20 de Outubro
Um dia cheio de atribulações! De manhã não se passa nada. Acordo às 7:30, e fico pelo hostel. Tudo dorme. Já não suporto mais um bocado de Dubrovnik. Tenho que sair às 11 mas o autocarro para Trebinje, na Bósnia-Herzegovina é só às 13:30. Passado um bocado levanto-me para ir ao pequeno-almoço de borla: muesli e leite, é tudo o que há, o que não é nada mau considerando os 15 Eur de dormida que pago. Quando regresso o quarto está cheio de vida, com toda a gente a preparar-se para o dia. Saem e eu fico. Pouco depois tomo um duche, faço a barba, despeço-me do meu lar por dois dias.
Caminhada até à estação rodoviária. Mais 4 km de carga completa, mas para baixo desliza-se melhor. Quando chego, fico surpreendido. O caos que estava instalado quando aqui cheguei, dois dias antes, desvaneceu-se. Talvez tivesse chegado um paquete por aquela altura, mas seja como for, gosto muito mais assim. Mal me aproximo das bilheteiras aparece uma senhora a propôr-me um quarto. Digo-lhe que estou de saída, para Trebinje, e ela diz que hoje não há autocarro para lá. Pois sim, é a conversa do costume, de taxistas e afins. Sorrio e dirigo-me à bilheteira. Um bilhete para Trebinje, se faz favor. Não, não há autocarro hoje, só amanhã. Mau. Cai-me tudo ao chão. E agora? O meu primeiro instinto é regressar ao hostel e ver se posso ficar mais uma noite. Mas não. Credo, mais Dubrovnik não. Compro um bilhete para Mostar, Vou ter que antecipar tudo um dia, encontrar hostel de improviso, avisar a minha anfitrião em Trebinje do que se passou e pedir ao anfitrião de Sarajevo para antecipar a minha chegada um dia. Felizmente encontro uma rede Wi-Fi aberta e começo a tratar de tudo. Tarefas efectuadas, abro o saco e faço um pequeno picnic, sentado no chão, ao sol, frente à linha de autocarros. Penso que deverei aproveitar aqueles últimos raios de sol, porque segundo as previsões vem ai muita chuva, ou, na melhor das hipóteses, céu muito nebulado.
E estou eu nestas cogitações, ainda a duas horas da partida para Mostar quando um velhote se aproxima: “Hey! Portugal! Bus Trebinje… ” e aponta. Eu nem quero acreditar! Olho por cima do ombro e lá está ele, o furgão para Trebinje! Raios e coriscos, diabo dos croatas bem me tramaram! Ainda ontem tinha estado a ler um blog de um viajante que contava o espanto e os esforços dissuadores dos croatas quando lhes dizia que ia para Trebinje. Curiosamente o autor do texto pensava como eu…. acerca de Dubrovnik e sobre o interesse de visitar cidades desprezadas pelo fluxo turístico. Mas a ele ninguém tinha enganado assim. O problema dos croatas é que foi o pessoal de Trebinje que em 1991 lhes veio fazer uma visita e partir a cidade toda com artilharia montada nas montanhas sobranceiras. Se o sentido de boa vizinhança já não seria muito bom, depois disso o caldo entornou-se de vez. Quando procurei saber o preço do bilhete para Trebinje, primeiro com a recepcionista do hostel, depois no posto de turismo, só faltou fazerem-me o sinal da cruz. Para eles esssa cidade é como se não existisse, apesar de se encontrar a 20 km. De costas voltadas. Entretanto o velhote diz-me para pedir o dinheiro de volta, e penso que não será possível, mas depois de um par de minutos vou ao balcão de informações e explico o que se passa. Afinal posso devolver o bilhete para Mostar na bilheteira. E é mesmo isso que faço.
Ora com a brincadeira toda perdi 3 Eur. Primeiro, câmbio de Euros para ter Kunas (felizmente o balcão de câmbio era a poucos metros da bilheteira), depois, nova visita para mais Kunas para ir para Mostar… e agora, não só me deduzem 10% do valor para me devolverem a massa, mesmo sendo culpa deles, como tenho que voltar a trocar as Kunas excedentes para Euros. Mas o que interessa é que afinal sempre vou a Trebinje.
