 100 metros em nosso redor. Mas nenhuma se deixa ver. Pelo menos o diabo dos bichos são tímidos e afastam-se ao pressentir a presença humana. Levo o GPS ligado e vejo que já passaram duas horas desde que iniciámos o passeio. Duas horas traduzidas por quatro quilómetros. E, mais importante do que isso, vejo que nos estamos a aproximar do carro, embora claramente a uma altitude muito superior. Quando chegamos a cerca de 200 m do ponto de partida decido que é altura de ter uma conversa com o “guia” sobre o que se está a passar. Já se tornou evidente que ele não faz ideia do caminho a tomar, e, depois de gasta a energia e perdida a água do corpo, é claro que chegar ao tal hospital fica colocado fora de causa. Ainda encontramos um dos colectores de seiva de palma, que dá algumas indicações sobre o caminho. Mas é demasiado tarde. Aproveita-se a dica para regressar ao carro, não pelo mesmo caminho, mas avançando mais um pouco, e depois, sempre por ali abaixo, pela encosta do monte, até chegar à estrada. Poupou-nos da longa caminhada de volta que já tinhamos iniciado.

Bem vistas as coisas, apesar da pequena frustração de ter falhado o objectivo, a expedição valeu a pena. O passeio na selva foi uma experiência e pêras, com o bónus do avistamento da macacada. Quanto a ruínas, bem, o José António continua a falar-nos de um outro hospital abandonado, e esse ele conhece muito bem, nos arredores de Santa Catarina.

Enquanto rodamos descontraidamente na estrada que leva à primeira aldeia junto à estrada, vemos a Ronja, que vai caminhando na mesma direcção. E reconquistamos a nossa companheira de aventura. Seguimos as indicações do José António, passamos Santa Catarina, mais à frente viramos numa estrada à direita, subimos pela estrada enlameada, passamos por um grupo de polícias, o que deixa o José António algo agitado, e paramos, finalmente, mais à frente. O nosso amigo vai estranho. Segue à nossa frente, mas com um ritmo que faz quebrar o contacto. Será por causa da presença da polícia nas imediações? Será o peso de consciência de nos ter prometido as outras ruínas e de ter nisso falhado estrondosamente? O que nos vale é um rapaz que nos segue, a quem perguntamos o caminho correcto. É um momento um pouco estranho. O José António desaparecido, lá para a frente. Nós no meio de um capim alto, sem perceber por onde ir. E aquele rapaz, de galochas e catana na mão, corda enrolada no torso, claramente um colector de seiva de palma, que parece seguir-nos sem motivo aparente.



No final chegamos. Encontramos logo uma série de homens que, abrigados numa das salas deste hospital abandonado, destila aguardente de cana. Gente simpática. A partir daí é começar a explorar as ruínas. Afastamo-nos uns dos outros e o rapaz enigmático mantém-se perto de mim. Vai-me mostrando os detalhes, explicando aquilo que sabe, indicando-me os melhores acessos e o que ainda há para ver. A selva está a tomar conta de tudo aquilo. Há árvores a crescer ali no meio. O musgo cobre as paredes. Vejo antigas salas com uma lareira a um canto, os chuveiros, a zona de lavagem de roupa, com os tanques ainda no local. Se o passeio na selva tinha feito valer a “contratação” do José António, este prémio de consolação reforçou a qualidade do investimento. Pelo que percebi das fotografias observadas o outro hospital será mais interessante, mas este já me encheu as medidas. Regressamos ao carro e o rapaz continua conosco. Depois, despede-se e vai à sua vida. Aparentemente tudo o que queria era um pouco de companhia diferente.

No regresso paramos na roça Diogo Vaz, onde tinhamos estado no decorrer da prévia expedição à costa norte. Desta vez não há crianças a perseguir-nos e podemos ver aquilo com outros olhos, com mais calma. Depois, deixo o José António em casa. Bebemos ali uma cerveja, no botequim do amigo Silvino. Passo-lhe 200 mil dobras, ou seja, 8 Euros, pela companhia e ajuda. Despedimo-nos, mas sabendo que nos deveremos ver no dia da partida, quando eu estiver para embarcar e ele estiver a tabalhar, lá, no aeroporto.

De caminho para São Tomé há ainda tempo para uma vista de olhos na Lagoa Azul, hoje, com o céu muito encoberto, bem menos azul do que no outro dia. Passamos por Guadalupe e lembro-me de ter lido uma referência no guia Bradt a um cemitério antigo, mesmo ali, encostado à povoação. Encontro-o, mas está fechado. Um velhote aparece. Será o guardião, mas pede qualquer coisa, “que seja um copo de vinho”, para nos abrir o portão. Não. Não pago para ter acesso a um local sagrado. Já ele, mesmo assim, vai abrindo o cadeado, mas não quero mais nada dali. É hora de regressar.

Já em São Tomé, com a noite a cair, pensamos em jantar.  Vamos primeiro a um “banho de civilização”, ou seja, a um acesso de Internet, no bar do hotel Avenida. Aquilo é mau de mais. Quer dizer, a qualidade do acesso. Acabo por desistir, deixo a Ronja a usar o meu computador e vou vendo o futebol que a malta local segue entusiasmada. Estamos todos famintos. Vamos ao Jasmim. O céu ameaça chuva, mas mesmo assim sentamo-nos na esplanada, confiança dada pelo enorme guarda-sol que nos protegerá em caso de necessidade. O jantar decorre agradável. Sabe bem, comer algo mais português e mais substancial, não só depois daquele dia intenso mas, de forma geral, depois de tanto tempo a comer refeições diferentes dos meus costumes. Entretanto enviámos mensagem ao KB, convidando-o para se nos juntar. Não podia.

