Há um dia, um momento, que mais do que tudo ficará gravado na memória de José Menezes enquanto a sua mente viver. Ele estava lá, naquela igreja, manchada de sangue, tingida de sangue, pintada de sangue.

16 de Novembro de 1999. A tensão em Timor Leste atinge níveis nunca vistos desde a anexação indonésia em 1975. Os portugueses saíram, abandonaram Timor Leste pela porta das traseiras, e os indonésios entraram pela porta da frente, anexando a metade da ilha que não fazia parte da sua república.

Quase vinte e cinco anos depois os timorenses terão oportunidade de expressar a sua vontade: manterem-se como parte da Indonésia ou tornarem-se um país independente? Como sabemos a segunda hipótese triunfou no referendo organizado a 30 de Agosto de 1999.

Mas antes da ida às urnas os serviços secretos da Indonésia tudo fizeram para influenciar o resultado das eleições. No terreno movimentam-se grupos armados que defendem a permanência de Timor-Leste na Indonésia. São bandos de homens violentos apoiados pelas forças armadas da Indonésia e a sua acção ficou gravada na História com letras vermelhas de sangue.

Foi um destes grupos que invadiu a igreja de Liquiçá, onde se abrigavam algumas centenas de pessoas, já aterrorizadas pela actuação das milícias pró-Indonésia na zona de Liquiçá. José Menezes estava lá e conta-me a história em poucas palavras, sem uma emoção clara: “o pessoal tinha-se refugiado na igreja quando eles chegaram. Esta marca aqui fez-me um milícia, com uma catanada”. E dito isto mostra-me a cicatriz, arrepiante, que é mais do que uma sinal na pele. O atacante deu-lhe para matar e o facto de José Meneses estar vivo é por si um milagre: o golpe deixou-o com uma profunda marca na base do pescoço. Quem o veja pensará primeiro que se trata de uma malformação. Mas não é. É a evidência física de uma história de sobrevivência impossível mas que contudo aconteceu.

Naquele dia morreram dezenas de pessoas, ninguém sabe ao certo quantas. Uma fonte da polícia indonésia registou cinco óbitos mas terão sido entre 50 e 100. O massacre da igreja de Liquiçá.

Hoje José não guarda rancor. Como diz, para a frente é que se deve olhar, e o que lá vai, lá vai. Fala de reconciliação, procurando esquecer aquele dia. Tendo nascido em 1961, tinha por essa altura 38 anos.

Vive da pesca, com a sua família, que rodeia a embarcação que regressou do mar. É o patriarca, o “boss”, bem vestido, bem educado, vai falando comigo enquanto os outros seleccionam e preparam o peixe para o transporte. Tem família em Lisboa, que nunca visitou. Falamos de futebol, claro. “O pessoal aqui é todo apoiante da Selecção Portuguesa”. E depois, pensando no meu nome… “Ricardo…. como Ricardo Carvalho… Ricardo Quaresma… Ricardo o guarda-redes”.

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