A noite foi bem dormida, consequência do dia bem passado que se seguiu à “directa” da viagem. Por uma vez o calor húmido, o ladrar dos cães e o sol que entra pelo quarto a partir das cinco da matina não implicou com o meu sono.  Foi também a única noite que passei debaixo da rede mosquiteira, que me incomoda, me asfixia, me faz sentir ainda mais calor. De resto, ninguém em São Tomé usa redes. Nem os locais nem os europeus que por cá vivem. Aliás, a malária, ou paludismo, revela-se como mais um fruto da cultura de medo que grassa no mundo ocidental. Nesta terra é encarada como um problema ao nível da nossa gripe. Se se tiver azar apanha-se, e isso vai suceder, em princípio, mais cedo ou mais tarde. No estado actual da medicina e das condições civilizacionais do país, não morre mais gente com malária do que em Portugal com gripe: pode suceder às crianças de tenra idade, talvez aos idosos. Os óbitos são residuais, contam-se pelos dedos de uma mão, ao final do ano.

De manhã cedo o KB saiu para as suas compras de todos os Sábados. Quando acordámos já ele estava de volta, esperando-nos para partilhar conosco o se passo seguinte: a manhã de relaxa na esplanada do café Passante, o tal onde os europeus se reúnem, pagando preços estapafúrdios pelo seu consumo de café. Uma lata de Coca-Cola custa aqui 1,80 Eur, quando em qualquer outro local (por exemlo, no bar do Pierre) não chega a 1 Eur. As vitrinas do armário frigorífico estão repletas dos mesmos produtos que se encontram em qualquer café português: Fanta, Sumol, Sagres, Água das Pedras Salgadas, Super Bock, Coca-Cola, UCAL… e na arca, os Olá.

Junta-se-nos uma amiga do KB, portuguesa, a Ana, que trabalha para a ONG Médicos do Mundo, que aparece com a sua filhota. Passado um bocado a menina está em pulgas. Nessa tarde vão à piscina. Despacho um UCAL e uma fatia de bolo de chocolate. Passa um homem que cumprimenta o KB e, como sempre em São Tomé, toda a gente presente à mesa, conheca-se ou não se conheça. Depois de se afastar, o KB diz-me que é o anterior primeiro-ministro. Só mesmo neste país é que eu encontraria por acaso um primeiro-ministro a cirandar pelo café onde estou sentado.


Ao fim de duas horas na esplanada do Passante comecei a impacientar-me. Talvez chegasse, para aquela manhã, de preguiçar à boa maneira colonial, sentado no café a ver as pessoas passar e a coscuvilhar (e, acreditem, o KB sabe muita cuscovilhice). Despedimo-nos do nosso anfitrião e seguimos para uma tarde exploratória da cidade. O tempo que se seguiu foi partilhado entre novas descobertas e o revisitar de locais vistos na véspera.

Iniciou-se na Avenida Marginal 12 de Julho, na sua vertente Este, a minha parte favorita da cidade, com a sua atmosfera descontraida, o mar bravio a lamber as rochas, as casas de estilo colonial… mais do que em qualquer outra parte de São Tomé , é neste bocadinho que nos podemos imaginar transportados no tempo e de regresso a meados do século, quando a ilha era parte de Portugal e quando eu, ainda menino, pressentia esses tempos que me ficaram subtilmente cravados na memória. É por ali que se encontra o enorme complexo da Embaixada de Portugal, distinto, luxuoso mesmo, segundo os padrões locais. Entendem-se as dimensões pelas intensas relações entre os dois países. De qualquer modo, não há muitas embaixadas aqui (por outro lado creio que São Tomé e Principe tem apenas duas embaixadas na Europa e não muito mais em África). Na mesma rua, a curta distância, o edíficio da Rádio Nacional, pintado em azul garrido, e o liceu, com aquele toque inconfundível de todos os liceus portugueses dos anos 50 e 60, ao que se junta um certo aroma africano, colonial. Ao longo da marginal, os balaústres, aqui e acolá danificados pelo mar, patilham o seu espaço com românticos bancos face a face.


A praia que se avista do lado de lá do muro é chamada de Perigosa. Adivinha-se as razões: está pejada de rochas e o mar parece de facto ameaçador. Decididamente não é um local para ir a banhos. Por outro lado é ideal para relaxar um pouco e é isso mesmo que muitos dos estudantes do liceu ali defronte fazem. Nas muitas vezes que aqui passei durante os dias de São Tomé foi vê-los, por ali, em brincadeiras e namoricos que me fizeram recordar os meus próprios tempos de liceu.

Afastámo-nos do mar, trilhámos avenidas preenchidas com as casas que outrora pertenceram à administração portuguesa e aos funcionários que a faziam funcionar; hoje, algumas mantém-se em mãos privadas, quase sempre de portugueses, enquanto outras hospedam pequenas empresas. No fundo, não mudou muito.

Mais à frente chegamos à Praça da Cultura, onde se encontra o Arquivo Histórico e o Cinema. Este é o único em todo o país, construido em 1950, visitado quatro anos depois pelo ícone do teatro português, Vasco Santana, e ponto de encontro da comunidade europeia nos anos em que o Império durou. E era mesmo esse o nome da sala de espectáculos: Império, que passou, depois da independência, a cinema Marcelo da Veiga. A sua actividade cessou em 1993, mas com a ajuda económica do Taiwan o imóvel foi renovado, e, desde 2008, com o apoio da Lusomundo, é de novo possível ver cinema em São Tomé.

