Há uns dias alguém me perguntou o que tanto me fascinava nos cemitérios e eu, que nunca tinha pensado seriamente nisso, fiquei a matutar. Sim, é verdade. Viagem minha só é viagem se incluir um passeio pelo cemitério local. É obrigatório, uma prioridade de topo. Posso dispensar tudo o mais, mas em tirando-me a visita ao cemitério, tiram-me tudo.

Talvez comece por inverter a questão: porque é que há tanta gente que não compreende este interesse e se sentem incomodados de partilhar comigo um destes momentos? Estou em crer que tudo tem origem na educação espiritual, na vivência de infância, na experiência precoce com estes locais. No meu caso, não existiu, de todo. Por isso tenho o privilégio de poder encarar cemitérios sem preconceitos. Na realidade, a primeira vez que entrei num, foi aos 39 anos, e nesse dia apaixonei-me por aquele espaço. Aconteceu em Praga. Fui simplesmente porque no meu guia estava escrito que era magnífico. Vi umas fotos, consegui concordar. E fui.

Mas na realidade, o que posso responder a alguém que me interrogue sobre o que alimenta este fascinio? Vamos lá…

A face mais evidente do charme de um cemitério será talvez o elemento estético. É indiscutível: em algumas culturas as lápides podem ser verdadeiras obras de arte, encomendadas pelos entes queridos do falecido a artistas de bom (e de mau) gosto. Ficamos assim perante um museu involuntário, e o que é melhor, um museu genuino, sem manipulações, sem outros visitantes (exceptuando os casos, claro, em que os cemitérios são transformados em atracções turísticas, como os de Paris ou o cemitério judeu de Praga onde até se paga bilhete para entrar).

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E daqui parto para outro ponto: um cemitério é um mapa da História de um local, de uma comunidade. Observar um destes locais com um olhar atento é como estudar o corte de uma árvore. Revela muito sobre o que se passou por ali nos últimos séculos. Penso no cemitério de Lviv (um dos raros casos onde é preciso pagar um bilhete para se entrar – se se for turista). Lviv passou sucessivamente de mãos polacas para ucranianas, depois, União Soviética, e agora, de novo, é parte da Ucrânia. E todas estas revoluções se encontram registadas neste magnífico cemitério, nos anéis sobrepostos de zonas de enterro. Nas áreas mais antigas, engolidas pela mãe-natureza à falta de gentes interessadas na manutenção, ancestrais campas polacas espreitam sob o verde intenso das ervas altas. Num terreiro limpo de matos um círculo com cruzes ferrugentas adornadas com pequenos panos com as cores da Polónia marca o local onde descansam heróis da comunidade polaca. Depois, avistam-se os traços do regime soviético, marcado pelas campas inspiradas pelo realismo socialista, elementos decorativos de linhas austeras, foices e martelos, figuras inspiradas no poder operário, com temas fabris, campesinos. Está lá tudo, contando uma história acessível apenas a quem escuta o silêncio.

Por vezes esta aprendizagem surge de forma inesperada, quando em vez de procurar um cemitério, é o próprio cemitério que me encontra. Foi assim em Rhodes – Grécia, quando passei junto a um gradeamento e reparei que lá dentro se encontrava um velho cemitério otomano anexo a uma mesquita. Observando as pedras tumulares reparei que as inscrições se encontravam em arábico, e com isso descobri que o actual alfabeto utilizado na Turquia, o nosso, foi substituir por decreto o alfabeto árabe, por ordem de Ataturk, em 1929 [mais detalhes].

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Ao atravessar a Bósnia e a Herzegovina, e especialmente durante a visita a Sarajevo, os cemitérios mostraram-me as lágrimas da guerra civil. Numa cidade cercada anos a fio, sujeita a bombardeamentos diários e ao fogo constante dos atiradores especiais, o espaço nos cemitérios convencionais depressa se esgotou. A população teve que improvisar, usando todos os pedacinhos de terreno livre para enterrar as vítimas. E isso vê-se hoje. Quando se anda por Sarajevo, a cada esquina dá-se de caras com um pequeno cemitério. Os nomes, quase todos muçulmanos, predominantemente de homens, falecidos nos mesmos anos, os anos negros… 1992, 1993, 1994,1995, 1996.

O que é mais incrível é que num mundo tantas vezes cruel e feio os cemitérios mantêm-se mesmo assim terrenos sagrados. Numa Polónia ocupada pela Alemanha Nazi, os vivos foram perseguidos até à exaustão, mas o cemitério judeu de Cracóvia lá ficou, deixado em paz. E o mesmo se passou em Sarajevo, onde o Velho Cemitério Judeu, criado no século XVI, sobreviveu a inúmeras guerras, acabando por ser parcialmente danificado já na parte final do século XX, quando as forças sérvias estabeleceram ali uma posição de artilharia. Diversas lápides foram atingidas por balas e estilhaços, mas, mesmo assim, foram apenas vítimas colaterais de um conflito que não lhes dizia respeito.

