Como tantos outros, este foi um dia que começou cedo. Tinhamos combinado uma passeata com o KB, sempre gentil, disposto a oferecer-nos a sua boa companhia e préstimos para que possamos conhecer um pouco mais deste pequeno país. Tinha preparado as coisas para devolver o carro alugado apenas às 15:00, e assim, com um início matinal, teriamos tempo para muita coisa.

Na cidade, fomos à Internet, que, espantosamente, está disponível a partir das 7 da manhã. Ou seja, o bar abre a essa hora. Tudo começa em São Tomé bastante cedo. É um ciclo diário tão diferente do nosso, com o dia a iniciar-se pelas 4 e pouco, jantar pelas 6, caminha pelas 8 ou 9. Assim, com mais de uma semana de adaptação, pelas 10 horas, já tinhamos ido ao supermercado, à padaria, à gasolina, à companhia de telefones para uma recarga do telemóvel e ainda tinha encontrado o José António para combinar umas coisas.

O passeio de hoje seria dedicado às quedas de água na zona da roça Bombaim. Na cidade o dia parecia luminoso, com poucas nuvens e muito azul. Mas assim que passámos Trindade e a altitude se elevou, a envolvência tornou-se cinzenta e a chuva começou a cair. Parei um pouco para dar uma vista de olhos no cemitério local. Não tive muito tempo para explorar o terreno, porque o KB ficou à espera no carro, mas a verdade é que não encontrei campas especialmente bonitas ou antigas. Quase todas eram recentes, pós-independência. Mas o espaço, na generalidade, era interessante. Um cemitério católico, mas sem todo aquele branco que se encontra em Portugal, e com a selva como pano de fundo.

Tinha ouvido coisas terríveis sobre o acesso à roça Bombaim, da boca do casal português que encontrámos em São João. Que era infindável, que a selva a abraçava, ameaçando interrompê-la a qualquer momento, com a queda extemporânea de uma árvore ou de uma derrocada de lama. Ao principio, brincando com o volante, ri-me da descrição. Aquilo estava a ser uma brincadeira de crianças. Mais para a frente compreendi um pouco melhor as queixas dos amigos portugueses, mas mesmo assim a coisa fez-se muito bem, apenas com uns pequenos trechos de lama que não chegaram a ser desafio e umas quantas passagens pelo meio dos fragmentos da madeira daqueles troncos grossos que, abatidos sobre a estrada, tinha sido rapidamente retalhados pelas ferramentas impiedosas dos trabalhos que por ali passam diariamente, uma vez de manhã, e outra, de retorno, ao final da tarde.

Passámos pelas quedas de água que iamos ver. A chuva continuava a cair e a decisão foi natural: prossigamos até à roça, que podemos ver do interior confortável do carro e depois logo se há-de ver se a borrasca abranda ou não.

Chegámos. Ao portão estava pomposamente anunciado o turismo de habitação ali montado. Entrámos na propriedade, com as casas de alvenaria deixadas pelos portugueses feitas agora perfeitas ruínas, a emergir daquele cinzento sufocante como fantasmas que nos segredavam as histórias do que viram acontecer desde que foram assim deixadas para trás, abandonadas pelos seus criadores. Mais à frente, depois de muita lama, outras construções, ligeiramente em melhor estado, com telhados mantidos a custo, albergando famílias miseráveis, ali escondidas da chuva mas não da humidade que se entranha. As crianças detectaram-nos por fim, disparando sem mais contenções um enorme alvoroço. Um homem, idoso, saiu também aos gritos, que suspeitei brevemente serem de hostilidade, mas que o KB esclareceu serem de interesse comercial. Sai dali em marcha atrás, tão depressa como pude, dirigindo-me à casa recuperada, usada como turismo de habitação. Mas o miúdo mais persistente atalhou, chegou lá primeiro. O portão estava fechado. Talvez o negócio tenha falhado. O edíficio parece em boas condições, mas nunca se sabe… seja como for, nova marcha atrás, correspondida por grande gritaria, da criança e do velho louco, que abriam agora o portão. Da algazarra depreendemos que nos convidavam a entrar, mas não olhámos para trás, abandonando com alívio o cenário mais degradante que viemos encontrar em São Tomé.

No caminho de volta parámos um pouco junto às quedas de água, mas a chuva continuava, se bem que agora de forma bem mais branda. O suficiente para admirarmos a imponência do caudal, mas não para nos acercarmos através do trilho verde e inundado de lama.


