O dia começou húmido, com um temporal de chuva que cobria de cinzento aquele pequeno mundo tropical de Jalé. Foram horas preguiçosas, aquelas primeiras desta Quinta-feira, entre o calor acolhedor da cama e a janela que mostrava um mar alteroso ali ao alcance da mão, apesar de um pouco recuado em relação à véspera.

Sentei-me um pouco no carro, a ler e a escrever. Fui lavar os dentes ao pequeno pavilhão de sanitários. A humidade natural deste clima tropical estava hoje a ser bem reforçada pela água da chuva, e entre ambas asseguraram-se que nada em mim ficaria seco. Contudo, apesar da teórica contrariedade das condições climatéricas, apreciei aquele momento. A chuva aqui faz parte da experiência. E nenhum local melhor do que este para sentir a violência daquela carga de água constante, a desabar sobre o paraíso verde e sobre o oceano cinzento.

Olhava para a areia e imaginava as tartartugas que desta feita não veria, mas que todos os anos, entre Novembro e Dezembro, vêm aqui colocar os seus ovos, para que a geração seguinte, passado o devido tempo, encontre o mundo e se precipite para o mar que será o seu lar. Para já, de vida selvagem, apenas os caranguejos, alguns maiores do que um grande punho  cerrado.

Por detrás da cabana e da estrada, é o mangal de Malanza, que aqui chega através de uma das suas extremidades. Um viveiro de mosquitos, inóspito, ameaçador. Dei os bons dias ao guarda, um indíviduo idoso, de grande sorriso, que já tinha conhecido quando no Domingo por aqui passei. Conversa de circunstância, imposta pelos mundos diferentes e pela mútua barreira de uma língua comum com um fosso de sonoridade e vocabulário. Entretanto chega o Osvaldo, de mota, com um pendura que traz às costas um recipiente com o nosso pequeno-almoço. Esperamos um pouco até que nos chamam para a “sala” de refeições. E a surpresa é enorme quando nos apresentam uma deliciosa refeição matinal, tão mais agradável do que aquela a que tivemos direito na afamada roça de São João. Simples mas gostosa: café, que, excepcionalmente bebi; chá; um prato com uns biscoitos acabados de fritar, em forma de caracol, que me fizeram lembrar as tradicionais argolinhas de natal; e um pequeno prato com frutas tropicais: banana e papaia. Talvez porque as expectativas eram baixas, a verdade é que a memória daquele café revigorante, o sabor daqueles biscoitos fofos e da deliciosa fruta exótica será um daqueles elementos desta viagem que perdurará na memória.

E a chuva continuava. Fiquei pela sala de refeições. A cabana era demasiado escura para ser confortável, e o carro era um pouco asfixiante. Ali, pude escrever um pouco, pernas estendidas sobre outra cadeira, num ponto estrategicamente escolhido por não ter goteiras.

Com o avançar da hora e o abrandamento da precipitação decidimos partir. Tentámos visitar a praia seguinte, que nos tinha sido recomendada pelo KB, mas a estrada era demasiado afastada do seu acesso, e a lama que cobria o terreno não encorajava a explorações a pé. Voltámos para trás, apanhámos o guarda, que nos tinha pedido boleia para a aldeia, e seguimos para Porto Alegre. O Osvaldo estava no sua “venda”. Pagámos, bebi uma Coca-Cola. Dois ou três homens discutiam política local. Perguntámos pelo caminho para a antiga casa do governador, que sabia localizar-se num monte sobranceiro, mesmo ali à beira da aldeia. Era perto. Foi uma agradável caminhada de cerca de 20 minutos, sempre a subir, num caminho em caracol. Lá em cima, a decepção: a casa que deveria estar em ruínas era afinal uma vivenda de concepção moderna, por terminar, que se encontrava onde esperava ver uma edificação decadente e cheia de histórias para contar. Valeu a vista, que dali é impressionante, devidamente apreciada antes da meia volta e do retorno a Porto Alegre.

Fomos a casa do Paco. Não estava. Telefonámos. Disse para nos encontrarmos mais abaixo, no coração do povoado. E lá fomos para mais uma garrafa de vinho e um punhado de histórias daquele homem com uma vida tão plena e, ultimamente, tão marcada pela má sorte. Fazia-se mesmo tarde. Havia uma viagem desconfortável para fazer, com algumas paragens previstas, e uma passagem a vau cujo sucesso não estava assegurado. Todos diziam que não haveria problemas, mesmo depois da chuva contínua. E não houve. A passagem estava ainda mais segura do que na véspera, e ainda bem: não apetecia mesmo nada mais uma noite em Porto Alegre ou em Jalé.