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A História dos Antagonismos manifesta-se de uma forma especial nos cemitérios. É comum ver-se, enterrados lado a lado, elementos de forças em oposição, finalmente unidos no seu local de descanso final. Na Lituânia, Estónia e Letónia vamos encontrar inscrições em russo adornadas com símbolos soviéticos, e logo ao lado, campas de nacionalistas tombados em acção contra o domínio soviético. Nos cemitérios militares a situação é ainda mais interessante. Em áreas historicamente mais complicadas, vamos encontrar talhões reservados a combatentes tombados em acção, em sucessivas guerras, por vezes em partes opostas da mesma batalha. De novo a sensação de estarmos perante um museu de História. Em Tallinn, num pequeno e recôndito cemitério militar, fui encontrar zonas para os militares do Exército Vermelho que reconquistou a cidade aos alemães nos anos finais da Segunda Guerra Mundial, para os seus inimigos, os próprios alemães, para os ingleses da Royal Navy que ajudaram a Estónia a tornar-se (temporariamente) independente em 1919, para as vítimas de um acidente que mandou para o fundo do mar um submarino soviético com todos os seus tripulantes, para os militares da União Soviética que faleceram de morte natural entre 1945 e 1989, para os combatentes pela independência do país.

Mas deixemos de lado a violência dos caídos em combate e passemos a outro elemento que muito atrai num cemitério: o silêncio, a tranquilidade, a paz. Se não existisse mais nenhuma razão, continuaria a procurá-los apenas por isto. No meio de uma viagem, quase sempre cansativa, com motivos de stress, com dias a caminhar de sol a sol pelas ruas de grandes cidades… entrar num cemitério e deixar-me envolver pelo ambiente tranquilo é como receber uma massagem espiritual. Os motores dos carros, a poluição atmosférica, os tons de voz elevados… tudo isso desaparece, deixado temporariamente para um segundo plano. De repente, apenas o som das folhas de Outono que se soltam dos seus lares de Verão para pousar, também elas, nos respectivos locais de descanso final. E os esquilos, nas suas correrias loucas, árvores acima, atentos aos movimentos humanos. Talvez os cemitérios portugueses não tenham muitas árvores nem esquilos saltitões. O que me conduz a outro ponto…

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Já mencionei como a História pode ser captada através da observação de um cemitério, mas há outro tipo de testemunho que podemos extrair das visitas a estes espaços: para além de museus de História, os cemitérios são também museus de Antropologia Cultural. Um cemitério é um reflexo da sociedade que o criou e mantém. Nunca pensou nisso? Como explicar as significativas diferenças de um espaço predominantemente religioso no seio de uma mesma Igreja? As diferenças entre um cemitério em Portugal e um cemitério na Polónia são abismais, apesar de ambos serem países católicos. Por cá, especialmente para sul,  são espaços dominados pelo branco, sem árvores ou outros elementos naturais, com muitas flores artificiais, campas adornadas com pequenos retratos dos falecidos. Na Polónia, tudo é o oposto: a natureza domina o espaço, com imponentes árvores que cobrem todo o terreno de sombra e folhas; as cores são pesadas, escuras… a pedra é usada, também ela cinzentona, os temas decorativos são diversos, sem limites… mas se o Homem pinta estes cemitérios de escuridão, a natureza vinga-se, devolvendo-lhes alguma alegria com o verde intenso que transita para as cores quentes de Outono na época certa.

Quando se visita estes espaços de forma sistemática ganham-se referências que permitem uma comparação relativa, desenham-se paralelos entre as diferentes culturas e respectivas abordagens ao relacionamento com os falecidos. Alguns países, culturalmente heterogéneos, oferecem uma variedade fascinante. Na mesma cidade, por vezes na mesma rua, encontramos cemitérios distintos. Em Hrodno, na Bielorússia, uma estreita rua separa o cemitério Católico do Cemitério Ortodoxo. O mesmo se passa em Praga, onde lado a lado se encontram os enormes cemitérios de Olsany, um Católico, o outro, Judeu. Em Varsóvia indicam-me um cemitério tártaro. E ali estou, perante campas com nomes muçulmanos, num pequeno lote de terreno oferecendo as característicos dos cemitérios polacos.

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Outra coisa que me atrai na visita a um cemitério é o sentido de caça. Caça!? Sim, calma, eu explico: de olhos bem abertos, atento aos detalhes, não consigo evitar um esgar de surpresa quando encontro elementos insuspeitos. São estes que caço. Pode ser uma lápide de alguém que morreu aos 105 anos de idade. Há algo de poderoso nisto de olhar e ver aqueles números mágicos… nascido em 1870, falecido em 1975. É obra, pensar na vida da pessoa que acabou ali. Já estava viva quando durante a guerra Franco-Prussiana os “hunos” estiveram à porta de Paris e forçaram os franceses a um cessar-fogo ultrajante. Os seus avôs lembrar-se-ão de Napoleão. Ele próprio seria já demasiado velho para combater a Primeira Guerra Mundial. 44 anos. Quando os alemães chegaram, em 1940, já seria um idoso com 70 anos. Mas viveu para assistir ao colapsar do Império Francês. Os seus netos poderão ter combatido na Argélia ou na Indochina e, finalmente, morreu. Quando eu tinha já dez anos.