Terminada a refeição seguimos para o Cacau, para a última noite do festival de Jazz, que foi um sucesso. Estava lá toda a malta conhecida. O KB, o Alberto, a Mia. E todas as outras caras que se foram tornando familiares, viajantes e residentes. O casalinho de Barcelona que tinhamos encontrado em São João de Angolares, um outro casal de turistas que passámos a vida a encontrar durante estes dias. Quanto à música, muito melhor que nos serões anteriores, com o dedo dos únicos americanos presentes no festival.

10 COMENTÁRIOS

  1. Caro Ricardo

    Parabéns pelo seu blogue. Estive a ler o artigo sobre São Tomé, de que gostei muito, e fiquei curiosa em relação às fotografias, que diz ter, sobre as ruínas do antigo hospital que servia de apoio à Roça de Santa Catarina. Ficaria grata se as pudesse partilhar comigo. Estou a fazer uma pesquisa sobre tudo o que diz respeito a essa roça em particular.

    Grata

    Isabel M

    • Isabel pode começar por consultar o meu blog sobre locais abandonados em http://urbexzone.wordpress.com e ler o artigo (em inglês) sobre a visita a esse hospital, onde estão mais fotografias. Um jovem local apareceu por lá e deu-me algumas explicações mais detalhadas de como o hospital funcionava (provavelmente ouviu-as do seu pai, porque era demasiado novo para poder ter vivido aqueles tempos). Se precisar de mais alguma coisa, disponha.

      • Por acaso já vi. Aquelas fotografias são as do antigo hospital da roça de Santa Catarina?! Tinha ficado com a ideia que não.

  2. São de facto. É que o hospital, ao contrário do que sucede em Águaizé, é algo distante do núcleo da roça, agora aldeia, ou pelo menos da parte que agora é intensamente habitada, e que se estende ao longo da estrada.

    • Fico contente! Persigo vestígios e estórias dessa antiga plantação como um cão de caça. É que essa roça pertenceu ao meu bisavô. Se não se importar, gostava de adotar as suas fotografias 🙂 🙂 enquanto não surgir a oportunidade de lá voltar. Estive em São Tomé mas, infelizmente, não tive oportunidade de visitar a costa oeste, cuja estrada me têm dito que é absolutamente cénica

      Obrigada[?]

      Em 11 de maio de 2013 13:40, “O Papa-Léguas” escreveu:

      > ** > papaleguas commented: “São de facto. É que o hospital, ao contrário do > que sucede em Águaizé, é algo distante do núcleo da roça, agora aldeia, ou > pelo menos da parte que agora é intensamente habitada, e que se estende ao > longo da estrada.” >

        • Então, não me vou fazer rogada, não. É que aquele verde, e citando alguém, é verde para crer.

          Mais uma vez, obrigada

          Em 11 de maio de 2013 14:36, “O Papa-Léguas”

  3. Desde já deixo o meu agradecimento pelo excelente blog, dele extraí muitas dicas e sugestões que me foram úteis e uma mais valia em Julho passado, aquando da visita a Stp!

    Já agora, aproveito e informo Isabel Marquez (comentário acima) que estive na Roça Santa Catarina (onde os meus avós e mãe viveram), na altura (1970) esta era propriedade da “Sociedade Agrícola Terras de Monte Café” da qual a Roça Monte Café fazia parte. De todas as roças que visitei esta está entre as melhores “preservadas”, embora se encontre ao abandono, o terreno foi dividido em parcelas pelos habitantes da roça; a casa da administração foi “vendida” mas está abandonada, assim como, as duas casas adjacentes (pertencente ao mecânico geral e feitor geral); o brigoma (sanzala superlotada) onde continuam a nascer e morrer os habitantes da roça! O hospital aqui documentado, onde o 1º andar funcionava como habitação. Adjacente ficava a capela. Resta ainda os vestígios do secador e armazéns de cacau, assim como, os antigos carris! Na antiga cantina funciona agora um atelier de costura!
    A roça além da sede (Sta. catarina) detinha ainda as dependências Lembá – junto ao rio; São Manuel; Dona Amélia, Ponta Furada; Rio Ave; Paga Fogo; Cadão; Fortunato e São João.

    Espero ter ajudado a satisfazer alguma curiosidade, estou ao dispor para mais informações.

    P.S. Peço desculpa ao autor do blog pelo alongamento do coment.

    • Sofia Arrábida
      Agradeço tudo o que partilhou comigo. Estive em São Tomé mas, infelizmente, não tive oportunidade de visitar a região onde está localizada a roça de Santa Catarina. Não imaginava que estivesse razoavelmente “preservada”, pelo que é dado ver do hospital. Pelo que sei, desde sempre existiu uma ligação à Roça Monte Café. Li algures que foi a primeira a ser eletrificada. Agradavelmente surpreendida pelo facto da sua mãe e avós terem vivido lá. Procuro informações sobre a vida nessa roça, estórias antigas que tenham sido preservadas oralmente, transmitidas de geração em geração, para um projeto que estou a desenvolver, e ficaria muito grata por toda a informação que me pudessem dar.
      O meu obrigada e votos de um excelente 2014.
      Isabel Marquez
      PS: Obrigada também ao autor do excelente blogue!

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