O calor aperta de cada vez que o sol espreita por detrás das núvens. Passamos defronte do palácio presidencial, antigo palácio do Governador, local central da trama do romance Equador, já com os olhos postos no nosso destino imediato: o bar do Hotel Avenida e acesso à Internet, esse bem precioso em São Tomé e Principe. Por ali ficámos um pouco, tentando lidar com a velocidade proto-histórica daquela ligação. Nisto aparece o nosso José António, que ali ia a passar. Mais um pouco de conversa local. Encomendamos côcos, que são servidos abertos no topo, com uma palhinha, para que sorvamos o seu saboroso leite, ainda mais delicioso assim, quando os frutos são mantidos no frigorífico. É uma especialidade muito económica: mesmo num bar de hotel custa apenas 0,40 Eur. E, depois de esgotada a bebida, pedimos para que nos abram o côco para nos satisfazermos com a polpa.

Decidimos aproveitar o que faltava da tarde (relembramos o leitor que em São Tomé o sol começa a despedir-se por volta das 17 e às 17:30 já está bem metido na caminha) para andar pelo centro do centro de São Tomé, aquele pequeno bairro de planta rectangular que era e ainda é o centro comercial, não só da cidade mas do país. Ali, pelas esquinas, amontoam-se os “cambiadores” de dinheiro e outros cambalacheiros que nos abordam com frequência, mas com um sorriso que não desaparece quando são rejeitados. Em São Tomé nem os chatos são verdadeiramente chatos. Basta um “não obrigado” e o ataque cessa de imediato. E depois, é mesmo apenas isso: trocar dinheiro. Não há muito mais conversas. Não nos querem servir de guias ou impingir o quarto para alugar em casa da tia. Pontualmente a abordagem implica a compra de algum produto artesanal, mas não dá para levar a mal, que aquela gente tente fazer alguns cobres de forma honesta, vendendo um produto legítimo.





Tal como na marginal, sinto nestas ruas os fantasmas dos outros tempos. Os prédios são os mesmos, alguns bastante degradados, em ruínas mesmo… mas outros apenas a precisar de uma boa manutenção para ficarem como novos. O estilo é que parou no tempo. Vi duas farmácias, cada uma com um néon alusivo a produtos que foram reis nos anos 70: Melhoral e Aspirina.  Os interiores também nada mudaram nos últimos 40 anos. Os armários e o balcão de madeira, o descontraido farmacêutico aguardando por clientes (conselho para futuro viajante: se precisar de comprar medicamentos, atente à data de validade).

É um mimo andar por ali a ver aquelas lojas. A única coisa que terá mudado desde os tempos portugueses terá sido o caos de carros e motas e a falta de higiene nas ruas. Ah, claro, e a cor de pele dos comerciantes.

Chegamos à zona do mercado e damos de caras com um dos locais que vinha referenciado para uma visita: a padaria Miguel Bernardo. Que maravilha! Tornou-se uma visita diária, estivéssemos nós em São Tomé. Bolos frescos, pão de qualidade, preços baixos, bebidas fresquinhas, iogurte artesanal delicioso e barato! Quantas vezes nos sentámos na esplanada desta padaria nos dias que se seguiram ou simplesmente passámos por lá para nos abastecermos de mantimentos para as expedições que fizémos a partir da cidade…


Descobrimos um complexo escolar surpreendente, uma escola primário com mais de uma dezenas de salas espalhadas por diversos pavilhões, num conceito arquitectónico que nunca vi em Portugal. No topo, a casa sede, feita sala de professores e secretaria, aparenta-se com um palacete.


Andámos um pouco em direcção ao porto, uma zona que ainda não tinhamos visitado. Mas não chegámos ao fim. Fazia-se tarde e ainda tinhamos um longo caminho pela frente. Quando caminhávamos pela marginal da baia Ana Chaves as luzes da cidade acenderam-se, conferindo uma beleza adicional ao cenário. O segmento do porto, tão iluminado, projectava raios de luz amarela sobre as águas que se iam fazendo negras. Ao longe, núvens escuras ameaçavam trazer uma pequena tempestade para terra. Como em tantos outros dias que fizemos esta marcha de regresso a casa, invariavelmente à mesma hora, não conseguiamos parar de olhar para trás, de fazer pausas para melhor admirar aquele quadro bucólico. No pontão dos pescadores um homem vasculhava o lixo, mas o seu aspecto parecia negar que procurasse restos por ali. Seria qualquer outra coisa, mas nunca saberemos o quê, exactamente.

Quando chegámos ao ponto onde a estrada principal se afasta da baía, quase no seu término, a noite já nos envolvia. A iluminação pública é escassa, mas não importa. Não há ameaças à espreita na escuridão, e a marcha prossegue sem problemas.

Chegamos a casa um pouco antes das seis. Hoje o KB irá reunir os seus amigos chineses, como sempre sucede aos Sábados, e nós estamos convidados para o jantar, assim como um outro amigo dele, o Albert, espanhol de Barcelona. Há ainda tempo para um duche, frio, como todos por aqui, antes de mudar de roupa para o evento social.

São cerca de doze pessoas sentadas à mesa, uma tarefa hercúlea para a empregada do KB, que cozinha para toda esta gente. Alguns trazem contribuições para a mesa. Mas eu, pobre de mim, fico condenado à tigela do mata-bala que me servirá de jantar. Peixe não aprecio, e os petiscos chineses também não me cheiram… fico com aquele tubérculo que é tratado em São Tomé como substituto da batata. E, convenhamos, cortado às rodelas finas e frito, não lhe fica nada a dever.

Neste Sábado não saimos, até porque para o dia seguinte o KB tinha-nos prometido uma passeata de dia inteiro à extremidade sul da ilha, na companhia do Albert.

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