Depois da chuvada o azul do céu chegou a revelar-se, e a selva luxuriante ganhou contornos ainda mais coloridos. Até São João dos Angolares a viagem fez-se com umas quantas paragens para ver um ou outro detalhe com mais atenção. Bisbilhotámos Ribeira Peixe e Praia Pesqueira, onde fomos encontrar uma queda de água não muito alta mas bastante ampla. Fomos a Dona Augusta, atraídos pelo nome que remete para a personagem do livro Equador, apesar da roça da novela ser descrita como nas imediações de Trindade. Parámos para fotografar uma casa à beira da estrada principal, e logo uma das moradoras apareceu, uma jovem adulta, que pediu uma imagem dela, em posse junto à entrada da casa. Forneceu um endereço, se pudéssemos depois enviar a fotografia pelo correio.

Chegávamos a São João de Angolares e tinhamos decidido uma paragem no famoso restaurante Mionga, de que tantos blogs de viagem falam, que já mereceu um artigo num dos suplementos do jornal Público. O Nelito, antigo discipulo dos cozinhados servidos na roça de São João decidiu iniciar o seu próprio negócio, e abriu este local. O carro deixa-se à beira da estrada principal, num local bem assinalado, que é impossível perder. E depois é andar umas dezenas de metros, por uma rampa abaixo, algo escorregadia, feita de seixos sempre húmidos. Não sabiamos se iriamos apenas dar uma vista de olhos, beber qualquer coisa, ou mesmo comer.

Passámos pelo Mionga, onde um grupo de homens locais se sentava na esplanada debatendo política. A vista dali é tão bonita que nos distraimos por longos momentos até que o Nelito desceu para se juntar a nós e convidar-nos a entrar. Sem dúvida, um local a não perder. Mesmo que não se queira comer, só o cenário torna o sítio de paragem obrigatória. Ao longe, uma longa lingua de areia ´estende-se até ser interrompida pela água. É a margem direita da foz de um rio, e, do lado oposto, inacessível, uma casa que diz ser a associação de pescadores. Faz sentido, porque aparentemente é necessário um barco para lá se chegar. No horizonte umas pequenas figuras, talvez crianças, talvez adultos, brincam na água. Um, tem um cão consigo. A noite há-de cair sobre aquelas paragens, mas aquele grupo que procura uma distração de fim de dia continuará nas suas chapinhadelas e braçadas. Aos nossos pés o rio corre, de forma surpreendentemente lenta numa ilha onde a pressão das águas é contínua e torna todos os cursos de água em correntes de velocidade vertiginosa. É um quadro bucólico, uma forma ideal de fechar um dia, que ainda será selado pela excelente comida que o Nelito nos apresentará.

Depois de lhe dizermos que mais do que uma refeição a sério desejamos petiscar qualquer coisa, ele debita uma lista de sugestões. Se a memória não nos falha encomendámos bolinhos de arroz, xuxu frito, banana também frita, omolete. Tudo estava excelente, a fazer jus à boa fama angariada por este simpático jovem são tomense. Ainda tivémos que recusar um pequeno “brinde” que nos trouxe, porque não havia espaço para mais: uma porção de peixe com pepinos, com muito bom aspecto. Perguntei por sobremesa e apareceu em cima da mesa uma papaia em calda de açucar, com a fruta cortada em tiras, finas e saborosas. Entretanto já era de noite. Nestas paragens, em 10 minutos passa-se do dia para a escuridão nocturna. Divertimo-nos a tentar adivinhar a conta. Considerando tudo, a quantidade, a qualidade, o aspecto fresco e bem arranjado do local, a localização… chegámos ao consenso de 8 Eur por pessoa. E sabem que mais? Falhámos redondamente. Foi metade. Incluindo duas bebidas que não mencionei. Com a conta veio um livro de honra, que rubriquei com todo o gosto, depois, claro, de uma série de linhas com todos os elogios que me ocorreram. Olhei para as últimas entradas. O Mionga tem uma média de visita por dia.

A viagem para casa foi penosa, com o cansaço acumulado, a condução nocturna a complicar o trajecto e uma pequena aventura já nos subúrbios da cidade, quando uma estrada em obras nos mandou para um desvio que baralhou tudo. A coisa resolveu-se com naturalidade (que bom que falamos a mesma língua) e deu para colher ainda mais uma perspectiva, daqueles bairros, daquelas ruas, com tanta animação e gente por todo o lado. Fez-me pensar na Buraca.

4 COMENTÁRIOS

  1. Obrigado poor contribuirem na divulgacao do meu e vosso restaurants, sao voces que me ajudam a manter este projeto.

      • Boa noite,

        Gostaria de saber se regressou a STP e se o custo de vida por lá é o mesmo.
        Estou a preparar uma viagem para breve e o seu blog tem informação muito vivida…
        Parabéns!

        • Olá Alice, desde 2012 não regressei, apesar de no ano passado ter estado mesmo muito perto de o fazer. Para além de ter ficado bastado ligado emocionalmente às ilhas, alimentei o projecto louco de escrever um guia com laivos de literatura de viagem, mas outros ventos me empurraram para Cuba e São Tomé Parte 2 ficou adiado. O custo de vida será o mesmo, pelo menos não ouvi em contrário dos amigos que lá tenho.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui