A região de Milovice carrega consigo uma longa tradição militar. Durante a chamada Primeira República, que corresponde ao período 1919-1938, quando os Checos foram independentes pela primeira vez, diversas unidades do novo exército foram aqui alojadas. Depois, veio a Segunda Guerra Mundial, chegaram os alemães e durante os seis anos de conflicto a Luftwafe manteve aqui uma base. Mas foi após a intervenção soviética de 1968 que Milovice chegou ao seu apogeu. Aqui foi estabelecido o quartel-general do Grupo Central de Exércitos Soviéticos e chegaram a residir em Milovice cerca de 120.000 militares e familiares.

Chega-se de comboio, vindo de Praga. Localiza-se a pouco menos de 100 km da capital checa, para nordeste. Da pequena estação ferroviária da aldeia até ao perímetro militar é apenas uma pequena caminhada e dali inicia-se a exploração da antiga base e dos seus aquartelamentos de suporte.

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Daquela pista descolaram no início dos anos 90 os últimos Mig-29 russos do 19º Regimento de Interceptores que ainda aqui se encontravam estacionados. Hoje, os seus hangares estão quase todos selados, mas podemos vaguear por ali e até espreitar um ou dois que se encontram abertos. Antes de se prosseguir a caminhada pode-se subir a uma das torres de controle, vidros estilhaçados, semi-queimada.

As estruturas de apoio são imensas. Só podiam ser, considerando as dimensões da base. Nota-se ali perto um primeiro nível de construção, que deverá vir dos tempos que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Olha-se para aqueles edíficios e fica-se a pensar nas pessoas que cruzaram aquelas portas… pilotos, comandantes de esquadra… primeiro austro-húngaros, depois, checoslovacos… a seguir, alemães e, por fim, soviéticos, sobretudo russos. Gente tão díspar, com convicções diferentes e estórias para contar, tantas.

Por ali se encontram barracões, bunkers de armazenagem, máquinas desmembradas que um dia tiveram funções que hoje não poderemos determinadas. Uma pilha de garrafas vazias de vodka marcam o local de grandes festas. Uma parede está crivada de balas. Terá sido uma comemoração de despedida? Consigo desalojar uma munição que poderá ter sido de uma AK-47. Hoje, já nenhum resta. Os pescadores de recordações levaram-nas todas.

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Em alguns destes edifícios encontram-se velhos documentos espalhados, em cirílico. Inventários, notas de requisição. Essa papelada que se espera encontrar em locais assim. O papel de parede que vai descamando esconde uma surpresa, colocada entre o estuque e o revestimento: folhas de jornais de outros tempos, mostrando cartoons com propaganda anti-americana, que foram colocadas para melhorar o isolamento.

Ainda resta algo das áreas residenciais. Uma série de blocos de apartamentos, com fogos minúsculos, frugais. Os meus amigos russos empolgam-se: “É tal e qual a casa onde cresci!!”. É o modelo soviético de habitação. Aqui há toques mais pessoais. Recortes de jornais com referências a instituições ocidentais como a Coca-Cola ou Bon Jovi. Os apartamentos existentes nestes blocos de quatro andares foram basicamente esvaziados pelos seus antigos habitantes, mas há ainda vestígios da sua utilização humana. Está tudo escancarado. Um copo com escovas de dentes recorda-nos que aqui viveram pessoas reais.

Ali perto existe algo que terá sido um centro social. Há um cinema, desnudado, mas com as plataformas desniveladas onde as cadeiras estariam fixas e a sala de projecção por detrás. E um ginásio, piso de tacos quase totalmente destruído, deixando ainda ver algumas marcações de um campo de basquetebol. Uma das vezes que o local foi visitado uma equipa das forças especiais da polícia checa rodeava este complexo. Preparavam um exercício. Deram-nos cinco minutos para darmos uma vista de olhos antes de tomarem para si o local.

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Mais à frente vemos edifícios semelhantes mas completamente recuperados. Aos poucos Milovice está a ser conquistada pela sociedade civil, recuperada para a próxima geração. Muitas das estruturas de serviços estão a ser usadas como oficinas, sedes de empresas de distribuições e outras coisas assim. Quando aos blocos de apartamentos, alguns foram totalmente renovados e vendidos como novos lares. A tendência será para continuar e quando o leitor passar os olhos por este texto, não saberemos quanto existe ainda destes testemunhos do passado militar de Milovice.

Uma vista de olhos no Google Earth não é totalmente esclarecedora. Muito do que aqui existe é subterrâneo ou esconde-se sob a copa das árvores da floresta. Mas fica-se com uma ideia da área. Há muito que palmilhar para ir de um lado para o outro. Mais afastados da base aérea encontram-se estruturas do exército, por exemplo, o campo de treino de tiro de tanques, a estação ferroviária militar e o bunker do comando supremo, selado há algum tempo mas que cheguei a visitar nas suas profundezas.

Entre estes pontos há o campo, e os percursos devolvem a tranquilidade ao espírito. Na Primavera há vastas extensões de flores amarelas, o bosque está repleto de dons verdes, é um cenário idílico. Numa aberta reparamos num abrigo para os caçadores de veados. Antes de chegarmos ao próximo complexo, perdido entre a vegetação.

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Está quase na hora de deixarmos a área. Atravessamos uma última vez a pista da base, usada por vezes para testes de automóveis ou para a filmagem de filmes, quer pelas empresas de Hollywood quer pela activa indústria cinematográfica checa. Não é difícil imaginar o ruído ensurdecedor nos caças Mig-29 nas suas idas e vindas.

Paramos num qualquer pub checo a caminho da estação de comboios. Um par de canecas de cerveja bem gelada acompanhadas de um camembert em pickles – uma especializada checa a que se chama de hermelin – coroarão este dia bem passado.

 

 

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