Ainda havia tempo para uma visita à roça Monte Café, que se revelou o contraste perfeito para a triste cena da Bombaim: sem dúvida a roça mais moderna e rica da ilha, com os seus habitantes a olharem-nos sem espanto nem hostilidade. Seriamos apenas mais uns turistas de visita, e ali as crianças não pedem doces nem há ninguém a pedir coisa alguma. Um rapaz de aspecto impecável aproxima-se e pergunta-nos se estamos interessados em comprar café. Depois, reconhecendo o KB de uma visita anterior, muda para inglês, exprimindo-se fluentemente e com um sotaque irrepreensível. Diz que aprendeu a língua com um professor que durante oito meses foi ali à roça para ensinar. Depois, práctica e estudo individual, que até agora mantém com disciplina férrea, numa base diária.

Junto ao recindo onde o café se encontra a secar, está ainda pendurado o sino que noutros tempos marcaria o quotidiano dos trabalhadores. É então que se aproxima um homem de mais idade, o senhore Paulino. Tem 76 anos mas parece não ter chegado ainda aos 60. Fica entusiasmado por ter ali portugueses a visitar, oferece-se para nos mostrar as coisas. Estamos a ficar com pouco tempo, mas é impossível recusar a generosidade do bom homem, repelir o seu entusiasmo. Ficámos a saber que tinha regressado a São Tomé no mesmo avião que nos trouxe e, retrospectivamente, lembro-me de o ver, levantar-se do seu lugar e caminhar pela coxia. Tinha-se tratado da sua primeira viagem a Portugal, uma visita à extensa família que por cá se instalou. Fala-nos com saudade dos tempos dos portugueses. Este é daqueles que defende sem hesitações que o pior que sucedeu a São Tomé e Principe foi a sua independência.

Na viagem para baixo, uma breve paragem em Trindade para fotografar alguns detalhes mais chamativos: sem razão aparente, uma montra cheia de símbolos do Futebol Clube do Porto; as ambulâncias locais, ainda pintadas com a inscrição “Bombeiros Voluntários das Caldas da Rainha”; o posto de correios, que ali está, igual a si próprio, sem mudanças aparentes desde que foi construido, para ai nos anos 60.

Chegamos à cidade. Tinha encontro marcado defronte do Café e Companhia para devolver o carro mas após 15 minutos de espera não tinha aparecido ninguém. Com um telefonema as coisas ficaram resolvidas: iriamos para a esplanada favorita do KB, e depois, quando quisessem, que passassem por lá a levantar o carro, que nós iriamos passar um resto de tarde na preguiça, com o mar por companhia e uma bebida fresca em cima da mesa.

Antes de ir para casa, uma última missão: o KB anda a matutar num projecto maluco – no porto está depositado um veleiro de 12 metros em estado ruinoso, destruído por um contentor que lhe caiu em cima; o dono, sem ilusões, está disposto a oferecê-lo ao KB, que sonha em recuperá-lo e sair daqui, quando quer que a sua comissão termine, a velejar até Singapura. A mim tocou-me a tarefa de convencer os guardas do porto a deixarem-nos entrar para ver o casco moribundo, o que fiz sem qualquer dificuldade. Mais uma vez, ser-se português abre muitas portas neste país.

Para o serão, a reunião semanal dos amigos chineses, para a qual somos de novo convidados. Sinto-me engripado e nada bem. Tinha comprado meia dúzia de garrafas de água no supermercado, antes de regressarmos a casa, decidido a fazer uma cura de águas que ajudasse a debelar a maldita constipação que me mandava para baixo.

O jantar, que começou cedo, finou-se, mas o dia não: toca de ir à cidade, ao Kakau, para uma sessão de jazz. Durante cinco dias um pequeno festival está a ser organizado naquele muito agradável espaço, propriedade do João Carlos Silva, o mesmo da roça de São João. A música começou bem, com ritmos mais africanos, acompanhados, no que me tocou, por uma cerveja nacional geladinha. Ainda tive oportunidade de espreitar algumas das exposições patentes naquele enorme barracão, central de reparação dos comboios das roças nos tempos coloniais. Ali reapareceram caras conhecidas, deixando mais uma vez a descoberto a pequenez deste meio social, onde todos se conhecem e se reencontram por detrás de cada esquina. A coisa é de tal forma que, segundo nos diz o KB, a cada dia da semana já se sabe que há um local onde todos estão, ficando as outras opções ao abandono. Por isso o procedimento é simples: sai-se de casa, vai-se até ali… se não se encontram ninguém conhecido é porque estão todos noutro dos locais… que se vão tentando, um a um, até se encontrar o filão… isto se não se atalhar caminho com a ajuda do telemóvel.

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