Os pormenores que se caçam num cemitério são infinitos. A nossa atenção é o limite. Gosto de reparar como há campas com décadas que se mantêm arrumadinhas e tratadas e pensar quem são as pessoas que após tanto tempo mantêm um laço afectivo com aquele cantinho. Ou, opostamente, olho para uma campa com a lápide estilhaçada, e penso que vida foi aquela que um dia se estilhaçou exactamente da mesma forma. E vejo, vejo as alusões nas campas às actividades profissionais ou hobbies dos falecidos. Reparo nesta, onde uma série de irmãos parecem ter morrido no mesmo dia. Naquela, onde uma esposa deixou um viúvo quarenta anos mais cedo.

Interessam-me as campas deslocadas, descabidas. Um nome francês no meio das vitimas checas do campo de concentração de Terezin. Um oficial inglês que combateu por um qualquer principado alemão no século XIX e se encontra enterrado em Leipzig. As sete  campas da tripulação do avião da Luftwaffe abatido perto de Aljezur durante a Segunda Guerra Mundial. A pequena coreana que repousa em Wroclaw depois de ter sido trazida com um grupo de crianças da Coreia do Norte durante a guerra naquele país por volta de 1950. Viveram na Polónia durante uns anos, num estranho secretismo, com um estatuto dúbio de refugiadas, e acabaram por ser devolvidas ao país de origem uns anos mais tarde. A pequenita Kim Ki Dok contudo ficou para trás. Morta, por doença indeterminada, aos 13 anos.

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Adoro encontrar um pequeno cemitério por mero acaso. Esses, são geralmente pequenos, possivelmente abandonados. Lembro-me de dar com um, na Polónia, quando caminhava para uma fortaleza esquecida. Tinha um par de dúzias de campas, todas antigas, com mais de cem anos. Algumas tinham nomes em alemão, as cruzes encimando a lápide corroidas pela ferrugem, os matos trepando por elas. Noutra ocasião fazia uma caminhada de longa distância na República Checa e descobri um cemitério, também ele antigo,  deixado à sua sorte por uma comunidade que deixou de existir.

Gosto também de olhar para as imagens dos falecidos e imaginar o que terá sido a sua vida. Quem eram? O que faziam? Tinham uma família numerosa ou viviam na solidão? Envelheceram bem ou tornaram-se amargos, revoltados, zangados com o mundo? Em Milão vejo uma moldura, e reparo que os familiares optaram por reter a memória dos tempos felizes. A senhora sorri para a câmara, esquis nos pés. Um momento de alegria. Mais à frente, mais um instântaneo de um passado saudoso: um casal nos seus sessenta anos parece estar bem… ele fuma um cachimbo, ela olha-o, divertida. Há uma nota escrita à mão: “San Remo, 1966 – Papá e Maman”.

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Mais razões para visitar um cemitério? Fotografia. São locais de uma riqueza fotogénica imensa. Entre os elementos decorativos, os contrastes de côr, os detalhes originais, os jogos de luz, o ambiente intenso, o potencial dramatismo… há mesmo muito para fotografar, desde que se tenha a sensibilidade necessária e o chamado “olho fotográfico” para destacar do meio envolvente o que funciona em fotografia. Gosto também – e aqui faço um mea culpa pelo banalismo – de “tocar” pessoas célebres. Há algo que mexe quando olho para a lápide de alguém de quem ouvi falar toda a vida, como um Franz Kafka, um Dvorak ou um Jim Morrison.

Não poderia terminar este artigo sem uma referência ao Cemitério Feliz. Localiza-se na Roménia e é um cemitério muito especial: destina-se a todos os que pretendem celebrar a alegria de viver depois de mortos, aos que querem deixar para trás uma mensagem positiva, descartado o melodramatismo dos enterros de carpideiras. As cores são vivas, nas lápides lêem-se piadas. Foi fundado em meados dos anos 30 e recentemente foi-se tornando numa atração turística. Queria falar neste local não só para realçar a ideia de que cemitérios podem ser locais agradáveis – dependendo da abordagem – mas também para salientar a afinidade entre a nossa abordagem a estes locais e a nossa marca cultural.  A zona onde se encontra este cemitério foi outrora habitada pelos Dácios, um povo que se relacionava de forma positiva com a morte. A crença na vida para além da morte era tão sincera que a partida de um ente querido era festejada com grande felicidade.

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