A bordo, a palhaçada do costume: bagagem? Mais 1 Euro extra. Mas em breve estou eufórico. Vou a caminho, a paisagem é soberba. No furgão segue um velhote e uma velhota. Em breve chegamos à fronteira, e, digo-vos, nunca vi coisa mais relaxada: do lado croata, o guarda nem me viu… aceitou o passaporte através do condutor, verificou, carimbou e siga. Chegamos ao sector da BiH (daqui para diante, Bósnia e Herzegovina será simplificada para BiE, Ok?)… sai um guarda bonacheirão de dentro da casota, completamente desleixado no trajar, grande paródia com o condutor… e depois comigo… conversata… José Mourinho e tal… Portugal, bom futebol… quer lá saber do passaporte, quer é conversa e galhofa. Pergunta-me para onde vou, não por rigor profissional mas por curiosidade pessoal. E concorda com o meu trajecto. Lá leva o passaporte para dentro para a carimbadela e volta passado cinco segundos.
Os companheiros de viagem ficaram na fronteira. Por 10 Eur, já incluindo o prejuizo com a brincadeira dos croatas, vou de rabinho tremido, como se fosse de táxi, com aquilo tudo por minha conta. Lá fora o tempo está excelente para fotografia. Da chuva anunciada nem sinal, mas a luz é óptima. Pronto, estou em Trebinje. Começo a andar e sinto de imediato uma enorme afinidade com o local, É certo que não ansiaria viviver neste fim de mundo, mas para passar um dia é mesmo o que o doutor receitaria, para limpar o sistema da overdose de turistas de Dubrovnik. São locais assim que gosto, é uma espécie de Lushnje da BiH. De vez em quando passará por aqui um turista, mas até ver, à parte a minha afintriã Klair (irlandesa), sou bem capaz de ser o único estrangeiro nesta cidade com 60.000 habitantes, sensivelmente o mesmo que Faro. Contudo, passeio sem ser importunado por olhos inquisitivos. Mesmo com a carga completa e câmara ao peito, as pessoas olham para mim de passagem e de forma natural. Cada vez gosto mais de Trebinje, mesmo considerando as traquinices do passado. Pelo que me foi dito esta cidade é um dos núcleos duros no nacionalismo sérvio, mas desde que um tipo não seja croata ou bósnio muçulmano, é muito bem vindo.
A cidade é pictoresca. Passo por um parque de árvores altas e frondosas que criam um campo de sombra espantoso. O mercado está montado na praça central. Cenas pacatas da vida quotidiana. Passo junto ao hotel Platani, com nome em néon cirilico, que é onde daqui a umas horas me vou encontrar com a Klaire, e prossigo. Quero encontrar a famosa ponte Arslanagic, construida pelos otomanos. Caminho por um passeio pedonal junto ao bonito rio até que a vejo: a ponte é magnífica,e creio que é o objecto singular que me inspirou mais fotografias, desde sempre. Atravesso a ponte para cá e para lá, espreito-a de todos os ângulos e quando enfim me farto, detecto um cemitério à margem do rio, apenas um pouco mais à frente. Visito-o, claro. E de novo a ponte, sob uma nova perspectiva, com uma luz diferente. Mais fotografias, Ufa! Já estou cansado, não só de disparar chapas mas também de andar com a carga de mula. É tempo de regressar ao centro da cidade. E quando o faço descubro o acesso à zona histórica, que exploro brevemente. Algumas casas com aspecto verdadeiramente antigo. Umas quase em ruínas, outras ainda em uso. Muitas esplanadas. Por vezes deve haver ali muita vida, mas nesta tarde as ruas estão desertas, apenas com alguns transeuntes que cruzam a zona com passo certo.
Sento-me num banquinho a preparar uma merenda, e depois, de estômago saciado, vou sentar-me num bar, fazendo tempo até chegar a hora do encontro com a Klair.
O serão decorreu em amena cavaqueira, estômagos consolados com uma feijoada à Ricardo, com ingredientes improvisados, recolhidos das duas lojinhas de bairro que visitámos, mas que estava admiravelmente deliciosa.